Ensaio | Literatura


Desenho de Manu Maltez

As sete mil agonias do gato Tô

abril de 2021

Edição: 22


Relato de uma experiência de exposição psicofísica à música infantil contemporânea

 

06 de março de 2021

Agora estou na frente do computador tentando organizar tudo o que atravessou a minha cabeça há poucos minutos. Não sei se vou conseguir – dada a complexidade da experiência – organizar qualquer coisa que soe minimamente verossímil ou clara, frente à insensatez que às vezes pode se tornar a vida humana neste planeta que costumamos chamar de Mamãezinha-Terra.

Vou me esforçar, porém.

Estava lendo um livro na varanda da casa de praia da minha mãe. Um calor desgraçado; umas 10h da manhã e o sol comendo as bordas da varanda e dos nossos cérebros.

Ao meu lado, entregue ao chão, minha mãe tentava dar conta dos meus dois sobrinhos gêmeos que dias atrás pareciam apenas uns bichinhos invertebrados e hoje, apesar de já conseguirem rastejar e morder a cabeça-oca de Cebolinha ou os colhões de Woody-desesperado (o desespero está naqueles olhos, eu sei), ainda não conseguem ficar sentados nem um minutinho sequer: a cada momento, eles caem prum lado ou pro outro feito joões-bobos, fazendo com que a vovó tenha de pegá-los e colocá-los de volta no lugar, como se fossem pesos de papel hipertrofiados, sem alma ou vestígio de Sopro Vital.

Meus dois sobrinhos já começam a demonstrar certos traços de inteligência para além dos rios de baba animal que insistem em arrojar desde o fundo das suas bocas insensatas, mas até ascenderem à Fala, ou seja, até poderem dizer-se humanos (ergo sum), eles ainda têm um longo caminho pela frente, um caminho árduo e sofrido como foi e ainda é o de todos nós.

Os especialistas dizem que os bebês nessa idade são todos assim mesmo: um híbrido de animal e humano, cujo amor dos pais (se houver) será o único traço civilizatório a manter o conjunto firme e soando minimamente bem (leia-se “família”).

Desenho de Manu Maltez

Acontece que quando eu tirei os meus olhos do livro, pousando-os ao nível do chão, a vovó já estava colocando para tocar uma daquelas estranhíssimas playlists infantis acerca das quais ninguém possui uma única opinião concreta, pois, se por um lado os pais estão ou têm de estar convencidos (pelo puro desespero) de que elas funcionam, sem se perguntar o porquê disso, por outro, raramente as próprias crianças (i.e. o “público-alvo” ou as vítimas) poderão externar o quanto aquilo lhes dói ou maravilha o espírito (se houver).

Confrontados com tal experiência artística primária (que pode ser traumática), um dos baborum animale me pareceu tornar-se ainda mais introvertido e triste, o que me fez pensar que talvez um dia revele-se ali um filósofo enquanto o outro sustentava até o limite aquele seu olhar agudo e investigador para o mundo exterior, quase-dançandinho-pero-sin-bailar (manteve a dignidade até o fim); este poderá, talvez, virar um conquistador de territórios empresariais, um colonizador de almas e corpos, um yuppie com sangue-nos-olhos e garras-de-rapina ou, sei lá, um criador de start-ups de produção em massa de hambúrgueres gourmet.

O fato é que não detectei, durante a experiência de exposição a tal produto-de-arte-infantil, qualquer traço-de-artista manifestando-se em nenhum dos dois espécimes. Munido dessa conclusão, o meu irmão (i.e., o pai das criaturas) poderá dormir em paz, enquanto eu poderei considerar esse trabalho útil, ao menos em parte.

Porém, tendo a vida me levado, por ventura ou desventura, a assumir-me artista (ergo ars), não pude deixar de me espantar profundamente pelo que aconteceu logo a seguir… Não com a alma deles (se houver), mas com a minha própria…

E já não sei se vou poder continuar…Sinto-me exausto pelo que acabo de vivenciar. Amanhã volto ao computador revigorado, espero. Fora que passam das 12h e o sol tá-de-lascar. Não há cérebro que funcione bem nessas condições.

 

07 de março de 2021

A dita canção infantil (aceitemos esta alcunha) que a mulher da gravação entoava com sua voz de mãe-jovial-progré-pós-mô era a mítica Atireiopaunogato, cuja fantasia fundamental, todos sabemos, encontra-se exposta claramente na própria letra:

Atirei o pau no ga-to-to

Mas o ga-to-to

Não mor-reu-reu-reu

Dona chi-ca-ca

Admirou-se-se

Com o berrô

Com o berrô

Com o berrô

Que o ga-to-deu

Mi-au!

