Selfie | Audiovisual


Arte ambiental do cine Tupy, obra de Juarez Paraiso.
Visão parcial

É preciso se adaptar, deixar que o corpo seja invadido pelo cinemão, abandonar o mundo-de-fora; os carros que atravessam barulhentos as avenidas, os casais que passeiam de mãos dadas, os vendedores que anunciam seus produtos em alto-falantes, o sol escaldante sobre nossas cabeças. Aqui a paisagem é outra e a adaptação não é metafórica, mas física e carnal. O mundo iluminado da cidade não é o mesmo deste tomado pela escuridão, no qual a visão dá lugar a outros sentidos que despertam curiosos. É necessário algum tempo de imersão para que a pupila se dilate suficientemente e os vultos que mal distinguimos de início se tornem formas mais ou menos contornáveis. Até lá, tudo que vemos é a tela iluminada onde se desenrola o filme e esperamos pacientemente até que encontremos um lugar naquela engrenagem.

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Conhecer o Cine Tupy é algo que eu deveria ter feito há muito tempo e, ao caminhar em sua direção, pergunto-me insistentemente por que não o fiz. Ando pela Baixa dos Sapateiros observando a multidão. Lojas e mais lojas se sucedem, até que avisto a Igreja Universal do Reino de Deus, uma construção branca e imensa colada parede com parede ao Tupy. Há uma doce ironia no fato de que apenas alguns tijolos dividam aqueles dois templos e, tanto de um lado como do outro, eles abriguem experiências tão intensamente eróticas. Os fiéis da Igreja se contorcem epilépticos em transe, falando em línguas e sendo possuídos por forças divinas y diabólicas; os fiéis do Cinemão se lançam uns sobre os outros em orgias e transas sem fim, entregues em êxtase aos prazeres que juntos são capazes de produzir. Em ambos os casos, há uma espécie de abertura do corpo individual à coletividade; do Uno ao Todo, papo místico mesmo.

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Sento e me deixo afundar em umas das poltronas. Na tela assisto Big Macky 4 (2008), uma produção do grupo Brasileirinhas, dirigida por M. Max. Ao meu lado, um homem se masturba em pé, encostado na parede; na tela, Macky acaricia seu pau gigante por cima da cueca enquanto Julia Paes, uma das atrizes mais famosas do filme, dança sensualmente em direção a ele e a todos nós. O pornô é um gênero fílmico do tipo que convoca o corpo à ação. Assim como o melodrama nos promete as lágrimas, ele nos anuncia os espasmos quase mortais do gozo. Enquanto olho fixamente para a tela, alguém se aproxima, sentando ao meu lado. Não vejo muito bem quem é; apenas sinto sua mão abrir vagarosamente o zíper da minha bermuda e a boca quente que engole minha pica. Outra pessoa chega vindo por trás me acariciando o peito; acho que era o cara que estava batendo uma quando cheguei. Não sei muito bem, neste momento estamos todos, eu, Macky, Julia e eles, participando do mesmo movimento orgiástico.

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Minha visão se acostuma lentamente à pouca luz e começo a perceber mais nitidamente a estrutura ao meu redor. Ando devagar observando a arquitetura do lugar, o pé direito imenso, a disposição das poltronas divididas por dois largos corredores, os banheiros e as cabines que funcionam como espaços mais reservados paro o sexo… Algumas pessoas estão sentadas nas poltronas, outras caminham de um lado a outro em busca de algum encontro: bichas, travestis, putas, bolo-doidos, maconheiros, garotos de programa; todo um adorável bestiário reunido sob o mesmo teto. Pergunto-me se as pessoas que hoje habitam o Tupy o fariam também em sua era-de-ouro, quando na década de 60 ele fazia parte dos grandes cinemas da cidade e era frequentado pela elite artística-intelectual da Soterópolis. Talvez não; o que para muitos é decadência, para outros é a própria possibilidade de existência. Sinto-me feliz de estar aqui agora.

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Guarany, Pax, Bahia, Capri, Bristol, Art, Liceu, Tamoio, Jandaia, Excelsior, Astor; um a um os cinemas de rua de Salvador foram fechando suas portas. Alguns estão completamente abandonados. O Glauber ressurgiu com nome de Banco – gentrificando com carinho – outros se tornaram igrejas evangélicas neopentecostais. O Tupy é o único que resiste como cinemão: “Todo dia 2 filmes eróticos”, anunciavam os letreiros que hoje nem existem mais. Antes de sua decadência, marcada pela ascensão dos shopping centers na década de 70, ele era considerado um cinema de ponta em termos de arquitetura e projeção, tendo sido o primeiro da cidade com sistema Cinerama®, cuja tecnologia permitia aos espectadores a visão perfeita da tela de qualquer ponto do seu grande salão. Além disso havia o foyer projetado pelo artista Juarez Paraíso, que dava ao espaço um ar avant-garde e permitia que os cinéfilos se reunissem antes e depois das sessões. Hoje todo esse glamour se deixa ver apenas por centelhas nas paredes descamadas que registram suas memórias sobrepostas. Entre a era-de-ouro e o fim-do-mundo que a todo tempo se anuncia em suas ruínas, o Tupy sobrevive como um limbo profanado pelo desejo.

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Já não sei quantas horas terão se passado. Sento em uma das poltronas suado, sem camisa, exausto depois de outra foda. Meu corpo tem cheiro de sexo, o mesmo cheiro do Tupy. Olho ao redor e observo os movimentos que animam o espaço. Duas fileiras à frente, um casal transa sem se importar com as pessoas que se aproximam para assistir a cena. Ali mesmo, no meio das poltronas, eles se posicionam e começam uma espécie de show que acompanho sem precisar me mover; o filme agora são eles. Vendo o cinema tomado por esse jogo entre exibicionismo y voyeurismo, penso em como os espectadores do Circuito SaladeArte se assemelham a animaizinhos intelectualizados, sentados docilmente em suas cadeiras, escravizados pela imagem cinematográfica. Aqui a espectatorialidade é outra e o filme não está apenas na projeção – todo o cinema é imagem feita e desfeita a cada encontro. O Tupy é cinema expandido: é C I N E M Ã O.

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Certamente uma das razões pelas quais não conhecia o Tupy é porque até alguns anos atrás havia o Astor, na Rua da Ajuda, e o Astor era suficiente para mim. Quem passa por sua antiga entrada, hoje transformada em muro, nem imagina o que um dia foi aquele lugar. A história do Astor foi soterrada, sobrevivendo apenas em registros de jornalistas-sensacionalistas sempre surpresos com experiências que não podem alcançar. Talvez por isso eu escreva agora sobre o Tupy, ainda que esteja correndo o risco de escrever demais, entregando as regras do jogo como um traidor. É que o gesto da escrita também me coloca sob risco de um registro atento a outras sensibilidades. Do presente vejo os escombros por vir, escrevo então para o futuro na esperança de que nossas memórias compartilhadas impulsionem vidas que ainda sejam movidas pelo desejo.


Matheus A. Santos é escritor e vídeo-maker

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