Ensaio | Audiovisual


Zentai
Milton Mastabi

Nos trinta e cinco anos que separam Romance na Itália de Doida demais, a crítica de cinema que aspirava fazer teoria viu mudar a luz que vinha de seus principais faróis. Em 1954, ano de lançamento do filme de Roberto Rossellini, André Bazin orientava uma geração de críticos que passariam à história como cineastas (Jean-Luc Godard e François Truffaut entre eles). Todos dividiam espaço na revista francesa Cahiers du cinéma.

As ideias de Bazin encontravam nos filmes de Rossellini um objeto ideal para se firmarem como ideologia. Bazin, que era católico, pensava o cinema como uma arte da metafísica: mais do que imagens, uma câmera no mundo produziria revelações. O cinema realista de Rossellini teria encontrado na concretude das coisas uma via de abstração que ruma para o místico. Em 1989, essas ideias já tinham se transformado em arquivo. Nos dois importantes livros de Gilles Deleuze sobre o cinema (de 1981 e 1983), a abstração dá lugar a uma reiteração: de uma arte espiritualista, o cinema passa a ser entendido como canal da sensibilidade. A depuração da matéria em vertigem espiritual dá lugar à valorização de processos óticos independentes do pensamento. Para Deleuze, o cinema pode conta histórias, mas é sobretudo arte do mostrar, e nem sempre o dito corresponde ao visto. Ou seja: o cinema não separa matéria e espírito, mas aborda a experiência de vida pela ótica da visão (!).

Embora o cinema possa pensar, os melhores filmes têm uma coisa em comum: não ilustram teoria de ninguém. Vista no contexto da mudança no debate de teorias, a comparação de Rossellini e Sérgio Rezende não reitera a mudança na paisagem teórica, mas retoma algumas das mesmas ideias sobre espírito e sensualidade. Mais pelo contraste do que pela imitação, podemos aprender algo com a Ingrid Bergman de Romance na Itália e com a Vera Fischer de Doida Demais, além da similaridade das aventuras amorosas de que participam. Na cena final do filme de Rossellini, o carnaval envelopa o corpo de Ingrid Bergman e transfere sua força sensual para o fluxo espiritual e emocional que ela experimenta durante a viagem e que deságua numa reconciliação brutal e definitiva com o marido.

Em uma sequência que também envolve uma quase-separação do companheiro, Vera Fischer caminha em meio aos festejos de São João no estado do Maranhão. A montagem é parecida, mas o resultado é diferente: há algo no rosto de Bergman que anuncia um desfalecimento. O sentimento da personagem, elaborado em seus encontros com as paisagens italianas, começa ali a abandoná-la, e com isso se esvaziam a agonia e a dúvida que ela há pouco havia experimentado. Em Vera Fischer, o efeito da cachaça que ela bebeu na cena anterior é acumulativo (e não fugidio): intensifica sua presença corpórea e borra os sentidos, e este último sentido é acentuado por efeito da montagem que gera contrastes. A juventude da personagem contra os rostos de homens envelhecidos; a harmonia sutil de sua beleza carnal com a alegoria inesperada e esfuziante das fantasias coloridas; o torpor que se acentua nela com uma crescente manifestação de alegria, força e firmeza das pessoas.

Outro aspecto é que, em Romance na Itália, a imagem abre distâncias entre a personagem e o mundo ao seu redor. A mulher é um corpo pequeno diante de um mundo de formas múltiplas. É por essas vias, ou pelo que há de vazio entre um ponto e uma extensão, que se produz a ideia de uma passagem que se abre entre os dois elementos. A duração dos planos tanto da personagem quanto daquilo que ela vê, alinhada com a atuação e com o enquadramento, cria uma tensão que não se acumula, mas circula, dá voltas nesses espaços, preenchendo-os de modo fugaz, e que por fim se desfaz nas figuras carnavalescas, enquanto abandona a personagem dando lugar à certeza do amor reencontrado.

Em Doida demais, o cosmos é curto, a festa é local, não são nem 30 as pessoas que soltam fogos e veem o bumba-meu-boi. Os mesmos personagens secundários acumulam funções: o mecânico é o pai da moça assassinada por maldade, por exemplo. Tudo isso faz jus à verossimilhança do filme, mas também acrescenta um peso dramático à situação da personagem de Vera Fischer. Sua cena bêbada é curta, mas é suficiente para alinhá-la com o desfecho de Romance na Itália. O que no filme de Rossellini eram espaços amplos e a duração da contemplação (e se quisermos ser ainda mais justos com a crença cinematográfica de Rossellini no poder da câmera revelar o real, diremos: o tempo que leva para o mundo se revelar), no de Sérgio Rezende é um espaço pequeno demais para tantos corpos, uma atmosfera que é facilmente excedida pelo contraste entre estados de ânimo tão diferenciados (festividade e desilusão, religiosidade e desejo).

Finalmente, a viagem de Ingrid Bergman é espiritual e ela se torna mais humana depois de partir da frieza da dúvida interior para o calor do reencontro de si no outro. Já a experiência de Vera Fischer é de ordem material. A sua imagem nunca se descola dos sentidos (é tátil, cheira e faz barulho) nem tenta alcançar a metafísica das coisas. Mesmo seu corpo nu em uma cena anterior não é santo nem virginal: sua pureza é humana, ele emana uma concretude quase ingênua em sua inteireza, coerente com a personagem cuja trajetória é tão difícil de prever.

Vistas juntas, Bergman e Fischer fazem um contraste luminoso de matéria e espírito. A primeira, invadida pelo que vê enquanto viaja, ameaça se desfazer em ideia, extraída da sua própria corporeidade. Em Doida demais, Vera Fischer nunca abandona o plano carnal. Ao contrário, sua encenação a torna cada vez mais opaca, e faz dela uma personagem inimiga da conceituação. Em Bergman a ideia vem antes; em Fischer, chega primeiro a sensação. Carne ou espírito? Cinema: filmes que vistos juntos nos aproximam um pouco mais do ser humano.


Diego Damasceno é crítico de cinema.

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