Ensaio | Audiovisual


Em Sonho de uma noite de verão, há uma passagem na qual os personagens Hipólita e Teseu assistem a uma peça bastante tosca, encenada por outros personagens. Ao fim da apresentação, ela se revolta e afirma: “Essa é a peça mais tola que já vi”. A resposta de Teseu a esse veredito acabou se tornando um dos trechos mais citados da obra de Shakespeare. Nessa fala, o personagem explica que mesmo os melhores atores são apenas sombras, completamente dependentes da imaginação do público. Que o grande poder do espetáculo estaria com a plateia, e não com os atores. Por isso, com a boa vontade da plateia, com a força de sua imaginação, até a pior das encenações não seria tão ruim: 

HIPÓLITA: Essa é a peça mais tola que já vi. 

TESEU: Os melhores são apenas sombras e, os piores não serão piores, se a imaginação os auxiliar. 

HIPÓLITA: Aí será a sua imaginação e não a deles.

O elogio à imaginação do público faz bastante sentido no contexto de performance em que Shakespeare trabalhava. Pense em um palco vazio, com cenários escassos e modestos, com iluminação natural. Pense em uma Inglaterra elizabetana que proibia a presença de mulheres nos palcos, obrigando os diretores a escalarem homens para todos os papéis femininos. 

Os atores dariam o melhor de si. O teatrólogo certamente deu o melhor de si e de toda a literatura ocidental. Mas cabia ao público fazer a sua parte. Cabia aos membros da plateia completar lacunas cênicas com sua própria imaginação, perdoar desvios entre fatos conhecidos e história narrada, aceitar que quando o texto dizia que é noite, então seria noite, mesmo que essas peças fossem encenadas em plena luz do dia. 

Shakespeare entendia que o poder da recepção era capaz de transformar qualquer espetáculo chinfrim, mas talvez até ele ficasse impressionado com a boa vontade do brasileiro com o Big Brother. Diante do sucesso acachapante da vigésima primeira edição do programa, muito se tem falado sobre a suposta esperteza da produção, que teria conseguido atualizar uma fórmula mofada para permanecer relevante. 

No entanto, após uma semana de esforços hercúleos para assistir ao reality show, me parece bem mais razoável pensar que o verdadeiro talento esteja no público. Acompanhando o Twitter sem assistir ao Big Brother, a pessoa tem a ilusão de que aquele seria um programa decente, às vezes até engraçado. Mas basta se aventurar no programa em si para o sujeito perceber que foi enganado, que o Twitter vem agindo como o trailer bem feito de um filme especialmente ruim: recortando e juntando todos os cacos aproveitáveis e ignorando horas inteiras do mais profundo tédio. 

Se até um relógio quebrado acerta duas vezes por dia, seria impossível que 20 pessoas trancadas em uma casa por três meses não rendessem meia dúzia de memes e fancams interessantes. Antes, o trabalho de escavação arqueológica para dar alguma graça e coerência a esse material era desempenhado pela edição do programa. Agora, é feito em larga escala, e com muito mais talento, pelo público. 

O brasileiro estava desesperado para gostar de alguma coisa. Era morte demais, pobreza demais, meses demais vendo o país naufragar, sem poder fazer nada além de bater uma panela. A ideia de ver um grupo de pessoas trancadas em uma casa, sendo obrigadas a conviver umas com as outras, pode ter soado como uma solução. 

O brasileiro estava desesperado por um senso de unidade. A direção do Big Brother fez o que pode para fomentar a divisão, buscando replicar no elenco as cisões mais estridentes da sociedade brasileira atual, como aquela entre feministas e agroboys. No entanto, a ampla margem de concordância nos paredões parece apontar para uma vontade de união, nem que seja na brutalidade da exclusão, da eleição permanente de bodes expiatórios. 

O brasileiro estava desesperado por uma simultaneidade que não estivesse vinculada à desgraça. Em seu livro Comunidades imaginadas, o historiador Benedict Anderson argumenta que o sentimento de pertencimento a um grupo nacional estaria amplamente baseado na ideia de um tempo homogêneo e de acontecimentos compartilhados. Essa ideia de tempo comum teria sido fornecida pelos jornais, que garantiram a rápida veiculação de notícias dentro de um mesmo território.

 Já a noção de acontecimentos compartilhados seria uma abstração que faria com que alegrias e tristezas como a derrota do 7×1, a indicação de Fernanda Montenegro ao Oscar ou a queda do avião da Chapecoense fossem interpretadas como coisas que aconteceram ao conjunto dos brasileiros, e que não aconteceram aos argentinos, por exemplo. Seriam vitórias nossas, derrotas nossas, traumas e bênçãos coletivas que receberiam lutos e festas coletivas. 

A tese central de Anderson é a de que nacionalidades são sentimentos forjados: são uma edição do passado, a fim de torná-lo uma experiência de grupo; uma organização do presente, a fim de torná-lo simultâneo; uma projeção do futuro, a fim de torná-lo unificado. Uma nação, portanto, seria um grupo de pessoas que acredita que teve um mesmo passado, que compartilha de um mesmo presente e que, consequentemente, terá um mesmo futuro. 

