Crítica da Crítica | Cênicas


Clichês
Amine Barbuda 2018

Crítica: crise: clichês

junho de 2018

Edição: 20


Ir na etimologia da palavra crítica e pensá-la como crise é um clichê, mas qual outra saída se apresenta, se o que ainda mais temos são os clichês sobre a crítica, sobre o papel do crítico, sobre o que o crítico deve pensar, como deve agir, a quem deve elogiar ou não elogiar? Se o que mais temos são as crises contínuas da crítica por toda parte?

Certa vez, o diretor e dramaturgo Matthew Maguire afirmou que a crise é a condição eterna do teatro. Ampliando essa frase de efeito, é possível estender a crise como condição eterna de qualquer arte e, por consequência, da crítica que se faz a qualquer arte. Assim, somos todos nós, artistas e aqueles que se propõem a criticá-los, corpos artístico-críticos, corpos em eterna crise com seus afazeres, com as suas poiésis.

Para Roland Barthes (cujas ideias a respeito da crítica podem ter se tornado clichês diante de inúmeras citações, mas ainda são bastante válidas), a crítica “pode ser, de modo contraditório mas autêntico, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, histórica e existencial, totalitária e liberal”. Trata-se de ver a crítica não como dom ou inspiração, mas como um trabalho com a linguagem de cada época. Barthes pensa a crítica como necessidade, mas uma necessidade que “é escolhida por todo crítico em função de uma certa organização existencial, como o exercício de uma função intelectual que lhe pertence particularmente, exercício no qual ele põe toda a sua ‘profundidade’, isto é, suas escolhas, seus prazeres, suas resistências, suas obsessões”. A crítica seria como um diálogo entre a história e as subjetividades do crítico e a do artista criticado. Diálogo que ultrapassa a mera homenagem do crítico à verdade da obra ou do autor, mas que é a “construção da inteligência do nosso tempo”.

Barthes também defende que “a atividade crítica deve contar com duas relações: a relação da linguagem crítica com a linguagem do autor observado e a relação dessa linguagem-objeto com o mundo”. É o atrito dessas linguagens que define a crítica. Esse atrito ocorreria entre o espírito do tempo, ou a linguagem que a época fornece e a linguagem usada pelo autor da obra. Ao crítico caberia “ajustar” essas linguagens. Barthes cita como exemplos de linguagem de sua época o existencialismo, a psicanálise, o marxismo, mal ou bem, estruturas de pensamento mais sólidas, possíveis para o atrito. No entanto, como atritar a fragmentação líquida de nossa época? Como assumir mais uma vez os clichês crítica-crise, arte-crise e elaborar um pensamento, digamos, atritado sobre as manifestações artísticas atuais? Sendo a crítica um discurso sobre outro discurso, uma metalinguagem, como Barthes também conceitua, e mais: não tendo como papel “descobrir ‘verdades’, mas somente ‘validades’”, o crítico talvez seja aquele que está mais à deriva, porque se, por um lado, depende sempre do trabalho do outro para fazer o seu, também quer para si algo novo, algo que vá além de descobrir validades do trabalho alheio. Algo que valide seu trabalho como discurso metalinguístico que, mesmo em crise, seja capaz de provocar alguma vibração, algum tremor no cenário da vida artística e cultural. Afinal, verdade, validade e vaidade podem não ter a mesma origem etimológica, mas formam uma tríade que, de uma maneira ou outra, persegue os artistas e os críticos desde sempre.

É possível que o tom solene de Barthes em relação à crítica também tenha entrado em crise nos dias atuais, justamente porque a crise da crítica avançou junto com a crise da arte e o estruturalismo já não dá mais conta das diversidades, dos enfrentamentos, dos discursos, do mundo que não permite mais aquela assepsia da estrutura, da arte pela arte. No entanto, quando se carrega a crise no próprio nome, algumas vezes o porto seguro do ideal pode ajudar na construção de uma reflexão, mesmo que breve, a respeito desse trabalho.

