Crítica | Visuais


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Filhote de Esfinge

junho de 2018

Edição: 20

Sobre o livro O rabequeiro maneta e a fúria da Natureza, de Manu Maltez

Foi num forró com pouca dança que tomei conhecimento da história de Pata de Onça, um rabequeiro paraibano que chegou às promissoras terras paulistanas já em meio aos palcos de forró no Largo da Batata. O ano é 1986 e o bar era Asa Branca, casa de músicos nordestinos como Azulão, Dominguinhos e Zé Pitoco. Este último tocava zabumba na banda Fúria da Natureza, no forró de pouca dança que presenciei na Avenida Paulista, agora em 2018, no espaço Itaú Cultural. Ali foram abertos os trabalhos de Manu Maltez e seu bando, para narrar em tríplice-obra o causo do O rabequeiro maneta e a fúria da Natureza. Um livro – álbum musical – filme de animação, que está sendo lançado pouco a pouco e que será apresentado em Salvador no  Festival In-edit Brasil, na Sala Walter da Silveira, no dia 08 julho.

A obra deriva do encontro do músico, desenhista e diretor cinematográfico Manu Maltez com o rabequeiro maneta nos anos 2000, num forró universitário de São Paulo. No livro, o percurso do instrumentista vira um mapa ilustrado da música nordestina na cidade, que, através dos traços vertiginosos de Maltez, vivificam o estilo musical e narrativo na Pauliceia Desvairada e no interior do Nordeste. Em tinta nankin com pincel e bico de pena, no melhor estilo cordel-noir, os traços de Maltez lembram as paisagens nordestinas de Juraci Dórea e também as sombras e sortilégios de Marcelo Grassmann, outro que provou que para ser incorporado pelo Nordeste basta mover os pés devagarinho pra lá e pra cá.

Já na primeira cena, ambientada num barraco onde rola um risca-faca dos bons, vemos desenhada a luz de Jezebel, uma cantora felina que traga a alma do pobre rabequeiro. Ao passo que as duas personagens se apaixonam, os desenhos vão ficando mais e mais complexos, reforçando a ideia de costura e ruptura, penetração e afastamento. As cenas de sexo são pintadas como verdadeiras simbioses. Muitas vezes as figuras ficam indiscerníveis em meio à bagunça p&b, que vão dando um frio na barriga e uma vontade de dançar ao som do resfulego da rabeca. O livro é bom de ler ouvindo suas músicas, bem ao estilo do medievo brasileiro, que incorpora a tragédia na música e a pendura em varais de histórias.

As cenas construídas com a delicadeza exigida na literatura de cordel, com direito a garrafinhas de cachaças de bichos, bandeirolas, barracos e aquela gente que, como eu, Maltez e o rabequeiro, ficam esperando, no cantinho mais escuro do salão, alguém que entenda o descontrole dos nossos músculos e nos perdoe pelos pisões involuntários.

Amor?

é a mordida de um cachorro pitbull

que levou

a coxa da Laurinha e a bochecha do Felipe

Por brincadeira do tinhoso, Jezebel tinha nascido João Gilberto, no povoado de Boqueirão da Onça, na Bahia, cidade que também viu seu nome mudado para Conceição dos Gatos. É aí que a obra dá o seu salto quântico, cortando da própria carne qualquer maneirismo no trato do tema e no traço. Hoje, muitas vezes encarada como branding publicitário, a condição do amor não-cis é tratada no livro de Maltez com toda crueza exigida, para dela se extrair um realismo fantástico. O ressentimento e a violência tomam seu devido lugar ao lado do humano. O amor se torna ódio, decepamento e tinta. O conto de duas almas que se juntam numa volta ao ser andrógino aristofânico cai por terra e ouvimos imediatamente a Diotima de Sócrates (na voz de Assucena Assucena, que no show performa a canção) sussurrar em nossos ouvidos: o amor não é bom nem é belo; é um gênio que está entre um deus e um mortal, filho do Recurso e da Pobreza.

