Ficção e Poesia | Literatura


Pintura de Anderson Santos - Cabeça#1 - Óleo sobre tela 30x30cm 2013

CARVÃO COR DE SANGUE

abril de 2021

Edição: 22


I

Dizem que Lázaro Couto perdeu o juízo aos 30 anos, mas talvez tenha acontecido bem antes. Subproduto de uma das igrejas mais antigas de São Sebastião da Divina Graça, desde a primeira infância, sentia-se incomodado na casa de Deus. Ferido, julgado, até certo ponto se via invadido pelos olhares ásperos dos fiéis que frequentavam a mesma congregação. Nas longas sessões em que o padre aparentemente retrocedia ao Ano Zero com seus sermões, o menino ficava jogado no canto do banco, esquecido e apagado, enquanto os pais executavam traições discretas que logo se tornariam pecado.

A infância não foi ruim, mas foi dura, pesada como aço.

O pai do menino, Meridiano Dias, ganhava a vida como jardineiro da Prefeitura de São Sebastião. Toda a beleza do mundo ele gastava com as flores, guardando para os filhos e a esposa a feiura daqueles dias. A mãe, Odete, era mais jovem que o marido e também fora a parte mais bonita do casal por muito tempo. A irmãzinha de Lázaro chegou tarde ao mundo, quando o menino já tinha 12 anos. Chegou e morreu. E foi então que a mãe começou a ficar seca e arqueada, por dentro e por fora, calada ou de boca aberta.

Talvez tenha sido por culpa deles, ou quem sabe não tenha tido relação com os pais, mas Lázaro rapidamente começou a se familiarizar com o que as outras pessoas evitavam. A decadência das ruas, a escuridão das matas, o mofo das paredes que deixava tudo da mesma cor. Quando via de perto um bicho morto caído e podre no asfalto, então? Ganhava o dia.

Não demorou para a cidade começar a falar, e ela falou mais ainda quando o menino deixou a casa dos pais. Saiu pra não voltar. Pra viver de verdade. Pra vadiar.

E os dias foram passando com estranheza e pequenos furtos, com a verdade do mundo se mostrando sem pudor e sem vergonha. Aos dezessete, um emprego honesto, como entregador de supermercado. Aos dezenove, uma casinha financiada pela prefeitura. Dois anos mais tarde, finalmente algum sentido.

Em sua alma madura, toda luz foi admitida como menos importante do que qualquer sombra. Que graça tinha a luz, todo aquele branco? Alguém consegue encarar por muito tempo sem ficar cego? Já o escuro tinha tonalidades, tinha formas, e quem ficasse muito tempo com ele poderia até mesmo… ouvi-lo. Algumas noites, quando o quarto estava apagado e a janela só mostrava um céu minguado e sem lua, o escuro conversava com Lázaro. Mostrava seu cheiro, seu toque, sua pele. Nessas noites, Lázaro só se acalmava depois de se masturbar ou fazer amor.

Nunca foi muito chegado a compromisso, mas gostava delas. No calor de São Sebastião, os corpos se diluíam feito óleo, se fundiam, como se compostos de uma coisa só. Depois do amor – que nem sempre tinha muito de amor –, Lázaro gostava de observá-las: a gordurinha que sobrava, os seios pendidos, as ancas largas que protegiam o caminho do céu. Com sorte, descobria alguma cicatriz. Gostava especialmente das cesáreas, que traduziam bem a sensação de trazer alguém para este mundo de dor.

Seguindo suas preferências um tanto incomuns, Lázaro conheceu a arte: Goya, Francis Bacon, Henry Fuseli, Caravaggio. Também, a literatura e o cinema, desde que apresentasse personagens desesperados, psicologicamente devastados, ou simplesmente tão confusos quanto ele mesmo.

Lázaro se apaixonou em uma visita a galerias informais, dessas escondidas em pequenos becos, que sempre trazem um pouco de novidade.

“Beta”, ela se apresentou. E ele decidiu que precisava ser amado por ela.

Passaram a noite em um hotel barato. Entre uma estocada e outra, ela contou a Lázaro que já fora casada, mas se cansou do marido que a tratava como um de seus rivais do jiu-jitsu.

Como Lázaro não tolerava a igreja, nunca se casaram. Mas Beta pariu duas filhas, e por muito tempo, a nova família manteve Lázaro longe da escuridão.

As crianças cresceram até cinco e seis anos, e então a escuridão, enciumada com a felicidade do antigo amante, decidiu tomá-lo de volta para si. Disseram que foi um acidente, uma fatalidade, mas quem conhecia Lázaro desde menino comentou que foi um castigo por sua vida de pecado.

