Crítica | Cênicas


Foto de Izabela Valverde

DA NOITE EM QUE FUI ALICE

abril de 2016

Edição: 3


Crítica da Mostra de Performance Submersos

 Tenho esse hábito antiquado de realizar minhas refeições em família. São eventos em regra cotidianos, é claro. No entanto, às vezes não poderiam ser mais extraordinários. Como um dia desses, por exemplo, em que meu filhote mais novo – um menininho danado de apenas 3 de idade – disparou a seguinte pérola. “Quando o vulcão explode no esgoto, destrói a nossa casa”. Isso, assim, do nada. Bem despropositadamente. Ainda me pego pensando nessa frase e descobrindo novas formas de interpretá-la. Refletindo, inclusive, sobre a atual conjuntura desgovernada de nosso país, onde parece que as palavras esgoto, explode e casa não poderiam ser mais acertadas.

Foi ainda envolvida por essa condição que me dei conta do desenrolar dos meus pensamentos sobre o evento Submersos, do Coletivo: A-feto, que presenciei numa noite de lua crescente e metediça, na Galeria Cañizares, no último 18 de Maio.  Na verdade, estava em curso a IV Mostra de Performance A Sociedade da Imagem,realizada pela Escola de Belas Artes da UFBA, a partir da curadoria do professor e pesquisador Ricardo Biriba.

Nesse momento, devo realizar duas confissões. A primeira é do meu declarado olhar hierático sobre as coisas do mundo, sobretudo as artísticas, consequência do percurso ético-poético que escolhi empreender com o grupo de teatro que me tem há 7 anos. Meus olhos estarão sempre manchados pela fé que tenho no Caos, e quis deixar isso explícito logo de entrada, muito embora não creia na isenção da visão de ninguém em toda a galáxia. Somos todos escravos-mestres das perversões que nos constituem humanos, enquanto dançamos os desígnios das inevitáveis, incontáveis e implacáveis mudanças da vida.

E aí, temos a minha segunda confissão. Jamais havia posto os pés na Galeria Cañizares em toda a minha vida. Isso mesmo. Eu, que sou cria da instituição vizinha, a sexagenária Escola de Teatro. Embora reconheça o caráter terrivelmente vexatório dessa declaração, afirmo, deliciada, que esse fato foi brutalmente determinante para a potência do acontecimento que vivi naquela noite. Expectativas são as mães das desgraças, e não ousei, portanto, alimentá-las. Às vezes procuramos propósitos para as coisas, mas são eles, os propósitos, que nos encontram.

Foi a dissonância temporal que abriu, de cara, um crescente absorvedouro diante dos meus olhos. A Galeria funciona num antigo casarão e, na fachada, uma pequena escadaria nos dá a falsa impressão de caminho para o passado. Lá dentro, tudo é ostensivamente iluminado de luz fria e tecnológica. Tudo muito claro. Antes de dar o definitivo passo para dentro, avistei ao fundo, numa sala com um ordenado arranjo de TVs tela plana, várias imagens em movimento, os vídeos-performance. Pequenas janelas para realidades alternativas. Cortes no tempo. Drops de vida. Escolhas fatiadas. O brilho seguro e familiar, acima de tudo, me foi atraente. Então, era isso? Apenas uma exposição imagética? Entrei. Entrei numa casa mal-assombrada.

No curso até a sala das janelas televisivas, uma quimérica mulher existia num pequeno platô entre dois lances de uma escada antiga. Sua pose luxuosa, adornada por saltos, plumas e leque, emanava a aura de uma diva dos tempos do cinema em preto e branco. Seus imensos cílios alongavam o olhar para além de todos os que a observavam. Era um quadro em movimento com algum encantamento que me fazia querer chegar perto. As telas de plasma se dissolveram do meu interesse. Por algum tempo, só houve ela. Fui invadida por uma profusão de fantasias. Uma vozinha bem fina, ao longe, de dentro, gritava que aquilo não estava certo. Meus olhos não pareciam se importar. E então, irrompeu uma festa de aniversário.

Eu não vi a festa, de fato. Mas a vibração dos auspícios foi suficiente para me tirar da dormência. Adentrei o outro cômodo em busca do entendimento. Havia outra mulher, existindo dentro de uma barraca que também era um vestido. Uma outra banhada de cola, me olhou divertida e se esfregava enquanto dissecava um alguém qualquer que aceitasse o seu olhar. Outra, com olhos vendados por espelhos, arrastava o cabelo no chão. Aquelas presenças, coloridas, recortadas, pululavam em desacordo com o lugar onde estavam, como se diminutos portais anômalos se abrissem para que enxergássemos outros lugares, como se o mundo se rasgasse em fendas de espaço. Era muito para fixar a atenção. As telas estavam perto, seriam um refúgio para recuperar a ordem. Mas, então, houve a música.

