Ensaio | Cênicas


Foto de Thor Vaz

Espectro das Divindades

julho de 2016

Edição: 6


Estava lendo, isso sempre faz o sujeito refletir e lembrar. Então, primeiro me lembrei de Daniel, que o tempo em que passei confinado com ele e com meus oito companheiros foi muito marcante. E, indiscutivelmente, ainda desfilo as cicatrizes desta época.

Agora as reflexões. Na verdade venho, cada dia mais, enraizando os conceitos que me aparecem menos nebulosos, acerca da minha própria essência. Pra mim estão cada vez mais claras, (talvez sempre tenham estado) as máscaras que usei constantemente no passado como ferramenta para transitar em diversos meios, e me comunicar em todos os aspectos. Em minha juventude, servi a um circo social como um macaco adestrado, e com isso tive êxito em meus empreendimentos mais diversos. Fazem parte também da arte da atuação a manipulação e dissimulação. Estes são conceitos de construção de estruturas sociais, e para um ator competente é importante o seu domínio. Eu fui um homem espetacularizado cotidianamente, pois acreditava que através da exacerbação alcançaria o êxtase. E não fui equivocado neste ponto.

O caso, é que com o passar dos anos, eu cansei deste personagem. Um personagem assim tão intenso, detalhadamente excessivo, ainda que encantasse e causasse furor, era cansativo em demasia, e eu não podia sustentá-lo por mais tempo. Ao passo que o meio também me possibilitou que o abandonasse por completo, e com isso pude estudar o meu contínuo desnudamento até que o espelho mirasse a minha essência.

Se eu remontar o passado, posso concluir que esta experiência se dá desde anos atrás. E não poderia ser diferente, tal processo é enfadonho e requer uma explosão interna contida, em que tudo precisa corroborar para que aconteça, e não acontece de uma hora pra outra.

O caso é que agora, neste momento, me vejo sem máscara, tanto que tenho extrema dificuldade de comunicação. Preciso lembrar-me, constantemente, como falava com fulano ou que gestos usava para interagir com ciclano, e por isso é mais cômodo ficar em casa. Entretanto, realizando o meu trabalho – quando o faço – tenho tido mais facilidade para compor uma personalidade conveniente. Existe um peso imenso em estar despido, mas na hora em que é necessário “fantasiar-se”, ou, melhor dizendo, construir o corpo a partir da essência exposta, encontro maior facilidade.

Devo dizer, com certo medo de ser equivocado, que tenho buscado a santidade.

A santidade do dia-a-dia é a mais trabalhosa. Romper os vícios. Descaracterizar os débeis desconfortos. Assumir a importância dos seres que te rodeiam… E a mais prazerosa e fácil (quero falar desta) é a santidade dos eventos extracotidianos. Que nos transportam pra fora do nosso não-mundo. A ideia do teatro como meio de transporte. Ao que chegamos a estes relatos que expõem minha arte cênica:

RELATO 1

Fez-se imenso. Coeso, inteiro. E assim tudo tomou aos seus braços e tudo era os seus braços e assim tudo acalentou e ninou e bendisse. Quando a evolução se deu, e o produto de seu poder – por magia e beleza – pareceu crescer mais que O CRIADOR intuiu dividir-se e multiplicar-se e vivenciar-se enquanto outros. Sendo outros, clamou a si mesmo, bendisse a si mesmo e a si mesmo amou. Ao passo que sendo outros também, odiou ao próprio si, praguejou contra o próprio ser e também matou-se, um ao mesmo um. Ainda em sarcástica beleza de magia, fingia-se esquecer de ser a si e ser o outro, porque perdoava a si mesmo enquanto um outro si à si julgava e condenava e punia e prendia – e prendendo torturava e matava. Enquanto a magia da multiplicação fazia voltar ao inicio o homem – em outro ponto de partida, como que indicasse que o homem nasceu no passado e por isso nunca surge do zero.

