Ficção e Poesia | Literatura


Ilha dos mortos - Arnold Böcklin - Terceira versão, 1883

QUANDO EU MORRER

Os deuses dão a sombra e a luz. A sombra brilha,
e o coração da luz esconde um claro-escuro.
O mal vive no bem. Não há remédio, filha:
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
O que nos cabe aqui é a triste maravilha.
Nada é somente suave, ou acre, ou doce, ou bruto.
Tudo fere, e eu também vou te ferir. Oh, filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.
Mas é nossa missão cair nessa armadilha,
E o que passou persiste em seu estado puro.
Não vou morrer quando eu morrer. Pois, minha filha,
Tu chorarás por mim nas noites do futuro.

 

SONETO DE HERÁCLITO IRRITADO

Como tem gente burra neste mundo,
disse Heráclito, o sábio rabugento.
Confesso: de manhã, por um segundo,
acatei o vetusto julgamento.
De um lado olho, e vejo: gente idiota.
Do outro, vejo gente abestalhada.
Dois bandos trogloditas, duas grotas
opostas, mas iguais. Que palhaçada.
Deixem que o velho Heráclito esclareça
o enigma dessa espécie de paspalhos:
Deus, ao criá-los, pôs-lhes na cabeça
A lama que sobrou no assoalho.
E o rio? No rio de Heráclito eu queria
afogar toda a raça humana um dia.

 

É FÁCIL ESTENDER MEUS DEDOS TORTOS

É fácil estender a mão à Morte,
quando suave chega, em horas mortas,
a roçagar, roçar marmóreas portas,
que se abrem entre o Sonho e a estranha Sorte.
É fácil estender a mão. Somente
basta adiantar-se aos anos, dar um salto
sobre as penhas do Tempo, e lá do alto
olhar atrás: e o campo do presente
terá tênue contorno de lembrança,
e o agora, em neblinas de passado,
será outrora, e nesse descampado
não correrá mais medo ou esperança.
É fácil estender meus dedos tortos:
na Eternidade, estamos todos mortos.

 

O FRANGO DE DIÓGENES

“O Homem é um bípede sem penas”,
disse Platão, untuoso e empertigado.
Diógenes, barbudo e de melenas
imundas, trouxe um frango depenado
e disse: “Olha teu Homem, seu babaca!”
Foi-se ao tonel, nas orlas da cidade,
Fez um fogo de chão junto à barraca
E assou seu exemplar de humanidade.
“Eis o deleite do ideal platônico”,
grunhiu, ao devorar o frango assado.
Mais não disse o filósofo lacônico
antes de adormecer, empanturrado.
E um cão roeu (qual num mistério órfico)
os restos do galeto antropomórfico.

 

AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE HERÁCLITO

Jurei odiar o mundo. E odiei mesmo,
até do próprio ódio ter descrença.
Pois, olha, de que adianta odiar a esmo?
Qual o sentido? Qual a diferença?
Queria um ódio belo e retumbante,
Um ódio abrasador como a Verdade,
Um ódio como o sol. Irradiante:
que suba aos céus e banhe a humanidade.
Mas que fazer se o mundo – hélas! – despreza
o desprezo de um sábio como eu?
Sou como um invertido fiel que reza
a um deus burro, que nunca o compreendeu.
Odiei. Bastou. Meu corpo está aqui fora:
podeis soltar os vossos cães agora.

 


Embora seja seu primeiro livro de poesia, os versos de Botelho (ou Chico) já são conhecidos do público, tanto em suas premiadas traduções de Chaucer e Shakespeare, como nos poemas publicados em revistas e páginas virtuais, alguns dos quais aqui presentes. Dessas experiências, o poeta une a precisão à agilidade: as formas são fixas, mas nada rígidas. O verso corre, salta, galopa e esgrima; o verso grita, chora e luta; o verso canta e pinta. Nesses cinco cantos, os gêneros se alternam como num livro de Cervantes, formando uma espécie de narrativa subterrânea, intuitiva. Passamos por contos de cavalaria, especulações filosóficas, ficções históricas, meditações sobre ruínas e paisagens, traduções, supostas traduções, relatos de batalhas, sátiras, diatribes sobre um mundo onde imperam a estupidez e a brutalidade. Vítimas da célebre maldição, vivemos tempos interessantes.

Mas, acima do colorido romanesco, paira uma sombra soturna. Por longa que seja a jornada do dia até a noite, brevíssimo é o trajeto do nascimento à morte. “Tu chorarás por mim nas noites do futuro”, afirma o poeta à filha, no refrão do poema de abertura. É a ordem natural das coisas. Nossos melhores feitos (inclusive os melhores versos) são um resquício do que fomos, cuja memória depende dos que vierem depois. Quando muito, pois “O olvido, vago deus irrevogável/observa e aguarda, além do fim da História”. A longo prazo, o universo devorador e implacável não poupará ninguém, nem mesmo quem foi eternizado em monumentos de pedra, já que “na Eternidade, estamos todos mortos”.

Talvez, por isso mesmo, somente na vida é possível desafiar a morte. O indivíduo é minúsculo diante da tradição, dos heróis e os deuses, da História, do universo; mas a grandeza, a possibilidade da grandeza, está dentro de si. O amor e as obras são as melhores armas que empunhamos: “E ao homem resta apenas seu Pecado / Que é a mesma Virtude à contraluz”. No conjunto, estes poemas entoam um hino à vida – um antídoto contra as agonias da existência. Versejar é, também, aprender a morrer. A vida é breve; a arte de Chico, longa.

Lançamento dia 10/03 pela Editora Patuá. Vendas no site da editora.

texto de Paulo Raviere


José Francisco Botelho nasceu em Bagé, em 1980. É jornalista, escritor, tradutor, crítico de literatura e cinema, havendo colaborado com diversos veículos de circulação nacional. Entre suas obras, estão dois aclamados volumes de contos que misturam a ficção histórica, o fantástico e a especulação filosófica: A Árvore que Falava Aramaico (Zouk, 2011) e Cavalos de Cronos (Zouk, 2018) — esse último, grande vencedor do prêmio Açorianos de 2019 e também ganhador do prêmio Minuano na categoria Conto, no mesmo ano. Botelho é especialista em tradução de poesia, e suas versões de obras medievais e renascentistas são objeto de estudo internacional. Como tradutor, recebeu dois troféus Jabuti: um por sua tradução de Contos da Cantuária (Companhia das Letras) em 2014, e outro por sua tradução de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, em 2017. Também traduziu Júlio César, de Shakespeare, assim como obras de Bram Stoker, Arthur Conan Doyle e vários outros autores, para diversas editoras brasileiras. Botelho vive atualmente em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

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