I: ao dramaturgo, ao diretor e aos atores de “E a Vida Continua…”
Caros criadores,
Não gostaria de, assim, principiar esta carta, mas devo dizer, logo de início, que saí triste do Teatro ISBA, na noite de 9 de outubro de 2016.
Vejam bem, fui assistir ao espetáculo de coração aberto. Achava mesmo que a peça poderia me mostrar uma maneira mais positiva de enxergar a vida e seus obstáculos, dar-me um pouco de otimismo, subtrair-me a ansiedade. Tanto foi assim que nem dei importância ao cenário fajuto, à encenação ingênua, aos corpos automatizados. Entretanto, existem coisas que são demais, sobretudo no teatro! No teatro, é possível suportar a ausência de uma luz grandiosa, de efeitos especiais ou mesmo de interpretações extraordinárias, mas, por favor, criadores, não nos incite, a mim e a meus colegas de plateia, o ódio, a docilidade, a utilidade. Isso, eu não aceito! Isso é de entristecer! Sei que minhas palavras não passam de uma opinião pessoal, mas, afinal de contas, isto é uma carta – modo como também são chamados os textos psicografados que nos chegam. Vocês sabem a que me refiro.
Bem, desculpem algum descontrole, dirão que estou sendo obsidiada, mas vamos ao que interessa. Atualmente, reconheço-me como mulher e tenho trinta anos. Mesmo que não me reconhecesse como tal, gostaria, ainda assim, de poder enxergar como absurdo o que, mais à frente, relatarei, mas, persistindo a impossibilidade de entendimento, quem dera mesmo, apenas, ser um peixe, ó humanos… Vamos à obra, só para citar algumas das barbaridades: o personagem Caio passou a ter uma nova namorada quando descobriu que sua esposa, Evelina, estava enferma. Caio trata essa nova namorada muito mal: empurrões, pontapés e palavrões. Primeiro, vocês fizeram disso uma piada: um homem violento é engraçado? Poxa, fico sem palavras. Segundo, a tal namorada, apesar desse tratamento, vive pedindo a Caio que case com ela. Sei que ainda é uma prática comum. Apesar disso, acredito que se a violência de Caio fosse tratada, pelo espetáculo, de modo sério, nós, público, enxergando o absurdo a que nos submetemos cotidianamente, seríamos convocados à insubmissão. Insubmissão ao que nos fere, entende? Como um convite à evolução mesmo – assunto que vocês abordam. E não é isso que acontece: o que nos chega é uma mulher maltratada e submissa, como tantas, e é isso mesmo, afinal, a vida continua… Lamentável. E ainda tem mais: Ernesto, já falecido e tido como um espírito razoavelmente iluminado, pai dessa mulher, entediado no além, está arquitetando um jeito de fazer com que todos aqueles que cometeram crimes na terra paguem por isso lá mesmo, ops, aqui mesmo – é que, com tudo que o espetáculo me ensinou, não vi diferença entre o aqui e o além. Caio é também um assassino: matou um pretendente de Evelina porque não aceitava perdê-la. Diante desse cenário, qual a grande ideia de Ernesto para sua filha? Sua grande ideia é favorecer-se de sua posição de alma penada e sussurrar ao ouvido de Caio que aceite casar com sua filha, pois o homem a quem ele matou será seu filho no futuro e, assim, ele poderá amar aquele que, um dia, odiou etc. Essa história, que vocês vendem, de que a criança amoleceria o coração de Caio não me convence. Quantas crianças maltratadas, abandonadas? Tá errado, isso. E outra coisa: e a mulher? Que tem ela a ver com o destino desse homem violento, assassino? Isso, vocês não disseram. O pai não pensou nela? Não tinha um ouvido de homem mais amável para soprar? Ou por que não soprou à própria filha? “Meu amor, saia dessa, esse problema não é seu!” Ou será que Caio melhoraria depois do casamento? Sugiro olharmos as estatísticas! Injusto, viu? Quem tem um pai desses não precisa de inimigo. Ou melhor: quem tem um anjo desses não precisa de obsessor.
