Ensaio | Visuais


Obra de Amine Barbuda (aquarela, nanquim e ouro)

FISSURAS: AS ARTISTAS E OS MUSEUS

novembro de 2022

Edição: 22


 

*texto originalmente publicado na Barril Impressa n.1 (peça a sua aqui)

Adoro quando as pessoas falam de Salvador como uma cidade feminina, elogiada pela sua beleza estonteante (apesar dos maltratos dos seus administradores) e pelos seus inúmeros valores culturais (apesar das tentativas de aniquilamento dos intolerantes). Na playlist local, de Caymmi a BaianaSystem, embora o nome oficial seja o masculino “São Salvador da Bahia de Todos os Santos”, “a cidade da Bahia” prevalece como substantivo feminino. Qualquer um que conheça a força das festas sagradas da Nossa Senhora da Conceição da Praia e de Iemanjá, que reverencie Santa Bárbara e Iansã, ou seja devoto da Santa Dulce dos Pobres, pensaria que “a Soterópolis” é o santuário da criação feminina, principalmente depois das fortes emoções que tantas artistas provocam na exuberância do carnaval baiano. Mas não é acarajé tudo o que borbulha dourado no tabuleiro.

Em dezembro de 2020, em pleno tédio do isolamento pela pandemia, por conta de uma matéria sobre a escassa representatividade das mulheres nos monumentos de São Paulo, fiquei me perguntando como seria a situação soteropolitana. Então, em uma rápida pesquisa no site da Fundação Gregório de Matos (FGM-PMS) constatei que, da relação de 180 Monumentos Públicos de Salvador em suas 15 categorias, apenas 35 (19,4%) são alusivos e/ou dedicados a personalidades femininas. Em 34 peças de seis categorias não há figuras femininas contempladas, mas, dentre as outras 146 peças classificadas em nove categorias diferentes, há 35 com alusões ou representações femininas. Como o repertório é tão pequeno, posso elencá-lo brevemente:

a) das 22 Estátuas, quatro são femininas, porém apenas a de Maria Quitéria é de uma personagem histórica, pois as da Fé, da Flora e da Imaculada Conceição são alegóricas ou de representação devocional;

b) dos 39 Bustos, apenas Mãe Gilda mereceu uma homenagem, enquanto das nove efígies listadas, somente a Mãe Preta é mulher;

c) das 30 Esculturas da cidade, pelo menos 12 aludem a figuras femininas, embora só Mãe Runhó e Zélia Gattai (com Jorge Amado) sejam efetivamente personagens históricas, enquanto todas as outras são alegorias ou representações devocionais;

d) gostaria de discutir com Gerônimo se toda a cidade é d’ Oxum, pois, das 19 Fontes Naturais, apenas uma, a de Nossa Senhora das Graças, é de invocação feminina; das seis Fontes Luminosas, pelo menos três aludem a devoções e/ou alegorias femininas (Maria da Praça, Nossa Senhora da Luz e da Piedade), enquanto, dentre os seis chafarizes, somente dois (Cabocla e Yemanjá) remetem a figuras devocionais femininas;

e) dos três Oratórios reconhecidos pela FGM-PMS, dois são de invocação feminina (Mãe Rainha e Nossa Senhora de Fátima) e, finalmente, dos 11 Monumentos, apenas um (Vitória de Riachuelo) contém uma alegoria feminina.

Em síntese, apenas cinco baianas (“da terra ou de coração”) têm reconhecimento concreto na memória oficial da cidade, isto é, menos de 3% dos monumentos. Todavia receio que o resultado dessa escassa representatividade feminina nos nomes das ruas ou espaços da cidade seja mais decepcionante. Então, fiquei pensando que, quando Daniela Mercury disse em alto e bom som “o canto dessa cidade é meu”, o bordão poderia ser uma metáfora inquietante da imaterialidade do reconhecimento das mulheres na história soteropolitana. Ou seja, a cidade parece feminina, mas as mulheres estão longe de uma relação paritária nas homenagens e monumentos das ruas de Salvador. O canto até pode ser meu, mas a imagem dominante é deles.