Não notei antes, mas a paisagem sonora sempre esteve lá. A mulher fez aniversário de novo. Pediu que três pessoas lhe cantassem Parabéns. Cantaram. O alarido das vozes contrastou com a música harmônica que dominava o ambiente. Foi assim que percebi. As pessoas são tão generosas quando estão expostas. Havia outras pessoas, então. Muitas, aliás. Os verdadeiros petiscos de uma vernissage. Não me interessaram muito além da apreciação de suas carinhas de entendimento. Durou pouco, me julguei logo. Quão arrogante eu era. Não fazia também eu parte da exposição? Afinal, não estava em uma galeria? Melhor que me concentrasse nos não-espelhos. Cada um que adentre o seu próprio País das Maravilhas. Passei então ao cômodo maior.

Lembrei-me dos mapas antigos que retratavam o Oceano Atlântico. Tantos monstros, tão criativos. Entendi o porquê do Submersos. Eram ali, todos seres fabulosos, das lendas do submundo dos mares do Mundo Virtual. Todos tinham um quê cyberpunk decadente. Peças desencaixadas, lixo tecnológico radioativo, regurgitado de algum fractal obcecado por padrões de ordenamento. Claro que li o encarte da mostra com seu interessantíssimo texto de apresentação, explicando tudinho. Mas, foi depois.

No centro do espaço, uma mulher deitada com os pés para cima. Desfez-se, provavelmente, dos saltos imensos que estavam ao lado. Mas, não andou mais. Nunca mais. Nunca mais sairia dali. Encalhada, na companhia de um pepino. Tinha um olhar tão cansado que chegava a fazer os meus pés doerem.

Noutro ambiente da mesma sala, a taça de champanhe onde a palavra ‘democracia’ estava à deriva num pedaço de papel era oferecida por uma mulher toda de preto, dos pés à cabeça. A cada proposta de brinde, o perigo do naufrágio nas rachaduras do frágil cristal. Apenas um olho à mostra fazia o convite. Aquilo me trouxe um gosto amargo na língua. Eu parecia participar de um velório. Precisava sair da presença daquele dementador antes que minha alma fosse sugada pela tristeza.

Um som se soltou da paisagem e me atraiu. Agradeci em silêncio e parti. Uma outra mulher parecia fazer suas muitas agendas cantarem em coro. As agendas não respondiam nunca, por mais que ela entoasse um inebriante canto de sereia. Mal pude acreditar na infinidade de minutos que passei fitando fixamente as agendas, esperando que acompanhassem a canção. Agendas malditas. Teimosas. Cretinas. Aí, um toque me trouxe de volta. Um toque. Dedos roçando a minha pele. Lembrando que havia um corpo-calabouço da minha mente. Um toque.

Era um quadro em movimento com algum encantamento que me fazia querer chegar perto. As telas de plasma se dissolveram do meu interesse. Por algum tempo, só houve ela. Fui invadida por uma profusão de fantasias.

Era uma mulher de fitas. Sorria como uma ninfa. Olhos antigos carregados de uma sinceridade que não era dali. Um acolhimento absurdo. Fitas que me envolviam. Fitas de cetim. Lembrei-me dos meus domínios. Quase flutuei. Ela tinha um cheiro de abraço quente. Deixou-me um laço roxo no pescoço antes de partir. Quis ir junto. Sorria de volta, feito boba de coração acelerado. Cheguei a dar meio passo para frente. Alguém gargalhou ao lado. A mulher fez aniversário de novo. Parabéns pra você!

Desliguei do devaneio e me percebi. Exposta. Daí, veio a cereja no bolo. Uma antiga aluna me viu e tivemos um daqueles fortuitos encontros capciosos. O Caos, sempre ardiloso. Falou do meu cabelo novo (minha secreta parte mutante) e disparou a preciosa pergunta. “Você é uma das performers?” Embasbacada, cheguei a pensar o contrário. Essa é a performance dela? Fingir-se de cotidiana e invadir assim a experiência alheia? Ri meio amarela. Respondi que não. Daquela vez não. Estava só apreciando. Julguei-me de novo. Não era verdade. Eu estava nadando no meio de assombrações. Mas, naquele momento, acabou. Saí do acontecimento e entrei no modo analítico. Vesti-me de artista diletante novamente, encarei o lugar de encenadora, dramaturga, intérprete. Uma sensual feiticeira em paetês e plumas ainda me encontrou e me batizou de crossdresser. Nem pensei em recusar. Estava feliz por eles e por nós, tão abertos, tão inescusáveis. Já não eram mais monstros, eram artistas corajosos dialogando com a atualidade. A Sociedade da Imagem. Juntei-me aos meus amigos, rimos juntos e muito das frugalidades e extravagâncias. Vi mais, havia outras mulheres quiméricas, havia seres berrantes envoltos em plástico e socialites de araque e fotografias brilhantes nas paredes. Era tudo muito bom e pronto. A luz da lua, por fim, não deixou dúvidas. Já era Salvador, novamente. Fomos para o bar.

