As discussões acerca do feminismo vêm se popularizando. O número de obras teatrais/performáticas assumidamente feministas vêm crescendo. Entretanto, todas as tentativas de problematização da misoginia nas artes ainda permanecem num campo estrutural (de formação, de composição, de produção, de mercado e etc). Diante do número crescente de obras que tratam desta temática, está na hora de aprofundarmos na discussão poética destes acontecimentos.
Para que isso comece a acontecer, acredito serem necessários dois fatores: 1- que feministas passem a criticar obras feministas. 2- Que nos atentemos às conexões entre forma e discurso engendradas por essas criadoras.
O primeiro texto que escrevi aqui foi UMA DOR DE DENTE E “CONFISSÕES DE MULHERES DE 30” na coluna Treta. Onde questionei a representação sócio-política da mulher naquele espetáculo. Escolhi denunciar um espetáculo incômodo ao invés de afirmar outras potências. O que fez com que três obras assumidamente feministas que foram criticadas pela Revista Barril, na distribuição das colunas e interesses, não fossem criticadas por mim. Mas por homens.
Assumo aqui o Mea Culpa, que positivamente foi o motor do presente texto.
A partir das críticas Das Fissuras Sincopadas (Crítica de Isto Não É Uma Mulata – escrita por Daniel Guerra), Paulada da Selva (Crítica da performance Paulada Silva Selva de Paula Carneiro – escrita por Daniel Guerra) e Notas Musicais Para Uma Obsessiva Dantesca (Crítica do meu solo Obsessiva Dantesca – escrita por Alex Simões), pretendo apontar aspectos que poderiam ser aprofundados mas que deixaram de ser por esbarrarem na parede do que ela diz X como ela diz.
É preciso sempre lembrar que o feminismo é uma ideia. A ideia de que é necessário a criação de um mundo onde os direitos sejam distribuídos de maneira mais equânime entre os gêneros e ao mesmo tempo o fim da classificação de gênero. Assumir-se feminista é uma ética. Uma escolha de um posicionamento na vida e diante das opressões, onde paulatinamente vamos nos sentindo mais seguras de nós mesmas.
Quando esta ideia e ética são colocadas em obras de arte nos deparamos com experimentações poético/estéticas.
É importante destacar o termo experimentação aqui.
Em sua crítica à Obsessiva Dantesca Alex Simões destaca: Arte e vida misturadas significam. Se na vida estamos experimentando formas de enfrentarmos as estruturas misóginas do cotidiano, das relações, dos afetos e etc, temos experimentado maneiras de enfrentarmos as estruturas misóginas e colonialistas que organizam nossas criações. O que acontece em uma acontece na outra.
Todas as três obras criticadas esbarram na estrutura de sua performatividade pretendida – que afinal encontra-se concentrada no aspecto autobiográfico – e a superfície de representação simbólica, discursiva. Este é o lugar da mulher que se assume feminista. Entre a sua subjetividade e a autoimagem produzida por uma sociedade que a simplifica. Entre sua individualidade e um coletivo que a representa. E ainda se tratando de mulheres negras, entre a animalização a qual a mulher negra é submetida e a estereotipação que as mulheres de maneira geral o são.
Mas na crítica de Daniel sobre Isto Não É Uma Mulata, ele preferiu analisar os aspectos performativos X os aspectos representacionais. Embora diga que pretende permanecer […] justo na fissura entre, o entre escapa ao crítico. O entre na obra de Mônica, na de Paula e na minha, é forma e é tema. O entre é potente, criador e desnormatizado, logo um espaço propício a experimentação.
Ainda no texto Das fissuras sincopadas, o crítico apresenta um paradoxo presente na obra de Mônica Santana “a morte da representação e uma busca de representatividade”.
Estamos falando de outra representação. Uma representação política. Uma representação de outras possibilidades de existência. Abandonando a passividade do “estou falando em nome de algum grupo ou de alguém”, para um “estou aqui (dentro de um contexto), isto é um signo e eu falo”. Mas ainda assim, representação.
Se tratando da discussão da mulher (e em principal da mulher negra), que é multidimensional, morte da representação e busca pela representatividade, são a mesma coisa. Não há paradoxo senão num olhar também colonizado pela branquitude e misoginia, como é nosso olhar de maneira geral. Para quem nunca se viu, complexamente, representado, matar o sistema de representação é ser representado.
Mesmo na obra de Paula Carneiro, que se aproxima mais da performance, tais elementos também se apresentam. Segundo o crítico: Distingue e apropria-se do inominável no acontecimento, e não do descritivo do fato. Troca o policialesco pelo comunal, a denúncia pela invocação, a repetição pela diferença. Mas ainda assim, representa uma mulher, representa todas as mulheres que declararam se sentirem estupradas quando o estupro dos 33 homens aconteceu, ou no mínimo representa uma buceta.
Estamos falando de outra representação. Uma representação política. Uma representação de outras possibilidades de existência. Abandonando a passividade do “estou falando em nome de algum grupo ou de alguém”, para um “estou aqui (dentro de um contexto), isto é um signo e eu falo”. Mas ainda assim, representação.
Outro fator importante de destacar é que das três obras, duas são de mulheres negras, cuja circunstância dentro do feminismo diferencia-se em um aspecto importantíssimo: Enquanto mulheres brancas gritam “eu não existo assim”, mulheres negras ainda precisam gritar “eu existo”. O que coloca o caráter de denúncia ainda muito presente nas obras, uma vez que muitas denúncias ainda não foram feitas. E a denúncia no contexto da cena, não é apenas denúncia é um posicionamento estético. E dentro do contexto de experimentação, será em breve qualquer outra coisa, mas antes de ser é preciso tornar-se.
Temos aí outro trabalho em paralelo: Demos tempo a denúncia para que esta transforme-se livremente e sem pressa. Mas estejamos atentas para os sinais de mudança dados por ela, para não incorrermos na lógica vigente de cristalização dos elementos que compõem a cena.
Em Notas Musicais Para Um Obsessiva Dantesca, Alex Simões destaca um aspecto do espetáculo que tomarei emprestado aqui para pensarmos a resistência que os artistas contemporâneos têm com o elemento denúncia:
As armadilhas são muitas e as reações são mais ou menos as mesmas. É importante apontar que o monotematismo está mais na reação de quem diz “lá vem ela falar sobre a questão da negra” ou pergunta “existe arte negra?” do que em quem diz seu lugar de fala. As armadilhas da linguagem podem ser rasuradas com a expressão “dicotomias da linguagem”. Talvez uma das maiores perversidades do processo estruturante de exclusão das subjetividades minoritizadas seja responsabilizar as insurgentes por uma dicotomização, por um pensamento binário, como se a dicotomia não estivesse sempre ali, hierarquizando e silenciando.
E ainda acrescenta: As dicotomias estão postas e ressemantizá-las é preciso.
O como é devir.