Embora eu não me dedique às discussões de gênero e pouco conheça da teoria feminista da arte, durante o longo isolamento pandêmico entre 2020 e 2021 fui além dessa questão do acervo monumental de Salvador e me perguntei a quantas andava a representatividade das mulheres em outros âmbitos culturais. Até fiz um curso online com a competentíssima Talita Trizoli, uma das grandes especialistas no tema. Acabei dirigindo meu olhar para os processos de legitimação e circulação da produção artística das mulheres no complexo arcabouço das relações sistêmicas da arte. Como o assunto é empolgante e oportuno ante a crescente ocorrência de exposições e eventos que discutem o protagonismo das mulheres na produção artística, permita-me uma breve reflexão com as limitações epistemológicas e conceituais inerentes a uma não-especialista no assunto.

Em fins de dezembro de 2020, foi finalizada a obra “Diva”, de Juliana Notari, um buraco-escultura de 33 metros instalado na Usina de Arte, em Pernambuco. O projeto da gigantesca vulva, que aflora da terra árida como uma ferida aberta que sangra, começou a ser desenvolvido em 1998. As imagens da obra circularam velozmente pelas redes e levantaram polêmicas infinitas. No meio da tristeza da pandemia, confesso que fiquei feliz não apenas por ser um trabalho relevante de uma artista nordestina que admiro, mas também pela pertinência da provocação no contexto machista, retrógrado e misógino que caracteriza os rumos do Brasil atual. Quantas mulheres têm voz nos acervos da arte contemporânea? Como ecoam as temáticas femininas nas políticas culturais atuais? Que ressonâncias podemos perceber nas pautas institucionais?

Você sabia que o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) tem apenas 26% das obras do seu acervo realizadas por artistas mulheres? Sim, eu sei que você não gosta de números, mas eles são bem eloquentes! Atualmente, o MAM-BA conta com 1.345 obras e previsão de, pelo menos, mais 83 peças até o final de 2022. Nos últimos dez anos foram incorporados 122 novos trabalhos, dos quais a maioria foi doada pelos artistas, já que somente 10 resultaram da 3ª Bienal da Bahia. Do total da coleção, apenas 358 obras são de artistas mulheres. E, apesar da previsão de se agregarem mais 17 obras de mulheres até o final de 2022, o legado de Lina Bo Bardi parece estancado em 26% do acervo de autoras femininas até o próximo ano. Por um lado, é auspicioso perceber que, em pouco mais de um ano da atual gestão de Pola Ribeiro, o acervo cresceu quase o equivalente ao ocorrido nos nove anos anteriores. Mas, por outro lado, em termos de representatividade feminina, as coisas continuam parecidas ao que eram vinte anos atrás, apesar das quatro diretoras mulheres que passaram pelo cargo nesse período. Segundo a museóloga responsável pela reserva técnica do MAM-BA, Sandra Regina de Jesus, nunca houve uma abordagem específica na política da instituição sobre a entrada de artistas mulheres no acervo ou alguma ação concreta no sentido de representatividade de gênero. Sandra diz que, “na trajetória recente, apenas em 2017, na gestão de Ana Liberato, fizemos uma exposição dedicada às artistas femininas e com obras em que a mulher fosse o tema. Foi a única vez”.

