Crítica | Cênicas


Foto de Fábio Duarte

Crítica a Negras Utopias

março de 2017

Edição: 10


“Há algumas eras nosso amor vive por fazer

afrofuturismos”

(Marcelo Ricardo, Satélites. In: Enegrescência.)

Estamos em plena Galeria Cañizares, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, participando, como artistas e espectadores, da VII Mostra de Performance que, neste ano, traz a temática “Performance Negra, imagem, empoderamento e dissonâncias contemporâneas”.  É o terceiro dia da mostra, que vai de segunda a sexta. Por ser um dos artistas participantes, tenho acesso ao camarim por onde passo para ir ao banheiro dos artistas. E é lá no camarim que vejo dois jovens do sexo masculino, negros  e cis, se acarinhando. Acho bonito aquilo.

Já do lado de fora do camarim após o anúncio de Ricardo Biriba, o organizador da mostra, me dou conta do que tinha acabado de ver. Os dois jovens negros, Bruno Novais e Eduardo Guimarães, estudantes-pesquisadores da Escola de Dança da UFBA, estavam se preparando para mostrar um experimento: Negras Utopias. Os mesmos jovens, ambos de calça jeans, tênis e camisa regata preta, deambulam entre nós, esses seres esquisitos que fazemos e apreciamos a performance art, cada um escolhendo um eventual espectador (como é difícil arrumar uma palavra para quem está vendo e interagindo com uma performance!) para ou olhar fixamente ou acarinhar ou simplesmente olhar e dar as costas. Posso estar enganado, mas a impressão que tive é que quanto mais negro ele fosse, mais demorada e amorosa seria a interação.

Pausa para a metalinguagem: fui escalado para escrever uma crítica, eu sei, e não uma selfie. Mas devo admitir que além de ser um crítico que não sabe escrever crítica, escolhi um evento do qual participo como artista e uma performance que fala de e para pessoas como eu (vocês já vão saber por quê. calma!). Por isso a primeira pessoa e a autorreferência vão dar a tônica do texto. Afinal de contas, performance é uma ação artística que se dá no aqui e no agora e que, em geral, e é o caso, acontece na interação com os espectadores participantes. Falar dessa experiência na terceira pessoa ou com instrumentos de análise mais objetivos não daria conta de uma performance-experimento.

Esse primeiro momento da performance leva uns dez minutos e as reações são tão variadas quanto são as ações dos performers. Olhar nos olhos não chega a ser bem uma provocação numa cultura como a nossa e ainda mais no contexto em que a ação se deu. Mas o carinho incisivo de um homem com outro pode gerar algum mal estar. Claro está que fora da galeria Cañizares alguns gestos que os performers fizeram poderiam gerar agressão física e até assassinato. Os leitores da Barril são devidamente sensíveis e bem informados e por isso serão dispensados de lerem, aqui,  sobre as estatísticas de homolesbotransfobia no nosso país. E ainda que a ação tenha sido nesse contexto, digamos, propício, houve pelo menos duas situações de desconforto de homens acarinhados. E vejam bem, não estamos falando de nenhum carinho exagerado, desrespeitoso, sexualmente ostensivo. Estamos falando de toque, fricção, contato entre peles, estar próximo fisicamente por mais de um minuto. Risos nervosos, leves constrangimentos transpareceram para olhares mais atentos. Além do mais, quase que não havia música (em algum momento uma trilha incidental, que servia mais como música de fundo).

A iluminação era geral, não foi usado projetor, não havia nenhum elemento de cenário, adereço, nada que retirasse aqueles rapazes de seus cotidianos de jovens negros e homossexuais.

Bem, agora vocês já sabem por que não dá pra falar na terceira pessoa. Se não sabem, tirem suas conclusões.

Na segunda parte da performance, volta um pouco da música incidental e os performers se encontram e fazem evoluções tímidas, circulares, acenando para um carinho entre dois rapazes. Parece que querem nos dizer, com alguma cautela, que as negras utopias dizem respeito ao direito de sermos negros e gays e falarmos disso com tranquilidade. Nos anos 70 havia uma campanha “Beije o seu negro sua negra em praça pública”. O que vi parecia uma versão homoerótica e performática dessa campanha.

