O que era pra ser uma Crítica da Crítica transforma-se em Crítica da Não-Crítica. Ou seja, falarei de sua ausência. Essa coluna, que deveria pensar críticas produzidas na cidade, abordará sua falta, traçando possíveis causas e outras possibilidades de agenciamento do problema.
Em Salvador, a produção de campo (que engloba as estratégias de circulação de informação e pensamento) baseia-se fundamentalmente no viés do serviço cultural, labor especificamente jornalístico. Depois de algumas semanas buscando nos jornais, encontro somente pequenas notas genéricas, divulgação de espetáculos nacionais em turnê (que geralmente possuem vasto capital midiático), comentários no mais das vezes equivocados e superficiais sobre os espetáculos regionais, e nunca um pensamento de fôlego sobre a estética teatral. E o jornalismo, mesmo que muito bem-intencionado, (vamos combinar) nunca foi muito assertivo quando se trata de arte.
Outrora ainda havia alguma produção. Eduarda Uzêda foi até pouco tempo uma das principais críticas da cidade, e talvez a diminuição atual de sua produção se deva a uma mudança paradigmática na forma de agenciamento do campo artístico, às crises do jornalismo impresso e a uma transformação contemporânea da estética teatral. Tais textos estavam a serviço de uma produção específica, onde os elementos da cena deveriam ser separados e avaliados em sua “qualidade”, e se ao final de tudo cada um resultasse minimamente “bom” ou “ok”, somava-se as “notas” e o trabalho poderia ser considerado um espetáculo que valeria a pena testemunhar. E os bonequinhos famosos em muitos jornais poderiam aplaudir de pé ou sentados, conforme manda o script da cena tradicional.
Muitos de nós atravessamos justo esse período de mudança e pudemos ver nossos trabalhos bastante mal representadas por aquela forma de escrita. Se por um lado eram reservados elogios aos espetáculos em vias de falência, por outro as proposições irruptivas ganhavam o desprezo ou — o que talvez seja pior — eram analisadas por meio das mesmas categorias subjetivas utilizadas com relação aos fantasmas do “teatro na UTI”. Nem é preciso dizer que a relação deste último com tal crítica era orgânica — havia evidentemente uma complementaridade, uma simbiose, uma manutenção política de status quo, pactuada ou não. E afinal, qual política não é estética, e vice-versa?
O dramaturgo e diretor teatral Gil Vicente Tavares já escrevia, no blog Teatro Nu, críticas provocativas sobre a produção contemporânea (da qual ele mesmo faz parte). Alguns de seus textos atacavam uma suposta “nova onda”, revelando clichês e recorrências formais, mas punha em xeque também a importante relação entre dinheiro e arte, principalmente com o crescimento dos editais como estratégia quase unilateral de circulação de capital. Gil trazia uma importante visão sistêmica que reinseria o teatro enquanto instituição social, e apesar de raramente alcançar o tutano do fenômeno — ou seja, a positividade da mudança sociopolítica, a conjuntura irruptiva do contemporâneo nas artes — ao menos se propunha a discutir seriamente tais questões. Hoje o Teatro Nu é um blog bastante influente e conta com outros colaboradores, mas se os textos já pensam cidade e cultura numa abrangência potente, por outro lado deixou-se o pensamento estético sobre o teatro em segundo plano.
Uma das iniciativas mais recentes foi o site Papo Teatral. Ali Celso Jr., Mônica Santana e Matheus Schimith acompanhavam ativamente a produção soteropolitana. Em seus textos havia uma aproximação muito interessante aos fenômenos contemporâneos, mesmo que fundamentalmente preservasse a velha cisão entre forma e conteúdo e aquele isolamento valorativo dos elementos do espetáculo, que como vimos nunca bastaria para uma imersão total na produção do nosso tempo. Estruturalmente a escrita recaía em avaliações sobre a luz, o figurino, a interpretação, o cenário e a linha narrativa, que como vimos, não são capazes de apreender toda a estrutura em sua evidência, excessos e reverberações. Mesmo que a obra se estendesse para além de seus limites, o campo era mais uma vez constrangido sob a qualificação interna, fechada, como se a crítica estivesse viciada numa avaliação pictórica ou temática do evento cênico. Também surgiam aqui e ali certas imposições de uma falta ao conjunto, como se alguma transcendência fizesse a vez de julgadora. É claro que aqui me restrinjo a falar brevemente, numa visão panorâmica, de modo que as particularidades de cada crítico permanece sujeita a melhor análise, já que evidentemente revelariam outras potências e questões. Não se pode perder de vista que acima de tudo os três integrantes são críticos e artistas engajados na emergência geral do campo. Hoje o site se encontra um tanto quanto desatualizado, e os convido a uma interlocução direta.
O teatro evoluiu muito desde as irrupções de coletividades e novas ferramentas de fomento, porém ainda é posicionado de maneira atrasada no coração de um tempo que não suporta instituições pesadas. Existe sempre a necessidade de vento fresco.
É que sabemos que a produção por si só não se sustenta. Torna-se necessária uma circulação de idéias e análises; é preciso fomentar o campo com discussões aprofundadas sobre os trabalhos. Deve-se buscar uma dinamização multilateral da rede produtiva. É óbvio que o sistema dos editais tornou-se uma das estratégias públicas mais interessantes para a produção teatral, como que estendendo veias de circulação de capital em direção a lugares que até então não possuíam tal acesso. Mas com uma escassez tal como a que vemos atualmente, já não há como contar apenas com essa ferramenta. Para que haja produção tem de haver campo. E mesmo que realmente não se trate de uma falta de recursos, não há porque estimular a dependência com relação à má administração dos mesmos.
Os grupos e coletivos surgiram ativamente depois do impulso político do início da era petista e de uma reformulação curricular polêmica num dos principais centros de formação da cidade, a Escola de Teatro da UFBA. Mas agora talvez fosse hora de se perguntar até que ponto essa instância coletiva não ficaria restringida a seu próprio círculo. É claro que em alguma época a emergência dos grupos se deu como potência fundamental, fazendo penetrar uma energia renovadora por todos os lados. Com a atividade a plenos pulmões da máquina pública, dinheiro era injetado nas novas produções, produções essas que em outra sistemática obviamente não teriam a mesma chance de se revelar. Mas vemos que a história está se transformando cada vez mais rápido, e o que antes se transformava em vinte anos hoje se dá em cinco. Vejo que a era do fomento está em visível momento de fraqueza e o que importa é criar uma musculatura vigorosa e semi-autônoma, onde a produção encontre ressonância na crítica, e onde a academia não se torne apenas um osso duro de roer com relação às outras instâncias.
Lugares de encontro tais como foram propostos recentemente pelo Ateliê Voador, VianSatã e Teatro da Queda são de uma enorme importância. O fato de tais eventos serem patrocinados pelo Estado não testemunha contra o argumento – apenas aponta para um aumento da complexidade analítica. Com essas iniciativas encontramos uma oportunidade de superação do disse-me-disse tão recorrente no meio artístico, de enfrentamento de paradigmas inescusáveis (e muitas vezes invizibilizados) e geração de novos meios de circulação, difusão e informação. O teatro evoluiu muito desde as irrupções de coletividades e novas ferramentas de fomento, porém ainda é posicionado de maneira atrasada no coração de um tempo que não suporta instituições pesadas. Existe sempre a necessidade de vento fresco. Se o teatro carrega um peso tão tradicional que o torne difícil de ser balançado por uma rajada natural, que ao menos aprendamos a construir nossos próprios ventiladores.