Ensaio | Audiovisual


Pôster The Midnight Gospel - Divulgação

Enquanto o apocalipse não vem

maio de 2020

Edição: 21


Uma viagem pela Netflix em tempos de coronavírus

 

O krenakismo contra Krenak

 

Além de todos os convites para lives sobre autocura, empreendedorismo artista, rodas de meditação universal, shows de artistas em casa e editais-relâmpago de bancos humanitários & misericordiosos, no mês passado recebi, ao menos de três fontes distintas, mensagens sobre o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak, com exortações à leitura dos seus livros. 

Depois de ter levado este curioso fenômeno sociovirtual — que apelidei de “apelos múltiplos a Krenak” — à prateleira dos “Sintomas”, me pus a ler o Ideias para adiar o fim do mundo. 

Mas devo confessar que o suposto centro dos acontecimentos tem me parecido menos revelador que suas órbitas. Enquanto um livro ou um filme nos dão a impressão de que podemos devorá-los e digeri-los, os discursos e imagens sociovirtuais só nos deixam duas alternativas: entrar de cabeça e sem culpa na lambança geral ou analisá-los ceticamente. De toda maneira, no “capitalismo artista” (termo sagaz de Lipovetsky e Serroy), são precisamente esses epifenômenos triviais e inofensivos que revelam os sinais de toda uma Era. 

E se o academicismo pós-tudo costuma distinguir, de um lado, (numa má leitura) os dispositivos de poder foucaultianos como bichos opressores e maus, e de outro, (numa leitura igualmente péssima) o rizoma deleuze-guattariniano como uma espécie de geleia geral pós-tropicalista, orgiástica e sensorial, no Antropoceno denunciado por Krenak teríamos, ao lado da exploração globalizante do corpo-da-Terra e do despotismo humanista moderno/colonial, uma mutação filosófico-artística sem precedentes: um dispositivo de poder rizomático, algo como um monstrengo gigantesco de cujo corpo fazem parte todos os humanos, deixando por onde passa um rastro de morte e pólvora, com generosos bocados de glitter. Algo como aquele Monstro de Marshmallow do filme Ghostbusters, que derruba arranha-céus e pisa em cidadãos exibindo no rosto redondo um sorriso extremamente fofo — afinal ele é um marshmallow

Ou seja, assim como já fomos todos Charlie ou Guarani-Kaiwoá, somos todos potencialmente Monstros de Marshmallow: justo quando pensamos estar fazendo uma coisa sumamente importante pela vida na Terra, podemos estar contribuindo para a sua mais completa destruição.

E se alguns cientistas afirmam que viveremos para ver uma segunda onda do coronavírus, certamente já estamos vivendo, ao menos desde a primeira década deste século, um refluxo perigoso daquela New Age culturalmente espoliadora dos anos 80. Eis uma das prováveis razões para a profusão e os assédios incessantes por parte dessa infinidade de micro-empreendimentos místico-artísticos, tão altruístas quando sintomáticos. 

 

Somos todos Clancy

 

Se a Terra é nossa Mãe, a Netflix é nossa Madrasta. Frente a esta, podemos até fazer bico e bater os pés; mas na hora do perrengue — essas horas tecidas com os fios de um tédio monumental — amá-la-emos estritamente pelo que ela é, assim como outrora Caetano louvou a televisão.

Um dos caçulas mais interessantes desta nossa streaming materna é uma série do gênero desenho-animado-surtado-e-ácido. Estou falando do The Midnight Gospel.

A sinopse da Wikipedia é um primor surrealista: “The Midnight Gospel gira em torno de um spacecaster (video-podcaster do espaço sideral) chamado Clancy Gilroy, que vive numa dimensão nomeada “A Fita Cromática”, onde “lavradores de simulação” usam poderosos biocomputadores para simular universos. Cada episódio apresenta as viagens de Clancy pelos planetas simulados, cujos habitantes são convidados do seu spacecast. Os episódios terminam tipicamente com um evento apocalíptico do qual Clancy sempre escapa.”