O homem enterrou suas três mulheres e foi trabalhar. Outra terra, outra cidade, o lugar mais escuro que encontrou.

Na carvoaria, o calor era tanto que nem dava tempo de sofrer. O peito vivia cheio, a pele vivia suja, os olhos ardiam até que as lágrimas secassem. Nos piores dias, o humor dos homens se aquecia tanto quanto a madeira, e era preciso ter muito juízo (e alguma cachaça) para não jogar alguém dentro dos fornos.

Fazia mais de 40 graus à sombra quando a escuridão tomou de volta o que lhe pertencia. Quem viu Lázaro naquela tarde, evitou falar no assunto. Quem falou, contou que ele estava nu, todo tingido pelo carvão, e que alguma coisa estranha fizera dele sua morada.

Lázaro estava pintando um dos fornos, pintando a história de sua vida. O menino magro, o homem adulto, a barba branqueando cedo demais. Nos olhos, em vez da escuridão, somente a brancura revirada das órbitas. Terminava um e passava para outro, e Lázaro só parou de rabiscar o carvão quando pintou todos os sete fornos. Então entrou no último e não saiu mais.

Dizem que gritou uma única vez, e que não foi grito de gente ou grito de bicho. Era uma coisa rasgada, rouca e agonizante, que, no fim, pareceu um grito de felicidade.

Um padre das redondezas tentou encomendar a alma de Lázaro, mesmo sem sobrar muita coisa depois do forno. Lázaro voltou a ser o que sempre fora. Um instrumento. Uma proposta. Um pedaço vivo de carvão.

Rastro #4 – Desenho digital de Anderson Santos, 2015

II

Boa Esperança é um nome bosta. Para começar, o sujeito só precisa de esperança quando tá mergulhado na desgraça. E se ele precisa de esperança, o que tem de bom nisso?

Nasci neste buraco em 1971.

Aqui eu vi o Brasil ser campeão do mundo duas vez (grandes coisas) e perder no resto da porra toda. Os pior político, as pessoa mais dissimulada, essa vida torta que quase mata a gente de fome e de raiva. Ah, mas o Brasil num tem terremoto. E precisa, fidumaégua?

De tanto desgosto, comecei a gostar da feiura das coisa. Das puta, dos cafetão, gosto até quando uma mulher direita é flagrada pulano a cerca. As vez, elas pula pra minha cama, daí eu viro elas de bruço e meto a pistola até o talo. Eu gosto de ouvir os grito, de ver o sangue escorreno. Já até matei uma.

O povo tem mania de chamar quem mata de assassino, ou desses nome cheio de mistério. Homicida, genocida, serial isso, serial aquilo-otro. Pra mim, no meu caso, eu não sou assassino, sou um trabalhador.

Cê já matou alguém? Já sentiu a dificuldade? Já escutou algum corno invocano o nome de Deus pra ficar vivo? Vou te contar… a gente é que se sente Deus.

É bem capaz de você tá aí sentado com seu rabo gordo me chamando de doente da cabeça e de desgraçado sem coração. Eu não sou nada disso. Eu sinto dor, remorso e até amor. O caso é que eu gosto do que eu faço. E eu sô bom nisso. Sabe quanto me pagam pra dar cabo de um corno? Cinco pau. Cinco barão. Parece pouco, mas se você conseguir colocar três desses serviço no caderninho, são quinze pila por mês, e nem o juiz de bosta da cidade ganha isso.

Boa Esperança tem quase 50 mil habitantes. Desses, eu não matei nem cem. Já o prefeito ladrão daqui, que é empregado do governador ladrão, que é empregado do presidente ladrão da república, deve ter matado pra lá de dez mil.

Povo gosta de julgar os outro, eu não. Eu não julgo ninguém, mas também não engano. Então se o cara é ladrão, digo logo que é ladrão e cabou.

Tentei tomar jeito faz uns cinco ano.

Conheci a Ritinha na esquina da rodoviária, que é onde as puta e os traveco cheiram do mesmo jeito. Eu nem sabia se ela era uma coisa ou outra, porque pra mim não fazia diferença. Eu queria atrás, então… bastava ser justo.

Acabei casando com ela e fiquei sem matar, uns quatro ano.

A Rita pegou barriga e vieram logo dois. Como eu sou feio e ela também, as crianças nascero sem muita beleza. Mas eles era meu, então eu achava os dois bonitinho. Já a Rita começou a ficar feia de verdade. Ela ganhou uma pança maior que a minha e começou a ficar exigente. Queria farra, queria sair de casa, parecia que eu e os menino (o Duduca e o Dalvan) num era suficiente pra ela.

A fiadaputa me traiu com o disgramado do açougue, um tal de Lázaro. Espiei os dois na minha casa, ele no aperto dela, ela gemendo no caibro dele. Acho que ele deu dinheiro pra ela depois, mas não tenho certeza.