Entretanto, minha curiosidade inconformada me levou a verificar o histórico do MAM-BA e constatei que, das 852 exposições realizadas desde a fundação do museu, 116 (13,6%) foram mostras individuais de artistas mulheres. Segundo os registros, a baiana Jacyra Oswald, a argentina Sarah Grillo e a querida Sonia Castro foram as primeiras a expor em coletivas realizadas já nos dois primeiros anos após a fundação do MAM-BA. Ann Kendall, Kathe Kollwitz e Eugenie Smythe seriam as primeiras artistas mulheres a ter uma individual no museu em 1961. Ao todo, na primeira década de funcionamento da instituição, houve pelo menos 18 exposições individuais femininas. Inclusive, poucos sabem que em 1969 foi organizada uma pioneira “1ª Exposição Feminina de Arte na Bahia” no MAM-BA, oito anos antes da mostra que é reconhecida como a primeira grande exibição de arte feminina internacional, “Women Artists: 1550-1950”. A exposição estadunidense foi apresentada em itinerância ao longo do ano de 1977 no Museu de Arte do Condado de Los Angeles, na Universidade do Texas em Austin, no Museu de Arte do Instituto Carnegie de Pittsburgh, e no Museu Brooklyn de Nova York. Embora os trabalhos, oriundos de dezenas de coleções públicas e privadas do mundo, estivessem restritos a um elenco europeu e norteamericano, as curadoras Ann Sutherland Harris e Linda Nochlin reuniram nessa mostra mais de 150 obras de pintura, gravura e desenho de 83 artistas mulheres de 12 países. Cabe lembrar que Nochlin foi autora do polêmico ensaio “Why Have There Been No Great Women Artists?” (Por que não existiram grandes artistas mulheres?), publicado em 1971 e um dos principais textos sobre o papel do feminismo na história da arte.

Confesso que fiquei feliz em tomar conhecimento dessa antecipação involuntária do museu baiano às ações de Nochlin, apesar de ninguém ter consciência do fato. Mas, se você estiver reticente frente à atuação de nosso MAM-BA, calma. O Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York, primeiro museu de arte moderna do mundo fundado por iniciativa de três mulheres em 1929, demorou 13 anos até apresentar em 1942 a primeira exposição individual de uma artista, “Josephine Joy: Romantic Painter”. No ano seguinte timidamente foram exibidas individuais de fotografia da brasileira Genevieve Naylor e de Helen Levitt, e só em 1947 outra mulher, Georgia O’Keeffe, teve uma exposição própria no MoMA. Na mesma cidade, o Whitney Museum of American Art, criado um ano depois do MoMA pela artista e benfeitora Gertrude Vanderbilt Whitney, também tardou 13 anos para fazer uma exposição memorial dedicada à própria fundadora em 1943, e apenas em 1967 organizou uma mostra de outra artista mulher, a escultora Louise Nevelson. Nesse sentido, desde sua criação, o baiano MAM-BA foi mais sensível à causa e, se comparado a outras instituições de referência, mesmo sem uma política institucional visando à representatividade de gênero, não tem ficado omisso ao reconhecimento da produção artística feminina tanto no seu acervo quanto nas diversas mostras individuais de artistas mulheres realizadas em mais de 60 anos de trajetória.

Entretanto, no museu baiano mais antigo do Estado, a hegemonia masculina é preocupante. Se você acessar o acervo de 86 pinturas do Museu de Arte da Bahia (MAB) disponibilizado no GoogleArts, você verá que nenhuma artista é mulher, e embora das 56 peças onde aparecem figuras humanas, 50% sejam femininas, pelo menos seis aparecem nuas ou seminuas enquanto apenas uma figura masculina aparece sem roupa – todavia, semi-oculto pela nudez de uma mulher em primeiro plano. Essa produção corresponde majoritariamente a grandes mestres acadêmicos vinculados à Escola de Belas Artes da Bahia. Alguém pode alegar que o fato de não haver artistas mulheres nesse recorte da coleção do MAB seja porque, até fins do século XIX, a maioria das mulheres artistas, ao contrário dos seus colegas homens, não tinham permissão para treinamento acadêmico. Em geral, ocorria que muitas delas, por serem filhas ou esposas de artistas, aprendiam algumas técnicas com seus parentes do sexo masculino. Contudo, as temáticas que as artistas mulheres podiam trabalhar estavam restritas às artes do retrato e da natureza morta, pois eram proibidas de estudos de nu e de anatomia. Nesse recorte do acervo do MAB, 60% das obras são datadas antes do século XX, portanto não há artistas mulheres nos 40% restantes por puro convencionalismo machista e patriarcal. Apesar do conhecimento incipiente sobre a produção artística feminina na Bahia na primeira metade do século XX, pode-se dizer que nos últimos anos a discussão da representatividade feminina nos acervos baianos está apenas engatinhando.

