Crítica | Cênicas


Foto de divulgação Quaseilhas
Taylla de Paula 2018

EMERSÕES

junho de 2018

Edição: 20


Sobre QUASEILHAS, de Diego Pinheiro

O projeto materializado na obra QUASEILHAS chegou a mim ao mesmo tempo em que se iniciava o trabalho cênico entre os artistas envolvidos em sua construção. Isso se deu em função de minha amizade (outrora também profissional) com Diego Pinheiro, diretor do espetáculo. Àquela época, eu e Diego perambulamos sobre possíveis dramaturgias para o referido processo.

Devo revelar, desde já, que não pude ser útil ao meu amigo naquele momento, porque, depois de ter lido os materiais sobre o que começava a ser empreendido, não foi ativado em mim nada que pudesse contribuir às futuras “quase ilhas”. Esse sentimento de incompreensão me acompanhou quando estive no Forte do Barbalho para a estreia da obra aqui tratada: alguma coisa ali, entre minha presença povoada de expectativas e o que se revelava diante dela, não se amarrava.

O espaço construído para a realização de QUASEILHAS estava dividido em três partes: Quebra Machado, Camamu e Pantaléon, por onde transitavam os performers. Ao centro destas, estavam os músicos e o diretor (também performer). O todo se constituía como uma estrutura de compensado, vigas de madeira e lona de plástico, onde predominavam a pouca luz e o excesso de água. O yorùbá foi o idioma escolhido para a composição textual da obra, em grande parte cantada.

No Quebra Machado, espaço que escolhi para experimentar a obra no primeiro dia, pisava-se em areia e se viam imagens da antiga Alagados (em Salvador) e de familiares de Diego projetadas ao fundo. Como tudo acontecia ao mesmo tempo nos três ambientes, durante todo o espetáculo experimentei a sensação de estar perdendo algo que se passava nos demais cômodos. No Quebra Machado, brotavam interpretações e uma dinâmica de entradas e saídas que me situavam no universo do teatro que conhecemos, ao passo que as minhas já citadas expectativas ansiavam por outra coisa, na qual predominassem a música, as vozes, o canto, a dança. Como estes elementos vinham principalmente dos outros espaços, escolhi, em muitos momentos, fechar os olhos, preferindo alcançar as imagens que me atravessavam em vez do que me era apresentado em realidade. O yorùbá, nesse sentido, contribuiu para a ampliação do universo no qual eu me lançava, pois, na impossibilidade de decifrar o idioma, ultrapassei a necessidade de significados e me foi ofertada uma infinidade de signos.

Minha experiência seguinte no universo de QUASEILHAS se deu no Camamu: algumas cadeiras, uma cama ao centro e novamente exibição de imagens similares às do Quebra Machado. Nesse espaço, as projeções ganharam profundidade e, ao se confundirem com os músicos e o diretor-performer, agora mais visíveis ao fundo, obtiveram outro papel na obra, funcionando como um horizonte que revelava adiante documentos (fotografias e vídeos) do momento presente (os músicos performando), como uma coisa só.

Houve um salto em minha (in)compreensão sobre aquilo que me dispunha a experienciar. Certamente, as duas semanas transcorridas, entre o primeiro encontro e o atual, favoreceram tanto a minha performance, enquanto público, quanto a dos artistas, enquanto motor daquele acontecimento. Exemplo que pode traduzir tal entendimento, no que diz respeito ao meu corpo, foi o medo que enfrentei em grande parte do tempo de que os atores sofressem um choque elétrico em função do excesso de água e de luzes. Diferentemente do primeiro dia, no qual esse receio estava relacionado a uma possível falha na estrutura elétrica, agora a apreensão me chegou como parte da própria experiencia, que era tão vivida como contada. E eu, de alguma maneira, estava em Alagados.

Pantaléon foi o último espaço que escolhi para vivenciar QUASEILHAS, pois, como logo me fizeram saber, ali se ficava em pé. Tendendo a ver certas eleições cênicas dirigidas à plateia como caprichos de diretores(as), feitas por pura excentricidade; nesse sentido, preferi me manter sentada enquanto pude, deixando o Pantaléon para o último dia. O fato é que, naquele espaço estreito, onde se encontrava uma banheira ao centro, eu teria levantado, caso eu já não estivesse em pé. Não somente por, em dado momento, os próprios atores incitarem uma festividade entre os presentes (a partir de palmas, danças, brincadeiras), mas porque testemunhar a presença destes, a maior parte do tempo, exigia uma resposta física, uma troca instantânea. Ao fitar o ator Diego Alcantara, por exemplo, mandando um rap em yorùbá, idioma do qual não conheço coisa alguma, senti ao final o ímpeto eufórico – que, aliás, contive – de gritar: SUMEMO[1]!

O sentimento de incompreensão que esteve comigo enquanto lia o projeto QUASEILHAS e que me acompanhou quando estive no primeiro dia no Forte do Barbalho não se esgotou. Ao contrário, ao sentir reverberar em mim (e reverbera até hoje) a obra em questão, percebo que tal sensação está relacionada a um modo caduco, meu, de olhar para o mundo. Há alguns encontros, sobretudo quando se é mais jovem, que nos exigem o abandono completo de determinada verdade ou a imediata mudança de perspectiva. Não se pode ler Dostoiévski, por exemplo, e continuar se achando completamente justo. Nem completamente injusto. A noção de justiça, no encontro com o autor, é completamente abalada. É compreensível que precisemos de um tempo para que as noções sejam modificadas até que possamos perceber que estamos decifrando determinados signos de uma perspectiva diferente, sob uma nova ética. É esse tempo, sobretudo qualitativo, que QUASEILHAS exige de mim e da maioria de seu público.

Ao mesmo tempo, a euforia pode ser um termômetro eficaz para o início desse processo. Porque se o surgimento é de uma lógica completamente nova, ainda faltarão ferramentas para organizá-la, mas o corpo e suas elaborações já são capazes de sinalizar as transformações pelas quais necessitam passar. Por isso, irrompem numa alegria ainda indefinida.

Se um dos entendimentos sobre arte contemporânea a coloca no lugar da arte da experiência total – corpo, ética, estética, política, pensamento, como sendo a mesma coisa – QUASEILHAS é seu sinônimo.

[1] Gíria de uso comum na comunidade hip-hop que tem por significado: concordar com algo; forma abreviada de isso mesmo.


Bárbara Pessoa é dramaturga. Arte educadora, formada em Licenciatura em Teatro pela Escola de Teatro da UFBA.

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