Lá pras tantas, muitas cervejas depois, saboreando uma bela carne do sol e discutindo acaloradamente o assunto que nos faz arrastar correntes, a situação política do país, me perguntei. Por que não estamos falando do que vimos em Submersos? Por que não estamos fazendo os nossos links impregnados de nossos planos de dominação mundial? Deveria haver agora uma rica reflexão a respeito, para amainar minha alma atormentada. Não há. Apenas é seguro que dizer que terminei a noite alimentada. Ainda penso nas tocas de coelho por onde mergulhamos desavisadamente. Ainda penso sobre espelhos nos olhos, fitas que queimam, barcos de cristal à beira da destruição, tempos-espaço sobrepostos. Ainda penso sobre os vulcões que explodem nos esgotos. Ainda penso em quantos universos podem conter um único instante manifesto. Ainda penso que não há nada maior que cada segundo tragado pela imaginação. Não há brilhantismos aqui. Só vida acontecendo mesmo. Só a simples escolha de dar mais um passo. E ver.

Rebate à crítica “DA NOITE EM QUE FUI ALICE” de Amanda Maia

Por Leonardo Paulino

 Ama(n)da Alice,

Quer me acompanhar neste chá?

Preciso te dizer sobre aprender a ficar submerso. É um exercício de resistência, mas também um movimento suave como essa hora do chá. Vou compartilhar com você(s) um trecho do texto “O dia em que Gottfried Been pegou a onda” de Alberto Pucheu:

[…]

É preciso aprender a ficar submerso,

é preciso aprender a ficar lá embaixo,

no círculo sem luz, no furacão de água

que o arremessa ainda mais para baixo,

onde estão os desafiadores dos limites

humanos. É preciso aprender a ficar submerso

por algum tempo, a persistir, a não desistir,

a não achar que o pulmão vai estourar,

a não achar que o estômago vai estourar,

que as veias salgadas como charque

vão estourar, que um coral vai estourar

os miolos – os seus miolos –, que você

nunca mais verá o sol por cima da água.

[…]

É preciso aprender a ficar submerso

por algum tempo, é preciso aprender

a aguentar, é preciso aguentar

esperar, é preciso aguentar esperar

até se esquecer do tempo, até se esquecer

do que se espera, até se esquecer da espera,

é preciso aguentar ficar submerso

até se esquecer de que está aguentando,

é preciso aguentar ficar submerso

até que o voluntarioso vulcão de água

arremesse você de volta para fora dele.

Há muitas saídas no antigo casarão. Alguns lugares que te levam para becos, para mistérios, para escuridão, nem tudo tão iluminado e clean como as salas da galeria.

Uma das muitas portas do casarão abre-se para um mergulho no mar. Descemos as escadas e servimo-nos de uma deliciosa hora do chá. Muitas mulheres reunidas para a hora do chá. Duas mulheres de preto, uma feiticeira e, talvez, a aniversariante.

Perceba que essa é a história de muitas mulheres. Mulheres que habitam as ruas, os becos, as escadas, o plâncton. Mulheres com agenda, vagina com plástico, pau e pepino, democracia e espelhos. Mulheres trans, mulheres meio-bichas, meio-monstras, meio-plástico, meio-escada, meio-lagarta. Juntas, dançando em um mesmo espaço, somos uma multidão. Um bando-devir. Matilha pronta para borrar os lugares de desejos, dilatar as conexões entre corpo-espaço, submergir na experiência daquele momento como água-viva.

E nós mergulhamos, saímos pelas portas, pelas janelas, pelas escadas, saímos da toca. Fora desse espaço delimitado para você(s) ver(em), uma feiticeira sair na rua lança seu feitiço em brasa. Todas as mulheres estão nas ruas! Muitas querendo salvar a democracia que se afoga em taça de vidro. Outras tantas querendo seus direitos a se identificarem socialmente como desejam. Algumas outras dançam a valsa da insensatez e depois despe(de)m-se dos saltos, mas nunca deixam de mergulhar. De uma das janelas da casa, ouço uma sereia cantar. Ela vem subindo as escadas, arremessando sua voz para fora do mar, para fora da casa, para fora.

É necessária a nossa multiplicidade, o nosso desejo de afetação, a nossa vontade de afecção. Tantos corpos que se atravessam, afetam-se e são afetados. Quantas paisagens sonoras, quantos olhos que nos veem, quantos espelhos nos olham, sem querer nos ver.

Você não me pega

Você nem chega a me ver

Meu som te cega, careta, quem é você?

Que façamos um exercício antes de tomar o chá. Nenhum lugar pode ser delimitado, nenhuma parede pode ser tão fixa, nenhum pé pode ficar tanto tempo para o alto. Só pode ter cheiro de mirra solto no ar, evaporando. Cada tempo, sua intempestividade.

No fim, que não está tão próximo da gente, quando termina a hora do chá, eu ainda continuo; mergulhando como escafandrista. Sentindo as frequências e sintonias em meu corpo que são proposta pela tentativa de submergir. Nós todas dançamos em bando, bacantes saudosas, enlouquecidas com fervo, com cantos abcessos. Estamos estourando, sendo lançadas pelo vulcão aquífero para outros lugares, para abrir e fechar outras portas, para inaugurar novas brancas agendas, para nos melarmos e gozarmos com goma, para também confundir e incomodar os destemidos son(h)os.

Aqui, fundo do mar, cheio de conchinha.

Agora, odoyá!

Com a-feto,

Leona_do Pau____

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