Ao longo de toda longa estrada, vem mais um e mais outro e ainda outro e outro multiplicado do mesmo ser original a quem desconhecem e chamam de pai. Qual pai não reconhece e acalanta o próprio filho? Qual pai se cega a ver-se multiplicado em filhos? Ao que alguns reconhecem: -Somos galhos de uma mesma árvore. – E a todos trata por irmãos.

Hoje sinto algo como o vazio. O oco.

É uma saudade enraizada da lembrança do futuro. Ás vezes tenho a impressão de que todos temos a necessidade de nos descobrirmos mortos a longos anos. Como quem de repente se dá conta que morreu há 20 ou 30 anos atrás. Por isso essa estranha necessidade de ouvir a mesma música repetidamente. E permanecer ligados ás mesmas pessoas. Como se tu tivesses a alma dividida. Repartida entre irmãos – não de forma justa, cabendo a um ou a outro um quinhão maior.

RELATO 2

A questão não é (e nunca foi) formar uma supremacia aqui. Não existe sentido lógico pra isso, esta supremacia do paraíso já existe em diversos espaços/tempo, primo/irmãos deste, até mesmo em graus nem sequer imaginados. Existe um aglomerado que emana uma energia em uníssono- que não posso chamar de energia de cura porque não existe enfermidade.

A questão é auxiliar. Sempre auxiliar. Não somos os protagonistas aqui, não se trata do nosso bem estar, não se trata da realização dos nossos desejos. É a realização da necessidade deles. Dos enfermos. Viemos propiciar a construção da estrada para cura, a qual precisa ser percorrida por eles. Existe sim uma ansiedade, até uma privação da lógica, um frenesi pelo fato de detectarmos certa lentidão na evolução dos processos de emancipação mental/espiritual. Isso ocorre, provavelmente, por termos a nossa noção de tempo/espaço completamente nebulosa, temos os olhos embaçados de fumaça justamente por estarmos em meio ao fogo. Contudo é necessário lutar contra estes instintos primitivos que tanto nos perturbam neste contexto tempo/espaço específico.

Também não devemos nos compadecer em demasia pela condição sensível daqueles que desistiram. Desistir é compreensível, mas não faz de nenhum de nós vítima do processo.

Não existem vítimas. Existem homens e mulheres que esperam acessibilidade. E a acessibilidade tem chegado ao encontro deles, cada vez mais, também por nosso intermédio.

Devemos ter em mente também, que as castas de segregação comumente utilizadas entre eles, aquelas que os definem entre si, para nós nada representa. São ilusórias, ingênuas, menos que medíocres. Por isso tenhamos em mente que homens e mulheres (de espírito) esperançosos transitam em todas as classes sociais e intelectuais, gêneros e idades, credos, raças, nações.

Devemos ter cuidado ao aceitar que existem homens melhores que homens. O melhor é que não aceitemos, pois quase sempre erramos nisso. O que hoje chamamos de raça humana, talvez possa ser diferenciada apenas em dois nichos: Espíritos de acesso e espíritos em acesso, sendo os segundos 99% dos homens.

Essa é a exposição grosseira, obviamente. Que de fino só o tato toca. Só o atrito. O ato. A via é o conteúdo. O ator é a cena. Tudo está contido no óbvio, mais que uma cabeça de alfinete que condensa o universo conhecido e desconhecido, pronto à explosão. Eu sou o átomo, e eu carrego a responsabilidade de ser. Devo concluir com o diálogo que encerra o meu derradeiro texto escrito, em que tento desenvolver a ideia da função do ator:

UM ATOR

Eu sou uma divindade.

O AUTOR

É uma representação de. Você é uma representação de.

UM ATOR

Isso já é muito.

O AUTOR

É. Todos os homens são a representação de. É a função do divino. Dar função ao homem.

UM ATOR

Mas eu sou um ator. É a minha função.

O AUTOR

Essa é a função de toda mulher e homem. O ator, por si só, não tem função. A não ser essa. A medíocre função de apenas ser humano.

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