Matei ela no mesmo dia.

Dessa morte eu não me orgulho, porque foi no impulso, na raiva, e deixou o Duduca e o Dalvan sem a mãe. Não ganhei nada com aquilo, e ainda perdi um tempão pra conseguir levar ela, pedaço a pedaço, até o rio do Pardal, que é onde a gente joga o que não presta. Enterrar eu não confiava, mas o rio leva pra longe. O povo joga o esgoto por lá, então tava tudo certo, porque o cheiro não ia alarmar ninguém.

Os menino ficaro com a vó, mãe da Rita, eu convenci a véia que a rapariga da filha dela tinha caído no mundo com um corno e eu não tinha como cuidar dos bacuri.

Acabei desgostando da vida depois disso. Eu já falei que não sou um desses desgraçado sem coração, então sentia falta dos menino. Da Rita, não, porque ainda lembrava dela gemendo no pau do açougueiro.

Ah, fiz isso também. Eu acabei com a vida do disgramado.

O sujeito tinha mulher e duas filha, e eu dei um trato nos freio do carro deles. Parece que as menina morrero na estrada, queimada, e eu mandei rezar uma missa em nome das alma. Tudo no sigilo. O açougueiro tava trabalhando no dia, mas agora ele não trabalha e nem come a muié de ninguém. Acho até que ele se mandou daqui. Ou morreu. Sei lá.

Mês passado começou a morrer gente pra todo lado aqui na cidade. Diz que é doença nova, que nem gripe. Essa peste atrapalhou meus trampo. Com os urubu voando na cabeça da gente, todo mundo tem medo do Juízo Final. Ninguém quer abrir a carteira, todo mundo tem esperança que aquele desafeto vai morrer dessa tal gripe dos morcego.

Agora eu nem mato mais ninguém. Falar a verdade, eu também nem saio na rua. Não vejo gente, não como direito, não consigo nem ter esperança de ver meus dois neguinho crescendo.

É como eu falei desde o começo. A esperança nunca é uma coisa boa.

Num pode ser.

Eumenide – Pintura digital de Anderson Santos – 2017

 

III

Lázaro sempre ouviu a mãe dizer que “o povo gostava de se enganar”. Na política, num truque de mágica ou na reza, nada parecia agradar mais o ser humano que uma boa mentira.

Infelizmente, não era assim com Lázaro, e quando sua mãe adoeceu de câncer, ele não tentou mentir. Em vez disso, retirou os sapatos, cruzou a porta do quarto e disparou:

– O doutor deu seis meses. Com o tratamento, pode chegar a um ano.

Mas Dona Mirtes deixou o mundo dos vivos na primeira sessão de quimioterapia. O rim parou de funcionar; em seguida o coração e, aparentemente, todo o resto do corpo. Coube ao filho adolescente cuidar do enterro e de todo o resto.

Lázaro cresceu sem saber direito para onde sua bússola apontava. Fez de tudo um pouco. Trabalhou na lavoura, foi office boy, fotógrafo e passou cinco anos fatiando carne em um açougue, de onde só saiu porque arrancou um dos dedos, o dedo da culpa, o indicador direito. Depois de costurado, tentando aliviar a raiva por aquela perda, decidiu abrir a cabeça dos bichos em um matadouro. Perdeu o emprego no segundo ano, quando declarou a um jornalista que os bichos sofriam como gente, e que aquele papo de não haver sofrimento no abate era uma baita de uma lorota.

Novamente desempregado, decidiu resgatar um antigo hábito, que, de fato, nunca chegou a ser abandonado.

Lázaro nunca gostou da mentira, e talvez por isso se saísse tão bem com uma máquina fotográfica. Tinha fotos da infância, da adolescência, e fotografou inclusive sua primeira experiência sexual (um boquete com uma travesti chamada Natasha Leila). Também fotografou o cadáver da mãe, o dedo perdido no açougue e o sangue que jorrou dele. Nos anos de Matadouro, fotografava a cabeça aberta dos bichos, o sangue cheio de cérebro, os olhos que às vezes saltavam fora quando a pistola ou a marreta acertavam a cabeça no lugar errado. Era feio, diziam, mas ele não via feiura, tanto que decidiu ganhar a vida com seu hobby.

O primeiro a comprar uma montagem foi o prefeito de Santa Rosa das Dores, um homem chamado Pilão dos Reis e Santos. O Prefeito Pilão tinha fama de tarado do pavio curto, mas foi o responsável por levar o nome de Lázaro até as grandes capitais.