Num terceiro e último momento um dos performers se dirige a um espectador – participante, artista, Negro e gay, que é convocado para a dançar em trio, no que parece uma alusão a um ménage a trois, mais uma vez, bastante recatada. Essa é a parte mais breve da performance que logo se encerra.

Mas não acaba. Ali está um esboço, um experimento de algumas reflexões e vivências, no corpo e no coração de pessoas negras e homossexuais. Ainda se fala muito pouco sobre a interseccionalidade entre raça negra e sexualidades não heteronormativas. Os movimentos sociais ainda exalam uma herança na maioria de suas histórias de formação, que tendia a privilegiar as questões de classe em detrimento das outras questões. Depois, as outras questões passaram a ser tidas como a principal de seu movimento. Feministas privilegiavam a questão de gênero, ativistas do movimento negro privilegiavam as questões de raça-etnia. As coisas estão um pouco diferentes neste tal do contemporâneo. Mas ainda há resistências. Talvez por isso ainda seja delicado falar em certos segmentos dos movimentos negros, sobre a urgência de se falar da LGBTQfobia. Há, sim, exceções, como o Movimento Reaja ou Será Morto, Reaja ou Será Morta, que sempre menciona as pessoas LGBTQ e relaciona o vetor de raça e sexualidade como elementos importantes para entender a tragédia do genocídio do povo negro.

É importante fazer a ressalva de como é delicado, ainda, falar dessa questão. E como é importante que, em performance, dois jovens negros falem de um ponto de vista afirmativo, propositivo, sobre o amor. “O amor cura”, disse bell hooks, num texto em que analisa como a escravização do povo negro impactou até os dias de hoje a dificuldade de muitos de nós expressarmos afeto. Falar de amor é fazer política em tempos que o candidato que se projetou com a pressão, bem sucedida,  para vetar o kit homofobia tem 8 % de preferência e o menor índice de rejeição entre os presidenciáveis. Se se está falando de amor entre homens negros e homossexuais, mais ainda. Porque nós, negros e homossexuais, negras e homossexuais, bissexuais, trans, intersex, somos as maiores vítimas de preconceito e agressão. E de silenciamento, e sorriso de canto de boca, e de boicote, menosprezo, subestimação, todas essas estratégias de apagamento que sabemos que acontecem, mas não temos como provar.

 

Ali está um esboço, um experimento de algumas reflexões e vivências, no corpo e no coração de pessoas negras e homossexuais. Ainda se fala muito pouco sobre a interseccionalidade entre raça negra e sexualidades não heteronormativas

Talvez também por isso,  e por algumas reações naquele dia, e de outras em que tiveram no experimento que fizeram em praça pública, os gestos são, na minha opinião, excessivamente tímidos. Não esperava confronto, nem beijo gay que a novela da globo não comprou. Escolhi esta performance por motivos óbvios: sou negro e gay e entendo que pensar a relação entre sexualidade e raça-etnia não hegemônica é mais que importante, é urgente. Toda iniciativa de pensar esteticamente (e não só) sobre o tema é bem vinda. Mas tem uma potência ali, que é nos contaminar pelo amor, a ponto de não termos dúvida da beleza do afeto, que ficou, na minha sensação, só como um esboço. O outro motivo de eu ter escolhido essa ação foi justamente por ser um experimento e haver a possibilidade de intervir positivamente, e talvez até de modo pretensioso, confesso, nos caminhos dessa experimentação. Precisamos falar mais sobre o assunto e, mais que isso, trocar e potencializar as experiências mais recentes de discussão sobre o caráter político do afeto. Eventos recentes promovidos por e com a participação de intelectuais negras como Denise Carrascosa, Cidinha da Silva, Livia Natália podem trazer contribuições importantes para a pesquisa que os dançarinos-performers estão desenvolvendo. Assim como buscar as referências literárias próximas, para além de James Baldwin. Não que o experimento vire sarau, mas que possa se contaminar com a poesia de um Waldo Mota, e das já citadas Cidinha e Livia, que escrevem sobre a temática aqui e ali.

Encerro mais uma vez recorrendo a Marcelo Ricardo,  um poeta, negro, gay, soteropolitano, com palavras que servem tanto aos performers quanto aos que estávamos lá os vendo:

“Lembre-se sempre que olhar uma bicha preta:

Toda bicha preta é antes de tudo beleza forte, viado!”

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.