Neste momento, o Brasil não parece cumprir a nenhum desses requisitos. É uma ex-nação dividida em relação a interpretações básicas sobre seu próprio passado: que não concorda sobre qual seria o sentido da ditadura militar ou do impeachment de sua última presidente eleita, por exemplo. É uma ex-nação que vem tendo dificuldade em compartilhar experiências que normalmente gerariam um grande senso de coesão, como a morte de milhares de pessoas anônimas e famosas por um mesmo motivo. 

Sem um consenso mínimo sobre o que aconteceu e o que está acontecendo, perdas que deveriam ser comunitárias tornam-se meramente familiares. A profunda crise em que nos metemos é identificada e experienciada como mimimi por uns, pandemia por outros, período sabático por um terceiro grupo, como um mero ato do destino por um quarto. 

Talvez por isso boa parte das discussões que acompanhei a respeito do Big Brother tivessem em sua base a vontade de reestabelecer uma gramática comum: um conjunto mínimo de parâmetros para enxergar e classificar a realidade. Esse esforço canalizado a um programa de TV pode indicar uma vontade mais profunda de lamber as feridas, de refundar um terreno básico a ser compartilhado. 

Que isso tenha começado a ocorrer em um jogo super editado e manipulado é irônico, mas menos relevante do que parece. Isso porque o que merece alguma análise não é o programa em si – tão ruim quanto suas edições anteriores –, mas sua recepção em um momento agudo de esgarçamento social. 

O próprio Big Brother pode ser compreendido como um repertório coletivo nacional: um passado comum para o qual queremos retornar, nem que seja de brincadeira. O programa começou a ser transmitido no Brasil em janeiro de 2002, mesmo ano da vitória de Lula e da última Copa do Mundo em que não passamos vergonha.

Era uma época em que ideias de totalidade, como as de que “o Brasil” estaria vendo “o Brasil” não deixariam determinada injustiça passar etc., podiam soar meio doidas, mas não eram completamente descabidas, e surgiam a todo momento na fala dos participantes. Nesse tempo lendário, havia um Brasil: um sentimento de unidade capaz de sobrepujar divisões. Quando esses chavões são retomados em 2021, o cheiro de naftalina é latente. 

Após anos de sucesso – bem mais do que a média dos outros países onde a franquia foi replicada –, o BBB passou a ver sua audiência minguar. A edição 19 teve a pior performance comercial da história e parecia decretar um esgotamento natural de sua fórmula. Na edição seguinte, no entanto, a direção resolveu misturar figuras anônimas a subcelebridades como influenciadores de internet e ex-panicats. Essa mudança de elenco é vista como o grande pulo do gato capaz de ressuscitar um modelo que morria de velhice. Mais verossímil, no entanto, é pensar que parte decisiva dessa escalada da audiência esteja relacionada ao início da pandemia e à interrupção das competições esportivas bem no meio da exibição do BBB.

A participação ativa de jogadores como Neymar – que passou a comentar o programa em suas redes sociais – aliou-se ao fato de o reality show começar a gerar reflexões sobre temas feministas que estavam em voga no país. Na época, as discussões mais sofisticadas sobre o assunto partiram basicamente do público, e não dos participantes, já que as mulheres do programa não eram tão escoladas em discussões feministas e raramente debatiam o tema explicitamente. Preso em casa sem futebol nem novela, o brasileiro resolveu canalizar suas disputas para a única coisa que estava sendo transmitida ao vivo na TV, fora o noticiário. 

De certo modo, tanto o BBB quanto o futebol na era do VAR parecem ser jogos de anulação: onde o objetivo é fazer um escrutínio neurótico de imagens gravadas a fim de cancelar lances e punir jogadores. O resultado do combo pandemia foi uma edição extremamente polarizada, com paredões disputados e vitória final de uma médica negra formada pelo Prouni. 

Um ano depois, a direção do BBB tentou repetir o sucesso, ao escalar participantes com um perfil claramente direcionado para fomentar debates raciais, como militantes do movimento negro e playboys que não sabem fazer um arroz. O objetivo era reencenar o teatro da temporada anterior, substituindo o tema feminista pela pauta racial.

Do ponto de vista comercial, deu certo: ambas as edições tiveram filas de anunciantes disputando seus intervalos. Mas a diferença crucial entre o BBB 20 e o BBB 21 é que, enquanto o primeiro canalizava a ânsia de fragmentação do público, o segundo tem demonstrado uma vontade de unidade, com votações girando acima dos 98% por duas semanas seguidas. É um consenso que chega a ser inverossímil: difícil pensar em qualquer pergunta para a qual 98% de uma nação dividida daria a mesma resposta. É como se, incapaz de eleger heróis coletivos, o brasileiro focasse em ao menos eleger vilões. 

Por três semanas seguidas – três rodadas de paredão do programa –, essa unidade foi construída a partir da exclusão de pessoas negras de diferentes perfis e orientações políticas, todas elas com uma rejeição acachapante por parte do público. Embora individualmente nenhum dos três excluídos pareça ser flor que se cheire, o hábito de rifar a população negra para formar unidade é incrustado demais na nossa história, para não acender uma luz vermelha. 

Se é verdade que um programa ruim e de fórmula desgastada foi revitalizado pela boa vontade descomunal da audiência, agora resta a esse mesmo público garantir que o jogo da vez não dê no resultado de sempre.


Juliana Cunha é professora da Escola de Relações Internacionais da FGV e doutoranda em Teoria Literária na USP. 

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