Crítica | Cênicas


Foto de Milla Carillo

DE FUDÊ

setembro de 2016

Edição: 8


Uma crítica sobre “Desastro”, de Neto Machado

Imagino que ao leitor deva estranhar duplamente o título da crítica. Primeiro deve vir o susto de topar com uma expressão desse quilate escrita assim, logo no topo, mesmo em revista tão afeita a certas diversões. Depois, porque este mesmo leitor deve saber que procuramos manter e promover uma educação no que concerne ao estilo crítico, a bem dizer: a economia dos adjetivos, que aliás abundam nos nossos jornais e fofocas de bar (esta última, a mídia soteropolitana por excelência). Por isso tive que fazer essa pequena digressão introdutória, que logo mais será esclarecida.

Desastro não esconde sua fonte inspiracional máxima, seu monolito onipresente. Assim como nos cinemas, onde costumam botar músicas eruditas pra servir de cama ao mastigar de pipocas e sussurros molhados, aqui adentramos no teatro ao som de “Space Oddity”, hino máximo do rockstar britânico-marciano David Bowie. Ao espectador desavisado, distraído ou simplesmente ao purista sacana, essa introdução atmosférica funciona exemplarmente bem, porque é por meio desse primeiro movimento que o regime de citações — que acompanhará todo o espetáculo como num jogo — será estabelecido, e o melhor, com base numa referência de enorme popularidade.

O universo pop, esse deus que tem Sir Bowie como um dos seus santinhos, encontra, em Desastro, um desenvolvimento cênico à altura do famigerado “Efeito Chiclete”. É assim que David Bowie, suas iridescências e camaleonices, junto com pedaços de sci-fi e restos de heróis, mutantes e monstros, serão os fantasmas, meteoritos e tralhas espaciais retornando eternamente ao decorrer da estrutura espiralada do espetáculo, assim como retornam teimosamente os refrões de certas canções em nossas vidas, tais como “não me chame não viu”, “pega a metralhadora”, ou neste caso, “ground control to major Tom”. E como provado na semiótica, na vida cotidiana e em Desastro, o contexto sempre modifica a mensagem. Aqui, repetição é diferença.

Quando falo em universo não é por acaso. As luzes vão se apagando progressivamente ao nosso redor, e de pronto somos arremessados pras cucuias do espaço sideral. A viagem é conduzida por outra versão da “Space Oddity”, tocada agora em versão épica, com direito a violinos, metais e tudo mais o que a indústria fonográfica pode nos proporcionar. A duração dessa escuridão, maior que a costumeira, amplia a sensação de soltura, errância e passagem. É como se o procedimento padrão, esgotado pelo uso institucional, reencontrasse aqui sua essência radical. Em Desastro, a transição para o blackout torna-se (ou assume-se como) portal de um estado de consciência a outro. É interessante observar que por meio de um detalhe simples — a incorporação de um procedimento trivial enquanto discurso cênico — revela-se uma das mais eloquentes possibilidades rituais do teatro à italiana.

A descrição desse início é importante, porque é justamente o momento em que as peças do jogo são posicionadas, e de fato, Neto Machado vem trabalhando a algum tempo na produção de uma dança contemporânea feita para crianças e adolescentes. Seu campo de combate é o lúdico. Mas não esperemos disso uma série de representações acavaladas, que se conectariam como um passe de mágica à subjetividade juvenil. Aqui é todo um pensamento que é invocado; uma maquinaria cognitiva funcional, e não apenas seleção de representações escolhidas a dedo, com o fim de chocar ou gerar identificações exclusivamente lucrativas, tais como os parasitários remakes de desenhos animados, sempre traduzidos de forma tão tosca para o teatro.

Quando os intérpretes “arrombam” a porta lateral do teatro procurando por “Major Tom”, além de surpreendidos, somos arremessados a um outro modo de pensar o mundo. A partir dali estaremos junto daqueles cinco corpos que brincam, e é por meio dessa brincadeira que surgirão os fantasmas, meteoritos e tralhas espaciais que falei lá atrás. O regime de citações, inaugurado como território semântico através da música inicial, é definitivamente incorporado quando os intérpretes sobem ao palco e executam fragmentos de ações de super-heróis, robôs ou monstros intergaláticos, de forma repetitiva, intensiva e intermitente. Se não distinguimos quais entidades específicas cada um incorpora — e isso realmente não importa — pelo menos acessamos como que um motor das ações. É como se por meio da repetição pudéssemos vislumbrar o mecanismo intensivo, o élan vital que move uma criança no momento em que pensa/faz novos mundos possíveis.

Mas falo isso como se pudesse me distanciar de mim ou da minha infância. Somos acostumados a ver uma fotografia antiga e pensar que aquilo já passou, como se entre o adulto e a criança não houvesse solução de continuidade. No entanto, como nos alerta Bergson[1], o tempo é feito de carne, e a passagem de um estado a outro não para de se dar. Na real, nem existiriam pontos, mas tão somente pontes — um dégradé sem fim. Ao acompanhar toda essa variedade de “vruuum’s”, “pow’s”, “ziiiin’s”, “iáááá’s” e “tchen-tchen-tchen’s” emitidos pelos dançarinos, sou reconectado a um tipo de relação com o corpo e com as coisas que só poderia ser acessada por um adulto em momentos de muita soltura, intimidade e despretensão. Muitas vezes me observei, junto aos outros espectadores, procurando, com olhar ávido, qual seria a próxima atração surgida daquele buraco negro. É que Desastro lança mão de uma consciência brutal dos pontos focais da cena, trajetórias do olhar, suspensões de expectativa e muitas outras malandragens mágicas, típicas de parques de diversão e filmes hollywoodianos, de forma que assistí-lo já se torna jogá-lo.

 

Desastro não esconde sua fonte inspiracional máxima, seu monolito onipresente. Assim como nos cinemas, onde costumam botar músicas eruditas pra servir de cama ao mastigar de pipocas e sussurros molhados, aqui adentramos no teatro ao som de “Space Oddity”, hino máximo do rockstar britânico-marciano David Bowie.

É aqui que retornamos ao começo, como que imitando os intermináveis ciclos de morte-vida desenhados por Neto Machado & Cia. Quando um adolescente profere “isso é de fudê”, o que está fazendo, na verdade? Está operacionalizando todo um sistema de coordenadas. Dispondo suas próprias ferramentas frente a um mundo-corpo em rotas de transe ascendente. É então que “de fudê” torna-se o centro galático de novos pensamentos e travessuras. Mas cuidado. Isso não é o mesmo que um crítico dizendo: “isso é belo”, “isso é leve”, “isso é divertido”. Estas são categorizações estáticas. Pelo contrário, “isso é de fudê” mobiliza mutações imediatas, tanto na percepção de quem assiste algo “de fudê”, como quem diz para si: “isso é de fudê”, e intensifica ainda mais seu próprio jogo.

Em suma. Para o espírito juvenil, que está presente de bom grado em todas as almas não-pequenas, “de fudê” já é uma ação no mundo. A todo momento de Desastro, seja qual for a idade do espectador, brota a mesma exclamação não judiciosa, arejada e dinâmica: “porra, isso é de fudê”. E o mundo pode ser novo de novo. Pelo menos enquanto isso durar.

[1] Henri Bergson (1859 – 1941), filósofo francês.

 

Rebate à crítica “De fudê” de Daniel Guerra

 Por Neto Machado

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