Mas o escasso perfil feminino dos acervos do MAM-BA e do MAB não é uma especificidade da Bahia. É fácil constatar a enorme disparidade entre artistas masculinos e artistas femininas na maioria das mostras e coleções dos grandes museus e instituições artísticas do Brasil e do mundo. Em 1986 as ações pioneiras do Guerrilla Girls, coletivo artístico feminista dos EUA, explicitaram tal desigualdade de gênero e raça dentro da comunidade artística e nas coleções dos grandes museus de Nova York. Uma das suas peças mais famosas questiona: “As mulheres precisam estar nuas para entrarem no Metropolitan Museum? 5% das artistas na seção de arte moderna são mulheres, mas 85% da nudez nas obras é feminina”.

De modo geral, a construção de narrativas da arte, as estruturas de legitimação e os percursos de reconhecimento da produção artística sempre foram dominados por homens brancos héteros e europeus. Alguns estudos já assinalaram a escassez ou inexistência de referências a mulheres artistas nos manuais de História da Arte mais conhecidos. Nesse sentido, representatividade e igualdade de gênero são pautas que vêm orientando diversas instâncias do meio artístico contemporâneo e da história da arte, desde a aquisição de obras de artistas mulheres pelas grandes coleções até a promoção de mostras e eventos com foco na atuação e no legado feminino ao longo do tempo. Mas as estratégias de reparação da exclusão feminina são ainda frágeis e irregulares e, infelizmente, as assimetrias não ficam restritas às artes visuais.

No quadriênio 2018/2021, segundo o relatório da UNESCO “Re|Shaping Policies for Creativity” (Reformando Políticas para a Criatividade), divulgado em fevereiro de 2022, apesar das mulheres serem responsáveis por 48,1% do setor criativo e de entretenimento em 180 países, elas ainda estão distantes de se equiparar à representação, reconhecimento e acesso financeiro dos seus colegas homens. Considerando que apenas 53% dos países coletam e compartilham dados de seguimento da igualdade de gênero em cada setor da cultura e comunicação, a disparidade de representação feminina é extremamente comum. Apesar das diferenças regionais, em geral, no ano de 2020, as mulheres ocupavam 40% dos cargos de liderança em conselhos ou instituições federais de arte, frente aos 30% de 2017. Todavia, nos países de América Latina e Caribe, os indicadores de 2020 apontam para uma representatividade maior (58%). O levantamento da UNESCO também traz um interessante diagnóstico sobre a crescente participação das mulheres em 20 das principais bienais internacionais de arte. Entre 2015 e 2017, a presença de mulheres artistas e curadoras oscilava entre 26% (Bienal de Havana) e 43% (Bienal de Istambul). Já entre 2018 e 2020, a representatividade feminina nas Bienais aumentou, registrando entre 40% (Bienal de La Havana) e 55% (Bienal de Istambul) tanto na esfera artística quanto na curadoria. Porém, apenas três bienais tiveram uma presença maior de mulheres artistas e curadoras nas suas edições entre 2018 e 2020: a de São Paulo (Brasil) com 61%, a de Istambul (Turquia) com 55%, e a de Whitney (Estados Unidos) com 52%. Sim, a bienal brasileira é a que tem mais mulheres envolvidas na sua realização, superando algumas das mostras mais famosas como a Bienal de Veneza (49%) e a Documenta de Kassel (44%).