Como essa série é um caso emblemático do estranho familiar descoberto por Freud (não a série, pelo-amor-de-Freud), qualquer semelhança com nossa miséria atual não é mera coincidência.

Ora, Clancy é um desses filhos da Nova Era, vivendo numa casa-casulo de onde pode visitar, sem sofrer nenhum arranhão, qualquer mundo possível e impossível — já que estes são simulacros. A dimensão onde vive, “A Fita Cromática”, é uma caricatura do malfadado rizoma universitário: arco-íris de possibilidades infinitas. Nela encontramos um Clancy profundamente entediado, ao menos até que invente — como quem abre a geladeira procurando uma caneta — outra das suas aventuras trans-dimensionais, todas proporcionando experiências igualmente arrebatadoras.

No primeiro episódio, ele escolhe viajar a um planeta similar à Terra, acossado por um apocalipse zumbi. Lá ele entrevista o presidente do Estados Unidos. Enquanto o diálogo segue no ritmo standard dos podcasts, o mundo ao redor é progressivamente reduzido às mais absurdas ruínas. Tudo se passa como se o diálogo entre o presidente e Clancy fosse totalmente desconectado dos fatos catastróficos do mundo ao redor. 

Por isso, enquanto o presidente mira com uma sniper a cabeça dos zumbis, Clancy escuta músicas no seu player e pensa no que vai falar a seguir. Enquanto um zumbi gigante engole de uma só bocada a Casa Branca, a conversa entre os dois podcasters pode variar tranquilamente entre a migração de alguma espécie estranha de aves da Nova-Guiné e as novas descobertas da física quântica mágico-taoísta. 

O que chama mais atenção, porém — e eis o aspecto estranho familiar da série — é, digamos, um certo cinismo ingênuo-involuntário do protagonista, cujas raízes provém dos mais assombrosos tártaros de um tédio atávico e de um desprezo geracional que poderíamos arrebanhar sob a alcunha, parodiando um podcast recém-lançado no Spotify, de Novo Normal.

 

“Oh Jesus, Sérgio de Mello!”

 

Este Novo Normal, que segundo as chamadas publicitárias é uma reunião de mulheres na qual se discute assuntos importantes para a sociedade, me pegou pelo título. Me chocou tanto que fiquei parado nele minutos a fio, focado na evidência cromática das suas letras e pensando que raios de formação linguística era aquela. O fenômeno me impressionou tanto que fui buscar a expressão no pai Google, o que me fez ficar mais estupefato ainda: esse Novo Normal é um convidado costumeiro do ciberespaço e eu é que cheguei atrasado na festa.

Isso me fez lembrar de outro produto contemporâneo, um filme netflixiano sobre um personagem histórico que até então eu ignorava: Sérgio de Mello, diplomata brasileiro que morreu durante uma missão em Bagdá. Apertei o play. Primeiro porque o título do filme soa, a nós, que nos acostumamos aos títulos norte-americanos, bastante engraçado: SÉRGIO; segundo porque quem o encarna é nada mais nada menos que Wagner Moura. Fiquei curioso.

Não sei se já se deram conta, mas nas atuações wagnerianas encontramos todos os signos de um hombre perfeito para o nosso novo normal: ele é o caubói desmachistizado, o irmãozão pronto a tudo, o amante grave e jovial cheio de responsabilidades. Até como rei do narcotráfico ele remete mais a Paulinho da Viola do que a Calígula. Vão lá e vejam: cada gota de gordura na cara de Pablo está repleta de dignidade.