Seguindo pelos clichês das referências canônicas, podemos perceber que grandes nomes da crítica teatral, literária, cinematográfica ou musical, também enfrentam seus momentos de crise e questionam-se continuadamente a respeito de seu trabalho. Bárbara Heliodora e Sábato Magaldi eram unânimes em dizer que o crítico tem que conhecer muito da história e da teoria da arte que critica. Para eles, não há como ser crítico sem esse embasamento. Trata-se de uma erudição que também está em crise porque também arrefeceu frente aos novos parâmetros informacionais que se estabeleceram na contemporaneidade. A erudição, hoje, vive em guetos, em nichos, muitas vezes lamentando o espaço perdido, o fim da solidez, o fim do seu púlpito, o fim daquela ilusão de que ela era capaz de determinar a inteligência de um tempo.

Décio de Almeida Prado, por exemplo, também era partícipe dessa necessidade de erudição. Talvez, por isso, chegou a afirmar que o crítico ideal é aquele que deixou de escrever e que passou a ter qualidades apenas nas memórias de seus leitores, ou seja, trata-se, mais uma vez, da idealidade do passado, da cristalização da memória, da canonização.

Por outro lado, é do agora que trata a crítica. Quer se queira, quer não, cabe ao crítico o enfrentamento presente da precariedade da escrita, das parcialidades, dos meandros estéticos, dos eruditismos, das percepções e contatos com aquilo que pode ou não dialogar com seu mundo. É preciso também enfrentar os exercícios sempre falhos de definição do bom e do ruim, as adequações aos modismos, a percepção ou a não percepção do zeitgeist e, também, enfrentar a dualidade entre ser e estar num nicho, pregando para convertidos, ou buscar novos espaços de divulgação, novos meios de comunicação capazes de ampliar o alcance do discurso crítico.

Além disso, o crítico também precisa saber que essa função toda talvez seja inútil. Diderot, num trecho bastante irônico do ensaio Dos autores e dos críticos, já expunha as pretensões inúteis tanto dos artistas quanto dos críticos, mas dava a estes uma inutilidade ainda maior: “O papel de um autor é um papel bastante vão; é o de um homem que se julga em condição de dar lições ao público. E o papel do crítico? É bem mais vão ainda; é o de um homem que se julga em condição de dar lições àquele que se julga em condição de as dar ao público. O autor diz: ‘Senhores, escutai-me; pois sou vosso mestre’. E o crítico: ‘É a mim, senhores, que cumpre escutar; pois sou o mestre de vossos mestres’”. Como se vê, o papel do crítico vem sendo posto à prova há muito tempo. A crise é contínua, profunda, congênita até. O lugar do crítico nunca foi o do conforto.

A crítica permanece porque a arte permanece. Talvez não seja o caso de se pensar numa hierarquia que estabeleça dependência da crítica em relação à arte, mas de uma espécie de interdependência temporal: a arte acontece para a crítica acontecer, não como consequência, mas como reverberação, vibração do acontecimento primeiro. Pode-se dizer que há uma fraqueza quando a interdependência não acontece: quando a arte fala sozinha e quando a crítica também instaura seus monólogos. Nesse caso, a crise, tão inerente a essas atividades humanas, não existe, porque fica apenas na superfície, no jogo básico das vaidades. O que restam são certezas e em tempos de indecidibilidades, rizomas, liquidez, as certezas nos calam, a todos, e calar não é arte nem crítica.

No fundo, tudo pode ser resumido, baudelaireanamente, pela paixão, afinal como sentenciou o poeta: “o crítico deve cumprir seu dever com paixão, pois quem se torna crítico não deixa de ser homem e a paixão aproxima as personalidades afins e eleva a razão a alturas insuspeitadas”.

Em crise, elevemo-nos.


Rubens da Cunha é professor, escritor e crítico teatral.

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