Porém, se depender da 59ª Bienal de Veneza, o próximo relatório da UNESCO vai mostrar um equilíbrio de gênero muito melhor. Sob curadoria de Cecilia Alemani, a exibição principal intitulada “The Milk of Dreams” (O Leite dos Sonhos) é uma referência a uma série de desenhos que mais tarde foram transformados em livro infantil pela artista surrealista Leonora Carrington. Sim, a Bienal se inspira em uma artista mulher, com a primeira curadora italiana à frente do evento em quase 130 anos de mostra e que incluiu centenas de outras artistas mulheres. Uma verdadeira pancada no cânone hegemônico! A presente edição (de 23 de março a 27 de novembro de 2022) da “Biennale”, que é a mais antiga e reconhecida do circuito de arte internacional, compreende mais de 400 artistas e 31 eventos paralelos. A esmagadora maioria (90%) dos 213 nomes escalados por Alemani é de mulheres ou não binários, visando também à inclusão e relevância da arte afrodescendente. E Veneza não é o único lugar de concentração de criatividade feminina neste ano. Outra grande mostra concomitante que está contribuindo para a representatividade de gênero é a atual edição (de 04 de julho a 25 de setembro de 2022) do Les Rencontres d’Arles, um dos mais importantes festivais internacionais de fotografia desde 1970. Com 65 exposições distribuídas em 40 locais e instituições de Arles e outras cidades do sul da França, o foco principal de 2022 é o longo processo de reconhecimento de mulheres fotógrafas, de figuras históricas a artistas esquecidas ou pouco conhecidas e jovens talentos emergentes.

No Brasil, não tenho notícia de levantamentos sobre o papel das mulheres no circuito cultural e artístico nacional, tanto institucional quanto mercadologicamente. Além da excelente presença feminina na Bienal de São Paulo dos últimos anos, já assinalada pelo relatório da UNESCO, creio que a principal instituição que tem questionado o assunto de modo explícito é o Museu de Arte de São Paulo (MASP). Desde 2014, a direção artística de Adriano Pedrosa, à frente de uma equipe curatorial e de pesquisa composta majoritariamente por mulheres, vem desenvolvendo exposições coletivas e individuais nas quais a produção de artistas mulheres é uma prioridade. Entre 2015 e 2019, das 60 exposições realizadas, pelo menos 24 focalizaram artistas mulheres. Projetos de enorme sucesso de público e de crítica, como “Histórias das Mulheres: Artistas até 1900” e “Histórias Feministas: Artistas depois de 2000” apresentadas em 2019, “Histórias da Sexualidade” em 2018 e “Guerrilla Girls 1985-2017” em 2017, motivaram eventos paralelos de ampla discussão da produção feminina sob diversos recortes, através de ciclos de debates, publicações e atividades educativas e de mediação com diferentes públicos. Inclusive nos últimos três anos, apesar dos impactos desastrosos da pandemia de covid-19 e do contexto político de retrocesso generalizado, sobretudo nas pautas culturais do Brasil, o MASP tem conseguido afirmar e ampliar esse foco sobre a produção das mulheres. Se, em 2019, das 16 exposições realizadas, 13 foram centradas em artistas mulheres – isto é, 81% da pauta do MASP antes da pandemia –, tal política curatorial foi mantida em 2020 e 2021 com 17 mostras específicas das 21 apresentadas.

O compromisso do MASP com a equiparação de gênero é ainda mais importante e exemplar quando comparado com o perfil das realizações de instituições de reconhecida trajetória internacional como Tate Modern e National Gallery em Londres. Desde que a Tate Modern foi inaugurada em 2000, foram realizadas 226 exposições, das quais 47 (quase 21%) foram, são ou serão até final de 2022 de autoras femininas. Nos primeiros dez anos foram 14 mostras individuais de artistas mulheres; na década seguinte, desde 2011 até o início da pandemia em 2020, esse número quase duplicou, com 24 exposições de artistas mulheres; e nos últimos dois anos, desde novembro de 2020, já são seis mostras e pelo menos mais três projetadas até o final de 2022 exclusivamente de artistas femininas. Em comparação, na tradicionalíssima National Gallery, das 145 exposições realizadas desde julho de 2007 (incluídas as seis projetadas até final de 2022), apenas seis dessas são individuais de artistas mulheres. Desses inexpressivos 4%, apenas uma em fins de 2020 foi dedicada a uma artista falecida, a italiana Artemisia Gentileschi do século XVII.