Os primeiros anos foram os melhores, e Lázaro podia escolher como acordava, com quem, ou se preferia perder suas noites nos puteiros mal frequentados de Santa Rosa. Dinheiro para os bons prostíbulos ele tinha, mas gostava mesmo era do chão sujo, do suor nos corpos, do cheiro de borracha que ficava nas meninas que rapidamente alternavam de parceiros. Entre um e outro gozo, uma fotografia. Preferia as gordas e as esqueléticas; o meio-termo não lhe servia pra nada.

Nas mais cheias, era a pele sobrando o que fascinava. Gostava de deslizar sobre elas, das mamas enormes, de se perder na opulência das vaginas. Já as secas tinham as costelas salientes e, quando posicionadas do jeito certo, com a luz certa, era como penetrar um esqueleto vivo. Elas riam, e Lázaro beijava seus dentes e sentia que copulava com a própria Morte.

Os anos ruins chegaram com a nova doença, a nova praga, algo gerado na escuridão das matas e dos morcegos. Com tanta morte, ninguém mais se interessava pela estranheza terceirizada de suas fotos, e coube ao artista descobrir novas formas de ganhar a vida. Talvez as fotos não encerrassem toda a verdade.

A primeira tela pintada com sangue foi quase acidental. Era o último recibo da galeria que o empresariava, e, depois daquele pagamento, Lázaro sabia que deveria compor algo surpreendente. Cheio de raiva, ele rasgou o papel na força do ódio, e a borda do sulfite acabou correndo e abrindo um pequeno corte em seu dedo, justamente na cicatriz consolidada do coto do indicador. Lázaro apertou como pôde, mas alguns pingos se espalharam pela fórmica de marfim da mesa da cozinha. O tom esmaecido e vermelho era até bonito; tinha a cor do final do dia. Ele soube na mesma hora o que deveria fazer.

A produção de Lázaro foi tão urgente, que ele precisou de transfusões de sangue para repor toda a “tinta” utilizada em suas obras. Mas aos olhos refinados do artista (e de sua exigente clientela), a cor do sangue misturado não era a mesma, carecia de força.

Mas morrer pela arte ainda parecia exagero.

Talvez uma dieta pudesse resolver. O que era bom para ter mais sangue? Adotou uma dieta de ferro e proteínas, além de medicamentos que aumentam a produção de hemoglobina. Parou de se movimentar muito, tentou engordar; afinal de contas, o sangue também é água.

Pelos próximos meses, o mundo todo ficou trancado, e de repente todos precisavam de alguma distração. Muita gente transava, tinha gente que se embriagava, e um seleto grupo de pessoas precisava consumir a dor alheia, porque essa era a única maneira de esquecer suas próprias tragédias. Lázaro era o artista preferido dessa gente, pois era o único a fornecer o que eles demandavam.

Agora, passava muito tempo em uma cadeira reclinável. Pesava mais de cem quilos e pintava dia e noite, enquanto seu sangue era drenado e coletado em uma tábua de aquarela refrigerada. Um pouco de anticoagulante na mistura, mas bem pouco, porque sangue seco não serve como tinta. À frente, monitores de alta resolução. Os quadros pintados em tempo real passavam a valer cada vez mais, conforme a cotação da vida baixava, não apenas naquele corpo.

Parecia um exagero morrer pela arte. Mas morrer pela verdade era diferente.

A verdade era um novo mundo feito de dor.

Perros – Desenho de Anderson Santos – Grafite sobre papel 21 x 30cm, 2006

 

“Carvão Cor de Sangue” é um tríptico de contos escrito por Cesar Bravo, um dos nomes mais celebrados do horror nacional contemporâneo, a partir das obras do artista plástico Anderson Santos.


Cesar Bravo nasceu em 1977, em Monte Alto, São Paulo. Sendo um devoto convicto do gênero horror, seus livros rapidamente atraíram atenção e reconhecimento dos leitores e da crítica especializada. Pela DarkSide Books, o autor já publicou Ultra Carnem, VHS: Verdadeiras Histórias de Sangue e DVD: Devoção Verdadeira a D. Bravo. Também traduziu The Darkman: O homem que Habita a Escuridão, poema ilustrado de Stephen King. Em 2020, organizou a Antologia Dark, em homenagem a King.


Anderson Santos, Salvador, 1973. É pintor figurativo. Transita entre as técnicas do óleo sobre tela e a pintura digital, é representado pela Galeria Paulo Darzé. Fez parte do coletivo responsável pela edição da revista Boardilla, é Diretor Artístico de Ripensarte e responsável pela curadoria e edição da revista online Magazzino. Concluiu em 2020 um Mestrado no Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFBA, na linha de Processos Criativos em Artes Visuais.

Pintura digital de Anderson Santos 

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.