Selfie | Cênicas


Foto de Nina La Croix

ENTREVISTAS COM O SUL

março de 2020

Edição: 21


A partir da minha estadia na cidade Heidelberg (Alemanha) e de minha participação no ¡Adelante! – Iberoamerikanisches Theaterfestival

 

Escrevi em minha cadernetinha de notas: … e não espere niilismo de quem nasceu do abismo. E disse pra mim mesmo que num dia qualquer eu daria atenção àquele joguete de palavras que se pretendia capcioso e até mesmo político. Não houve atenção, nem prática e nenhuma filosofia produzida entre os dias de bucólica inspiração, arquitetando uma frase de efeito, e o dia em que dei uma entrevista para a TV local da cidade de Heidelberg (Alemanha). Entre mim e a intransigente repórter alemã, existiu um engasgo tolo, e de minha parte custa entender a derrota. “Quantas materialidades, quantas palavrinhas que se desejam ser alguma coisa ou quantos pensamentos pueris vou produzir e vou jogar fora? Lançando para a gaveta por não achar lá essas coisas e depois não achar nada, porque houve esquecimento… ou se perderam num copo de café durante a madrugada. Quantos textinhos escritos na cadernetinha serão empapados sem a responsabilidade de secarem ao sol? Eufemismos criativos que prometiam alguma intensidade. Quantas subtrações… Quantos diminutos…”.

Imerso no ¡Adelante! (Festival Ibero-americano de Teatro), a caderneta que guardo no bolso, com o intuito de aprisionar o pensamento fugaz em algum aforismo, protelando o incremento e o entendimento, foi condenada à penumbra. “… e não espere niilismo de quem nasceu do abismo”, aparece há um tempo, e como simples nota, quando conversei brevemente com um amigo sobre a produção intelectual do Brasil e, por consequência, da América Latina. Questionando uma possível tradição latino-americana no que tange à filosofia – ou seja, aos aspectos metodológicos e estruturais que configuram determinado pensamento numa frequência problemática que reclama resoluções – disse que a tradição intelectual de nosso continente provém mais da ebulição social-política, duma herança colonial, do que genuinamente dos males do espírito, da metafísica ou de qualquer digressão sobre a existência humana ou a existência de sentido sobre as coisas – o que lhe exige proposição. 

Qual produção esperar de uma terra arrasada, em contínuo massacre ambiental e humano, se não a perspectiva de um ressuscitado? Talvez seja, por isso, uma filosofia pecaminosa, física, rubra e sangrenta, cheia de calombos, feita do vermelho e da gangrena do latino-americano que a produz. No lugar de metafísica, o monopólio. No lugar da busca do sentido, produção de sentido. No lugar do reclame a soluções, proposição. No lugar de espírito, corpo. O conceito de práxis nunca teve um sentido tão violento quanto no sul global, arriscaria dizer.

Essa complexa tradição latino-americana está na base da experiência intelectual e artística, e, em grande parte, as expressões e subjetividades poéticas possuem isso de modo imanente. Até mesmo o aparente abstracionismo é devorado por essa herança. À revelia das produções, há uma manutenção, experimentação ou invenção de linguagens que são consumidas por uma intensa, e brutal, motivação política. Motivação. O agônico carma da(o) artista latino-americana(o) que possui uma expressão que é filha da falta, da vaga, do abismo. Uma poética nascida da violência e de suas sistêmicas variantes. Mas com a forte intenção de ser emancipatória.

Falo sobre motivação, pois não me interessa mais a cisma estética para com o que é político demais, com o que é discursivo demais ou, na outra ponta, com o que é abstracionismo, com o que é experimental. Sem querer ofender ninguém, pela perspectiva da birra e do ranço, isso me é irrelevante. A única forma de agregar valor ao debate é inserindo as inciativas de invisibilidade e de assimilação momentâneas dessas frentes estéticas – e de modo honesto. Certificando que isso é o que dificulta a visão para uma diversidade estética. Adicionando o diesel da indústria, do capitalismo nisso tudo.

QUASEILHAS estava fazendo o seu 3º festival, e os dias que antecedem a estreia sempre me são empecilhos para ver as obras do evento. Isso é devido à intensidade da montagem da instalação cenográfica que, geralmente, leva de 6 a 10 dias – além das consequentes apresentações. Logo, não pude ver todas as obras. Somente quatro delas. Mas no transcorrer do ¡Adelante! Festival, era possível observar as motivações políticas que estavam sendo organizadas, tanto da parte dos europeus quanto de nossa parte, latinos. Estando lá bem antes do início do festival, o que me possibilitou um diálogo um pouco maior com as intencionalidades da produção, pude organizar algumas impressões elementares sobre esse encontro entre a Europa e o Sul. Seja pela perspectiva intelectual ou pela artística. 

Da parte sul, através da visão de quem é latino-americano, a vivência deslocada me fez questionar o gênero político. Talvez ele não exista enquanto gênero, e o termo nos trópicos se torne irrisório. O que existe é, precisamente, uma tradição artística latino-americana que deve ser reconhecida não só esteticamente, mas, acima de tudo, epistemologicamente. 