Apesar das limitações prospectivas desse recorte institucional lacunar, inclusive pela dificuldade de acesso a dados históricos de museus e galerias, se no Brasil temos alguns momentos de esperança, na maioria do circuito internacional a representatividade de gênero é um assunto incipiente. Como coloquei até aqui, além da visibilidade das criações das mulheres através de eventos e exposições, os acervos são importantes dispositivos de legitimação da produção artística. Porém, ainda são raras as coleções específicas de arte produzida pelas artistas femininas.

O pioneiro Museu das Mulheres (Frauenmuseum) em Bonn, fundado por Marianne Pitzen em 1981, é uma das exceções – que mantém parcerias com o Frauenmuseum Haus de Berlim – e tem inspirado a criação de instituições análogas em outros lugares. Com mais de 700 exposições e eventos realizados, o museu de Bonn promove mulheres artistas, alemãs e internacionais, e sua produção. Através de diversas mostras temáticas, pesquisas e atividades, uma equipe multidisciplinar examina a circulação e legitimação da arte feminina, inclusive com efeitos mercadológicos e de consolidação de carreiras de diversas artistas. Além da formação de uma rica coleção própria que inclui mais de 3.000 obras, a instituição possui biblioteca e arquivo sobre temas especializados, sedia feiras de arte e design, e conta com galeria, editora e estúdios próprios. A partir do trabalho da instituição de Bonn, em 2008 em Merano (Itália) foi fundada uma rede de museus e instituições dedicadas às temáticas de gênero e das mulheres, consolidada desde 2012 em Alice Springs (Austrália) na International Association of Women’s Museums (IAWM). Atualmente, a associação compreende pelo menos 14 museus de mulheres no mundo. Além dos museus de Bonn, Merano e Alice Springs, há centros em Lisboa (Portugal), Hittisau (Áustria), Aarhus (Dinamarca), Gorée (Senegal), Istambul (Turquia), Hanói (Vietnam), Kharkiv (Ucrânia) e quatro instituições nos EUA em Dallas, Fort Lee, San Francisco e Washington. Mas, nesse assunto de museus de gênero, não posso deixar de mencionar o pioneirismo de Henriqueta Martins Catharino em Salvador. Apesar de não ser uma instância com perfil artístico cotejável com os museus de mulheres antes citados, e sob uma visão católica e bastante patriarcal, D. Henriqueta fundou em 1923 a Casa São Vicente, iniciativa filantrópica de acolhimento e qualificação profissional para mulheres, principalmente pobres e mães solteiras, que seria o embrião do atual Instituto Feminino da Bahia, consolidado com a inauguração do edifício próprio em 1939.

Retomando a foco da arte feminina, parece-me que, em um contexto internacional ocidental, o percurso de valorização simbólica e mercadológica da arte das artistas mulheres pode ser acotado entre 1970, momento de apresentação do célebre banquete de Judy Chicago, e 2018, quando a pintura “Propped” (1992) de Jenny Saville foi vendida pela Sotheby’s de Londres por £ 9,5 milhões (US$ 12,4 milhões).

A “Dinner Party” de Judy Chicago foi exposta pela primeira vez em 1979 no Museu de Arte Contemporânea de São Francisco e, depois de passar por vários lugares, está hoje no acervo do Brooklyn Museum de Nova York. Porém, por muito tempo, a obra foi considerada pornográfica e encontrou muitas resistências dos patronatos e direções dos museus estadunidenses. Apesar de constituir um importante ícone da arte feminista dos anos 1970 e um marco na arte do século XX, apeça ficou quase esquecida em um galpão durante uma década até se tornar o foco principal do Centro de Arte Feminista Elizabeth A. Sackler, aberto em 2007 como primeiro centro museológico dedicado à arte feminista nos Estados Unidos. O banquete cerimonial homenageia 1.038 mulheres importantes da história, com uma enorme mesa triangular com 39 lugares que destaca mulheres famosas em diferentes áreas, enquanto nomes de outras 999 mulheres aparecem inscritos em ouro no piso de ladrilhos brancos. Cada lugar na mesa tem um jogo americano bordado, um cálice, utensílios de ouro, e um prato de porcelana redondo com relevo centralizado baseado em formas vulvares e de borboleta. Um detalhe paradoxal é que os cálices, todos iguais, foram produzidos por um designer homem, enquanto as porcelanas e os bordados, manifestações frequentemente reduzidas ao “artesanato feminino” e não entendidas como Arte, foram realizados por colaboradoras mulheres. Ademais, ante a dificuldade de encontrar um atelier para ensinar bordado às colaboradoras da artista, os jogos americanos tiveram que ser produzidos por uma firma que fazia paramentos litúrgicos e roupas de padres. Atualmente, a instalação permanente de Judy Chicago é aprimorada por um programa curatorial de exposições rotativas da Herstory Gallery do Centro Sackler, relacionadas às mulheres homenageadas na mesa.