Outra coisa que devo falar é sobre o modo como a peça termina. Uma amiga, uns anos atrás, alertou-me pra uma coisa muito interessante: ela pontuou como as histórias de amor, mais divulgadas, são ludibriadoras. Vejam bem, os casais, normalmente, passam por um monte de impedimentos até que, finalmente, consigam ficar juntos e, então, o enredo termina com um “felizes para sempre”. Por favor, sejamos honestos! Os espíritos podem ter esquecido, mas nós, que vivemos a vida real, sabemos que as maiores dificuldades e provações, no quesito amor, encontram-se na convivência. Essa parte, as historinhas não mostram. Daí, vêm vocês e fazem a mesma coisa: apontam o que cada personagem realizou em vida e o que deve ser consertado para que evolua espiritualmente; apresentam os planos dos espíritos alcoviteiros para cada um dos vivos e para os que devem reencarnar; vem todo mundo pra terra se encontrar, a fim de passar pelos entraves e evoluir, e então, quando a vida vai continuar e tudo vai se desenrolar, o que acontece? A peça termina. Tenham santa paciência! Isso é nos tapear! Desculpem-me a franqueza, mas, na peça, a vida não continua.
Então, como educadora, fiquei pensando se não seria interessante organizar, aí no além, tipo umas oficinas, debates, encontros, experimentos com outros espíritos de luz interessados numa humanidade melhor.
II: a André Luiz.
Querido espírito de luz,
o senhor, autor do texto psicografado, levado aos palcos e às telas, merece, com certeza, todo nosso respeito, espíritos em erro. E é com essa deferência que vos escrevo. Na verdade, com toda ignorância que, a mim, cabe, gostaria, sem me intrometer, de fazer-lhe um pedido. Vou tentar ser breve.
Concordo que o Todo Poderoso concebeu uma bizarria a partir do céu e da terra. Entendo vossa preocupação, e de vossos semelhantes, nas reparações mundanas. Interpretei, a partir de “E a vida continua…” e de algumas leituras kardecistas, que os espíritos de luz devem auxiliar os demais espíritos no caminho da evolução espiritual. Não me leve a mal, mas sei que vocês têm tempo de sobra por aí – e não vejo problema algum nisso; o que digo não é nem uma crítica nem um deboche, pelo amor de Deus. Então, como sabe, aqui na Terra, as coisas continuam difíceis para quem escolhe exercer o livre-arbítrio. E o livre-arbítrio, o senhor bem compreende, é um direito nosso. Tenho absoluta convicção de que, do auge de sua instrução, o senhor deseja um mundo mais justo, menos sangrento, mais alegre. Além disso, o senhor também deve estar por dentro de tudo que vem acontecendo aqui embaixo. As coisas mudaram, afinal, a vida continua… Então, como educadora, fiquei pensando se não seria interessante organizar, aí no além, tipo umas oficinas, debates, encontros, experimentos com outros espíritos de luz interessados numa humanidade melhor. Uma atualização, digamos. Tenho até uns nomes interessantes de desencarnados que fizeram muito pelo mundo, enquanto vivos, e que podem ajudar. Dou apenas um exemplo para ilustrar: Paulo Freire, aquele da “Pedagogia da autonomia”, para citar um título. O cara foi professor, alfabetizador, afirmava a conscientização, capacitação e libertação de todos os oprimidos, trabalhou na zona urbana, na zona rural, em países considerados de terceiro mundo (principalmente na África), revisou e propôs currículos para a Educação, lutou pelos direitos humanos, desenvolveu trabalhos para a educação de crianças, mas também de adultos e, principalmente, estampava indignação com qualquer tipo de injustiça. Um verdadeiro cristão, eu diria. Imagina só, André, pessoas, emancipadas, exercendo o livre-arbítrio! Porque livre-arbítrio, em meio ao obscurantismo, não tem chance de dar certo. Concorda?
Enfim, Freire foi apenas um exemplo e outros nomes ele mesmo poderá sugerir. Entretanto, ratifico que um bate-papo com essa turma melhorará sensivelmente a qualidade dos conselhos que os espíritos de luz venham a nos dar.
Com sinceridade, obrigada pela atenção.
III: ao grande criador.
Não tenho como defendê-lo.