Já da parte norte, observei dois movimentos. O primeiro, a honestidade do interesse estético investido pela produção do festival. Isso não ofuscava o outro interesse, o político, que também havia, mas que estava longe de um exotismo antropológico, como poderíamos imaginar a priori, sendo nós bons sulistas desconfiados. Em uma entrevista dada por duas das curadoras do festival, Ilona Goyeneche (México) e Lene Grösch (Alemanha), há uma pergunta de extrema relevância levantada pela curadora alemã, ao relatar a experiência de convidar uma obra venezuelana: “¿qué significa para una agrupación de Venezuela una invitación a Europa, a Alemania?”. Uma pergunta que exige fôlego na resposta. O fato de também convidarem um dos sociólogos brasileiros mais importantes do momento, Jessé Souza, demonstrava uma certa preocupação em entender a atual problemática latino-americana por um viés menos parcelado e mais elástico. Isso gera um panorama histórico mais digno e que não se restringe à atualidade, como se ela fosse uma entidade isolada da linha historiográfica. Principalmente se levarmos em conta, a despeito das críticas, os estudos sobre classes sociais no Brasil promovidos por Jessé.

Tão logo, o lema do evento, que teve sua 2ª edição este ano, foi El arte en resistência – ligeiramente semelhante ao IC: Encontro de Artes (Salvador-BA, Brasil) em 2018, com o lema Arte como Luta. No entanto, lendo a mesma entrevista, saberemos que a 1ª edição, ocorrida em 2017, também possuía um forte apelo político. Sobre a diferença entre as edições, Lene Grösch explica que “En la primera edición de ¡Adelante! tuvimos varias producciones que reflexionaban sobre su propia historia nacional. Y esta vez las describiría más bien como obras autobiográficas, personales, documentales que indagan en el presente más que en el pasado.”. Aqui há uma tensão conceitual, talvez em razão de nossas perspectivas culturais. 

Não posso entender história nacional como passado, como coisa caída. Soa pra mim como algo suscetível a amnésia. É demais para um latino-americano, e algo que custamos a entender; assim como eu não posso entender a Alemanha do hoje, progressista, à parte o impulso conservador, sem entender, pelo menos, o pós-guerra – daí a elasticidade da análise. Do ponto de vista histórico, e agora falo de minha experiência como afro-brasileiro, meu corpo e a história do país onde nasci são inseparáveis. De modo que não seria possível deslocar a minha íntima relação com a morte do influxo histórico do Brasil. O fato de nos últimos anos ter havido uma movimentação de obras de arte que se situam num processo de autorreferências (termo que possui algumas distinções do autobiográfico, por exemplo), é a prova que as motivações político-estéticas no continente são extremamente variadas e se atualizam, constituindo-se no e do influxo. De que houve o entendimento de alguns artistas que a história política do país, bem como as materialidades estéticas de que vão se valer, estavam plantadas no quintal de sua própria casa – a terra ronca, em algum momento.  

Contudo, se na curadoria das obras prevalecia um conceito curatorial pautado na autobiografia (a exemplo de QUASEILHAS, Casa Calabaza e Princesas) e/ou no documental (como em Funeral para la Idea de un Hombre, Tierras del Sud e Campo Minado), ainda havia no entorno um interesse para com as crises políticas latino-americanas, naturalmente. Tais interesses estavam arraigados na sucessão de algumas catástrofes políticas no continente, como os golpes na Bolívia e no Brasil, e a crise venezuelana ou chilena. Crises, como marcadores isolados. Muito embora esse não seja o discurso do ¡Adelante!, à sua volta pairava a cristalização desses acontecimentos. Isso era visível nas perguntas da audiência, nas conversas pós exposição dos trabalhos e, claro, na relação com a imprensa. Este é o segundo movimento de minha observação para com o norte naquele contexto: de que os olhares europeus moviam seus faróis para o sul quando se explodia uma bomba, sem, necessariamente, organizar um interesse de saber em que parte do influxo histórico se projetou a detonação. O que gera estereótipos. 

No decorrer daquela entrevista, pensei que se eu tivesse atendido a demanda de desenvolver o que anotei em minha caderneta, estaria mais disposto para aquela sobrecarregada situação. Mas ao final, ficou claro que não importava o que eu tinha ou o que eu poderia ter desenvolvido ou produzido.  A entrevista era, diria Sontag, o ‘outro’ sendo “vivido como uma rigorosa purificação do ‘si’” – o si de quem me entrevista. Por mais que eu me debruçasse sobre as minhas motivações criativas, parecia eu quem forçava um tema, o que agoniava a mulher. O que importava para minha entrevistadora era a redução de minha obra a uma tag: Bolsonaro. Por consequência, era a redução de uma complexidade histórica. A recusa em não querer entender o Brasil de hoje sem o medo da prolixidade, e sem o automatismo operante no sensacionalismo, que contagiou as relações fundamentais e ordinárias

Para entender a tradição artístico-intelectual da América Latina, se aconselha lidar com os enredos históricos numa atitude elástica, até onde pode ir a tensão. Não cabe numa entrevista. Muito menos numa resposta rápida sobre a situação dos negros no Brasil. Exige um trabalho. E no terreno organizado por minha entrevistadora, a produção latino-americana não serve quando vence o abismo, mas somente quando o corpo está ainda estirado, no fundo, em nada, dependente de alguns raios de sol. Mas veja… ela queria ser o sol.


Diego Araúja é diretor de teatro, escritor e dramaturgo.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.