Crítica | Cênicas


Dentro do contêiner

junho de 2017

Edição: 13


Sobre o espetáculo “O Contentor – o contêiner”

No chão do Espaço Cultural da Barroquinha há um retângulo de luz desenhado por refletores. Esse espaço cênico exíguo é a base do sólido onde se passa quase toda a ação de O contentor – o contêiner. Após serem descobertos no convés de um navio, três refugiados de diferentes países africanos são trancafiados dentro da estrutura metálica. Alguns conflitos são travados entre os personagens, até que um deles seja retirado de lá depois de gritar que é um refugiado político. No fim da viagem, os outros dois homens são instados a sair de lá por uma voz em off dizendo que do contrário atirará, mas as vítimas ficam paralisadas. As luzes se apagam e – aberto o desenlace incerto – explodem os aplausos da plateia. Em menos de uma hora, a encenação de Ridson Reis precisa lidar com esses limites, na economia do tempo, do espaço e da ação.

O texto da peça é de José Mena Abrantes, premiado autor angolano cujo trabalho se volta em boa medida para o teatro. O contentor foi publicado em 1994, mas continua, em lamentável progressão, um texto muito presente, talvez ainda mais presente, pois retrata o tema das crises migratórias, que nos últimos anos tem se agravado e figurado como uma das principais pautas da política internacional. No recente contexto de antipatia aos direitos humanos, as migrações contemporâneas trazem à tona a xenofobia e os preconceitos sociais que grassam nas bocas de candidatos e líderes das maiores potências mundiais.

Apesar da influência inegável sobre a macropolítica, as linhas das crises migratórias, no texto de José Abrantes, são reduzidas da escala de bilhões de seres humanos espalhados por todo o globo terrestre à agonia de três homens sobre uma pequena placa de metal. Opera-se um movimento de compressão para inscrever estratégias de adensamento conceitual, ou de concentração. Nesse tipo de investida cênica tudo cresce e chama a atenção; todo jogo de corpo, toda fala, toda expressão facial, em suma, todo mínimo detalhe recita a máquina do mundo. Peter, George e John processam os versos: o primeiro, que diz ser refugiado político, é violento e intolerante frente às fragilidades do segundo, um rapaz amedrontado que em seus delírios vê o pai ausente; já John é mais moderado – sonha com um emprego em seu novo país –, embora atue mais como escada para George. Não há espaço para aprofundar caráteres, nem para sugerir desvios. Estilo direto, metodologia expositiva. O fato de os personagens serem refugiados subjaz todo discurso falado e sobrepõe qualquer tentativa de complexificar subjetividades.

 

Os atores gritam ou choram suas falas unidirecionais emolduradas por uma guitarra que repete notas esganiçadas ecoando, em matéria sonora, o desespero dos personagens. Após o espetáculo, inclusive, a equipe da peça conversa com o público sobre a condição dos refugiados no mundo e no Brasil. Também fala que o texto apresentado é baseado em eventos reais. Como se o real precisasse nos explicar que é o real.

Ridson Reis, então, utiliza o que tem em mãos para construir a ambiência que, com bastante insistência, quer explicar seu mundo. Passa-se frio – luz azul. Sente-se calor – luz vermelha. Os atores gritam ou choram suas falas unidirecionais emolduradas por uma guitarra que repete notas esganiçadas ecoando, em matéria sonora, o desespero dos personagens. Após o espetáculo, inclusive, a equipe da peça conversa com o público sobre a condição dos refugiados no mundo e no Brasil. Também fala que o texto apresentado é baseado em eventos reais. Como se o real precisasse nos explicar que é o real.

Em seus ensaios sobre fotografia de guerra[1], Susan Sontag observa que, depois de tantos registros de crueldade, aqueles que se mostram incrédulos diante das provas do que os seres humanos são capazes de fazer em matéria de horrores contra outros seres humanos ainda não teriam alcançado a idade

adulta em termos morais e psicológicos. Qual ingênuo questionaria a realidade da foto que mostra uma criança síria morta na areia de uma praia? Somos capazes de fazer isso, e podemos fazer pior.

Nesse sentido, uma encenação nitidamente aplicada em construir a experiência do contêiner não estaria, por vias anódinas, subestimando o senso de crueldade dos espectadores? Porque, além disso, pouco resta dos esforços empreendidos em cena. Se o contêiner ainda está ali, monolítico, os personagens evanescem em recursos ficcionais

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[1]          Diante da dor dos outros (2003). Companhia das Letras. Tradução de Rubens Figueiredo.

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