Quatro décadas depois dessa obra, a pintura de um grande nu feminino atingiu um novo recorde na Sotheby’s de 2018 consagrando Jenny Saville como a artista feminina viva mais cara do mundo. A obra “Propped” é uma das pinturas exibidas em “Sensation”, a polêmica mostra de 1997 com obras dos Jovens Artistas Britânicos (YBAs) da coleção de Charles Saatchi. Porém, em termos de mercado de arte, tal recorde é apenas uma exceção para as artistas mulheres. E, desculpe mais uma vez, mas devo voltar aos numerinhos incômodos e aos percentuais eloquentes. Segundo um estudo de Artnet e Sotheby’s, apesar da narrativa de conscientização sobre a desigualdade de gênero nas artes, entre 2009 e 2019, apenas 11% de todas as aquisições de 26 grandes museus dos Estados Unidos, por meio de compras diretas ou doações, foram obras de autoria feminina. Das 260.470 obras adquiridas, apenas 29.247 eram obras de arte de mulheres, o que representa apenas 2% do mercado de arte formalizado. Além disso, das 5.832 artistas cujos trabalhos foram coletados por museus ao longo de dez anos, apenas 190 (3,3%) eram artistas afro-americanas. Embora não disponha de dados numéricos, parece-me coerente pensar que, além das possíveis preferências machistas e não raro misóginas dos patronatos, os museus não compram mais arte de mulheres porque nas feiras e galerias também não há uma oferta significativa de produções femininas. Ou seja, as novas aquisições institucionais espelham a pouca representatividade de artistas mulheres no circuito de galerias e leilões.

Nessa questão de visibilidade, divulgação e circulação da produção feminina, parece-me interessante ressaltar o papel atual das mídias digitais. A exclusão das mulheres pela hegemonia masculina e a lógica patriarcal tem construído novos canais de reivindicação através da internet. Inclusive a misoginia institucionalizada e o machismo midiático vêm sendo fragilizados através de denúncias e questionamentos online. As redes sociais também têm contribuído muito para a democratização do conhecimento e do poder que não ocorre dentro das instituições. Pelo menos na última década, a baixa presença feminina nas galerias de arte e espaços tradicionais tem sido minimizada através de iniciativas como o perfil de Instagram “The Great Women Artist” de Katy Hessel, o site “Mujeres en el arte” de Concha Mayordomo, ou a página de Facebook “HERstory”. Nesses espaços virtuais, várias mulheres, principalmente artistas, têm saído da sombra do ostracismo.

Em síntese, a promoção cultural, artística, educativa e formativa numa perspectiva de género é um desafio árduo, com disparidades que variam de uma região para outra do mundo. Embora no Brasil e na Bahia tenhamos algumas iniciativas favoráveis, precisamos lutar pela conscientização e expandir a valorização do capital simbólico da produção feminina nas artes visuais e em todas as áreas. Então, “dá licença, dá licença, meu senhor”

Alejandra Muñoz é professora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia e atua em curadoria e crítica

Ilustração de Amine Barbuda. Pintora, ilustradora, cenógrafa, arquiteta e urbanista

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.