De Cidade Baixa a Tropa de Elite, quando Wagner se irrita e está prestes a explodir… ele se contém. Com a precisão de um ator , acumula as energias para lançar num só jato o seu olhar de aço, direto nos olhos do interlocutor desavisado. É que Wagner, assim como Drummond, carrega o sentimento do mundosem nunca desesperar, é claro. Podemos observar tal fenômeno quando, no fulgor de um embate, ele apóia-se, com o seu titânico antebraço, em paredes sujas ou pilastras corroídas, instaurando na cena o silêncio profundo de um Sísifo em pleno momento de descanso ou a plenitude de um Buda tupiniquim, para logo depois, como o sertanejo de Euclides, empunhar sua arma e perseguir traficantes ou políticos safados. No mais, o olhar de Wagner parece nos sussurrar: “Pode confiar… Em qualquer perrengue, segurarei o fardo junto contigo. Estarei lá, com estes meus ombros tão exaustos, com estas minhas olheiras nas quais pesam séculos de bom senso altruísta…”

Se pensarmos bem, esse é o elemento x que, agregado à mistureba imaginária do tecido social,  erige ídolos.

Não à toa Wagner incorporou pelo menos duas figuras socialmente emblemáticas: o humanitário Sérgio e o valente justiceiro Capitão Nascimento. Se pudéssemos sintetizar essas duas variantes, Sérgio + Nascimento, acrescentando generosas pitadas de maquiavelismo delirante, teríamos o nascimento de um outro Sérgio: o ex-superministro-juiz Moro — que agora fica livre para ser, no futuro, um ex-super-político.

Quero dizer: é certo que o conge não é um policial, como o é Nascimento; é certo que esteja envolvido em escândalos de corrupção ética, como não esteve Mello; mas é igualmente inegável que no simbolismo popular, ele até então repousa como a figura do justiceiro supremo: o Superego social.

Vejamos no que isso vai dar.

 

Eu, Daniel Blake

 

Mas como toda Lei tem uma face obscena a lhe sustentar, foi precisamente nesta zona que a geração do capitalismo artista veio construir o seu confortável ninho. Inofensiva e perdida perante o avançar do teatrão político superestrutural, resta-lhe — assim como a Clancy — uma viagem infinita, politicamente correta e corretamente ok sobre a Terra Devastada, com espasmos de Ele Não.

Quanto aos artistas, que hoje compartem esse mesmo ninho, a questão objetiva é esta: se for certa a tese de que hoje o artista deva alçar-se enquanto microempreendedor, deixando de lado certas criancices ancestrais, então não seria esse o melhor momento para se posicionar como todos os outros modestos microempresários da Terra? Assim, a angústia e a questão permaneceriam as mesmas, tanto para o artista quanto para o empregador de uma loja de caixas de papel: parar a produção ou continuar? 

Por quê?

De modo que uma das alternativas patológicas a essa forma de impasse vem sendo a volta ao útero da Mãe Netflix. Essa é a nossa obscenidade tácita.

Não admira que tenha sido lá que eu tenha encontrado, recentemente, um delicioso fóssil cinematográfico. Trata-se de Eu, Daniel Blake. Inversamente proporcional às viagens de Clancy, neste longa Blake é um homem de classe média, trabalhador e amante das artes manuais que se vê subitamente arremessado aos infortúnios sanitários da terceira idade e perdido nas malhas de uma burocracia kafkiana, em busca de um simples auxílio financeiro, já que sofreu um ataque cardíaco e não pode mais trabalhar. 

Ora, a analogia é imediata: hoje ele faria parte do “grupo de risco”. Seria um desses elementos facilmente descartáveis, um desses velhos do mundo que se veem literalmente ameaçados pelo avanço implacável da juventude mundial.

Não por acaso esse homem rústico, esse quase nada do Contemporâneo, esse resto que não sabe sequer segurar um mouse, esse humano demasiado humano, enuncia uma das frases mais simples e tocantes dos últimos tempos, de forma a colocar até essa escrita, que cometo agora, em xeque: “Eu nunca me curvei a ninguém”.

Quem, entre os vivos, pode hoje falar assim?


Daniel Guerra é editor da Barril, crítico de arte e diretor de teatro.

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