Treta | Cênicas


BOLHA

junho de 2016

Edição: 5


A partir do espetáculo Na Coxia, do Coletivo Quatro

Peço perdão aos evoluídos criadores, mas penso que todo artista é um tanto quanto perturbado pelos porquês. Principalmente aqueles que sentiram as consternações em sua passagem por alguma academia artística. Os porquês, sejam eles internos ou externos – admitamos, insofismáveis vide suas repercussões – sempre atormentarão os artistas. Vão assombrar eternamente e em muitas vezes deprime de maneira progressiva, capaz de deixar a pó o pobre corpo atribulado. Mas há de se encontrar um expecto patronum para expulsar o cume da demência e fazer das indagações cúmplices do ato de criação. Logo, deixo claro que falo dos porquês que, tal qual qualquer outro elemento, surgem para compor algum processo criativo, tendo variadas e complexas origens, embora eu acredite que porquê bom é porquê estético.

Invocando o avatāra do grande mestre russo, Stanislavski – não aquela, empalhada, que perambula pela encruzilhada da Araújo Pinho –, estar preso a inspiração, capacitando-se, somente, dela mesma, é o ato rudimentar de produção. Seria como encarar o ato primeiro como estrutura e processo, mantendo-se alheio as vozes “indagantes” – mesmo aqueles que não as ouvem, serão assombrados nos amanhãs. Tais vozes nascentes em dois círculos, o da obra e o círculo que a circunda.  Deixar de ouvir todos os porquês é se manter num “padrão de qualidade” ou assumir, cônscio ou não, o alheamento, e ambas as alternativas caem, no geral, em situações vexativas.

Deixar de ouvir um porquê ou outro = momento em que tais elementos se tornam cumplices daquele que, possuindo este entendimento radical, se coloca na situação de “se desacostumar do fado fixo e ser arbitrário”[1].

Sem embargo, assumo o papel daqueles porquês externos, que não necessariamente se relacionam com as vozes não ouvidas pelos artistas de Na Coxia do Coletivo Quatro. Se originam a partir de algumas análises, talvez tácitas e entendidas por osmose do campo de produção artística em teatro e pela igual condição sócio-política que abarca a condição de artista.  Elenco estes porquês também no intuito de amenizar a minha total estranheza e entender em que tempo Na Coxiase situa.

Fundamentalmente uma pilhéria. Eu fui completamente pego de surpresa e me constrangi com a minha dislexia. Tinha visto o cartaz e tinha lido “o sucesso de Fábio Jr.”. Ora, tinha pensado que era uma nova montagem de uma peça, de algum autor, talvez do eixo Rio-São Paulo, e que o Coletivo ou produção colocou a frase enquanto uma possível estratégia de divulgação. Ou seja, completando a minha “atoleimação”, para mim “o Fábio Jr” era um dramaturgo, talvez um desses que tivesse ganhado um Shell da vida. Não conhecia a primeira música, mas quando ouvi Senta Aqui – música que tocava na vitrola de casa quando criança – o cartaz me apareceu novamente, junto com um “C”, um “M”, completando o “Com”, e o “S” formando o “Sucessos”, e assim fez-se a luz: “Com Sucessos de Fábio Jr.” De minha parte, surpresa e susto totais. Por que cargas d’água Fábio Jr?

Que tipo de fenômeno assolou o Coletivo, levando a se inspirarem em “sucessos” de uma espécie de Dinho Ouro Preto sessentão para dar o “tom” de Na Coxia? Fábio Jr, quando sustenta o seu alheamento político e adota a boa linguagem prosélita e infantil, entende que é no momento que veste a bandeira verde-amarela é que se faz estética[2]. Enunciação performativa que faria de qualquer Austin, e qualquer bom fascista brazuca, orgulhoso.

Por que pareceu potente para o Coletivo Quatro trazer à tona “os sucessos de Fábio Jr” num momento estético-político tão conturbado?

Uso esse binômio, estético-político, não só por considerar que o problema político brasileiro é uma questão estética, mas também pela problemática perpassar as reclamações de um tempo, principalmente de um tempo soteropolitano. De um novo posicionamento ético, político e, principalmente, estético. Se este tempo reclama pela via vermelha e pela via verde-amarela, não podemos omitir um terceiro caminho: o que impele os artistas, que é justamente o caminho estético. Estética talvez no seu auge filosófico e platônico, a junção “perfeita” entre a sensibilidade e a ética, eis um posicionamento estético-político. Logo, estética também em seu sentido tradicional, o de criação, onde nascem os bons porquês.