Repara a natureza morta

Se arrepia nessa fundição

Metamorfose assim não vale

Nem me fale

Caiu como uma luva

Mas olha só que a coisa envolve

Simbiose – luz e escuridão

Metamorfose assim é foda

Nebulose, puro vuco-vuco

Borges, em seu Livro dos seres imaginários, define a Quimera como um ser incabível nos tempos de hoje, impossível de ser concebido enquanto ideia, pois na significação do agora o mito surge como uma ideia falsa. Melhor que imaginá-la, portanto, seria transformá-la em qualquer outra coisa. Excessivamente heterogênea, uma das versões da origem da Quimera acontece num vulcão na Lícia, cuja base é feita de serpentes. Nas encostas há pradarias e cabras e nos cumes, leões fazem suas tocas. Já Rabelais pergunta: “uma quimera, oscilando no vazio, pode comer segundas intenções?” No vuco-vuco do agora, a quimera come um tanto de coisas, vira um processo de destruição e criação; do inefável extrai-se matéria, o maneta toca violino. A Quimera é a necessidade do Jovem Werther de se abismar. Assim a metamorfose vale.

Vai desculpando por tudo

Vai perdoando por nada

Sou um filhote de esfinge desse boqueirão

Nesse “ser esfinge”, há dois trabalhos que convergem em Manu maltez, ou que me lembram de sua assemblage conceitual. Um deles é o filme Hedwig and the angry inch (2001), um misto de filme B e animação fantástica sobre uma trans que conquistava os palcos da Berlim Oriental ao mesmo tempo em que perdia o namorado e o pênis. Uma das canções mais incríveis do filme é polegar raivoso, apresentada numa animação metamorfa em meio a um show ao vivo sobre o polegar de pênis que sobrou em Hedwig depois de sua cirurgia, aquele meio clitóris, meio fantasma que o sádico médico a deixou para ser sempre “incompleta” e que por fim se mostrou gerador de uma fúria criativa indômita. O outro é um conto das Mil e uma noites, no qual Sherazade narra a história de Amina, uma bela senhora recém-casada que deseja comprar um tecido cujo preço é mostrar sua face a um mercador. Imediatamente este lhe tasca uma mordida na cara. Amina é duramente castigada por seu marido, que esculpe uma cicatriz na tira de carne que lhe tirou, lhe desquita, arruína a sua vida e a deixa viva para que se lembre da sua desobediência moral. A dureza do corte no corpo das mulheres ou em um feminino manifestado, geralmente é precedido de uma autorização sobre qual modelo ou padrão (mesmo que não-cis) pode se manifestar; geralmente é precedido de violência e, mesmo as mais bonitas histórias de amor, como a do rabequeiro e de Jezebel, não escapam desta realidade subjetiva.

Diferentemente da moral comum das fábulas que envolvem belas damas – que basicamente neutralizam a alteridade e resolvem o conflito -, esta nos traz a dupla dor de ter/perder um membro fantasma. Eis os encaixes e desencaixes da vida, que por vias mais que tortas, às vezes nos dão uma mão – mesmo que seja a de uma jaguatirica. É o que me faz lembrar que a antídoto para a totalização moral é o estilhaçamento, ou mesmo as fragmentações. Manu Maltez trata de um corpus artístico fragmentado e costurado; cada fragmento de sua obra, música, desenho ou filme explora um diferente tempo de percepção. Além disso, a fragmentação é um antídoto para a expectativa. Vítima das totalizações e renovações exigidas pela fúria dos movimentos de vanguarda, da arte se esperam sempre grandes trabalhos. Na maioria dos casos esta grandeza é expressa cartesianamente, seja pelo alcance de visualizações ou pela “genialidade”. O rabequeiro Maneta nos obriga a passar um tempo maior com essa história, dinamizando as possíveis montagens mnemônicas que podemos produzir nas diversas entradas de sua narrativa.


Amine Barbuda é editora da Barril, artista visual, arquiteta e urbanista.

 

 

 

 

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