Para completar essa questão, o enredo da peça conta a história de um grupo de artistas de teatro que não se encontra há mais ou menos dez anos, mas especificamente desde o assassinato do diretor do grupo – um enredo à Som e Fúria (série da Rede Globo). Um dos atores-personagens consegue dinheiro via edital e convoca os outros integrantes para um retorno ao palco do “galpão” onde o grupo trabalhava. A partir desse mote, Na Coxia lida com estereótipos como o sistema hierárquico, diretores e atores, atrizes histéricas, atores que não gostam de trabalhar e a um tipo de processo que mais parece daqueles grupos de trabalhos escolares do ensino médio, aquele que somente um acaba fazendo tudo, no caso do enredo, o pobre e soturno diretor-sofredor.

A sensação de que Na Coxia se desajusta com o fluxo do hoje, tem sua origem no possível alheamento dos artistas envolvidos.

Vamos levar em consideração o público de Na Coxia. Será que o Coletivo não fortalece aquela visão que o bom fascista brazuca tem no que se refere aos artistas e, sobretudo, no que se refere aos artistas de teatro? Ou até mesmo não reforça aquele “recado” do deputado Marcos Feliciano para os artistas que se manifestaram contra o fim do MinC?  Pela dramaturgia – que segue a grande tradição do teatro baiano de se falar, de desgastar o tema teatro na própria linguagem – assinada por Fernanda Paquelet, me parece que para aqueles artistas política é somente políticas culturais via editais públicos para arte.

Li em um dos releases pela internet, que o Coletivo Quatro, se intitula como um coletivo de pesquisas, com enfoco no teatro musical. Não sei exatamente qual seria o entendimento do Coletivo sobre a pesquisa continuada em arte, muito menos se acompanharam a movimentação de grupos como o Viansatã, Alvenaria, Teatro Base, Vilavox, Duo, dentre outros grupos e coletivos culturais entre os anos de 2010-2012 quanto a busca do entendimento, pelo Fundo de Cultura, do que seria um grupo de pesquisa continuada em arte. Também não sei quais são as novas luzes que trazem, já que o coletivo é de investigação, sobre o objeto, teatro musical. Mas, percebam, parecem saber que para se manter em investigação constante o espaço físico é imprescindível.

O Coletivo Quatro reside hoje em um dos galpões do Forte do Barbalho, o mesmo galpão ganha o nome Galpão Wilson Mello e se torna mais um espaço artístico na cidade. Bonita homenagem ao ator, morto em 2010. A questão é que o espaço que era um galpão não é mais. Fiquei assustado ao entrar e ver um pequeno teatro italiano, para 80 pessoas, um pouco maior do que o Teatro Gamboa Nova. Um teatro italiano mesmo. Palco de madeira, boca de cena, varas de luz, espelho ao fundo e tapadeiras, tudo muito fixo com uma grande arquibancada para os espectadores. Numa cidade que explode em experimentalismo (mesmo não ganhado a devida divulgação), principalmente espacial, onde artistas questionam o edifício teatral e suas limitações físicas e burocráticas – e por causa disso investindo em ações urbanas, diga-se de passagem, potentíssimas – o Coletivo Quatro cria mais um teatro italiano, que poderia muito bem ser chamado, por que não, de Teatro Wilson Mello.

Todo mundo sabe desse déficit em Salvador, poucos espaços, em sua maioria esmagadora italianos, com pautas caríssimas, tendo somente o Teatro Gregório de Matos, o Teatro Vila Velha e, com algum esforço, o Espaço Cultural da Barroquinha, como espaços dinâmicos para outras configurações espaciais para as artes cênico-performativas.

A sensação de que Na Coxia se desajusta com o fluxo do hoje, tem sua origem no possível alheamento dos artistas envolvidos. É necessário entendermos, principalmente neste lugar de artistas, o quanto isso pode ser ruinoso. O tempo pede que estejamos à espreita.

Enfim, eis meus porquês.

O resto é silêncio…

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[1] Fragmento de Sargaços, poema de Waly Salomão.

[2] Fábio Jr no Brazilian Day 2015.

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