Nada mais autoevidente. Trata-se de uma narração ultraviolenta na qual o sociopata (ainda por cima, anônimo), não contente com a passagem-ao-ato psicótica direcionada a um animal indefeso, passa a extrair um gozo mais-que-perverso da não-finalização do mesmo ato (que seria o assassinato levado-a-termo), pois o gato não morre; isso fica claro quando levamos em conta a expressão corporal de uma “Dona Chica” genérica (testemunha potencial de todo o acontecimento traumático): a distinta senhora permanece ali, talvez gozando também com a tragédia (embora passivamente), enquanto o gato, o pobre gato, o gato mais triste da história deste país, suporta como pode a sua própria e solitária agonia, até que Deus venha levá-lo na sua nuvem de esquecimento. Mas a canção original termina sem nos presentear sequer com tal desfecho fúnebre (nem ao gato, coitado), resumindo-se a emitir um mi-au, como se o felino desgraçado fosse o filho de deus pregado na cruz, tal mi-au funcionando estruturalmente como um “Ó pai, por que me abandonaste”.

Isso, é claro, as crianças nunca saberão. Nunca saberão que quando gritam minhaaauu, sorridentes, na verdade estão reproduzindo nelas mesmas a agonia fundamental da experiência de todos os seres vivos e não só do protagonista felino ou do filho de Deus.  

A fantasia fundamental, aqui, é a de um corpo agonizante que, por sua vez, é apenas um dos vértices de um triângulo formado ainda pelo agente-do-crime e sua testemunha, os três ligados numa relação ética de cumplicidade. Assim, o famoso “mi-au”, se pudesse ser expresso desde o seu aspecto real e não desde a sua superfície fantasística, soaria menos como um refrão infantil do que como um ruído insuportável, algo como cem garfos de metal arranhando cem pratos de metal ao mesmo tempo.

 Se isso nunca foi um problema é porque, na idade em que geralmente são expostas a tal experiência, as crianças não entendem sequer uma palavra dita ali. E, se expostas depois da idade em que já ascenderam à Fala (i.e. tornaram-se pessoas), há apenas duas possibilidades:

  • elas se revelarão, de partida, como sujeitos passivos (e que, portanto, permanecerão potencialmente assim até a morte);
  • já revelarão a força, a vontade e a coordenação suficientes e necessárias para arremessar o player “na-casa-do-caralho”, à revelia dos adultos circundantes (e., torturadores em potencial).

Concluímos, assim, que, frente à experiência com as (ditas) músicas infantis, poderíamos diagnosticar na primeira criança (nº1) um germe-de-adulto imbecil, leviano, (dito) normal ou até alegre, e, na segunda (nº2), os contornos esboçados de um adulto rebelde, intelectualmente promissor ou, digamos, infeliz-até-a-morte (i.e., suicida in potentia). Fora permitir tais avaliações de cunho moral-existencial, não posso afirmar quais outros benefícios tais produtos-para-a-infância agregam à humanidade. E deixemos de digressões: sabemos que tais músicas ditas-infantis não são feitas, no fim das contas, para os infantes, e sim para os seus pais.

Mas não vou lançar mão, nesta argumentação, da carta viciada que é a Galinha Pintadinha ou Pepa Pig, hipnóticos reconhecidamente eficazes que permitem aos pais recuperar um pouco do Tempo Perdido para si mesmos enquanto o cérebro da criança derrete paulatinamente na frente da TV ou do celular. (As consequências da exposição a “derretedores” dessa espécie ainda levarão anos para serem mensuradas em todo o seu alcance psíquico, embora já haja gerações revelando certos efeitos funestos, vide alguns youtubers, seus followers and so on).

Para destilar a prova certeira de tal argumentação, basta que eu recorra ao horror que me abateu nem bem comecei a escutar a segunda estrofe da música.

Creiam, a voz da mulher no celular passou a cantar o seguinte:

Não atire o pau no ga-to-to

Porque is-so-so

Não se faz faz faz

O gati-nho-nho

É nosso ami-go-go

Não devemos maltratar

Os animais

Mi-au!

A cada verso, minha alma dava pulos de dor e descrença; eu não queria acreditar no que ouvia. Por que eu reagia assim?

Naquele momento lembrei-me, por exemplo, dos mensageiros trágicos do antigo teatro grego, que possuem uma função dramática dupla e ambígua: por meio da sua narrativa detalhada e poética, permitem que as cenas mais cruéis aconteçam apenas na ob-cena (i.e., fora do palco, sem serem vistas), mas, ao mesmo tempo, presenteiam o público com a oportunidade de escutar (visualizando) aquela violência extrema, munidos de um alto prazer poético, como se fossem espectadores atuais sorrindo ao ver a Noiva matar um japonês atrás do outro enquanto a neve cai do lado de fora (Tarantino). Tal ambiguidade irônica é um dos pilares da efetividade artística da tragédia grega antiga, como defendem Aristóteles e posteriores. O que aconteceu comigo, portanto, a cada verso de Nãoatireopaunogato?

Senti que a cantora, por meio da negação do ato ob-sceno, na verdade afirmava colateralmente tudo aquilo que pretendia negar; ou seja, personificava à minha frente os sofrimentos do gato ao mesmo tempo em que tentava neutralizá-los. É como se, depois de ter seduzido inconscientemente a parte psicótica de minha imaginação com a primeira estrofe, fosse instigando essa vontade com a segunda (agora trazendo-a para a consciência), como se o seu canto progré-pós-mô me dissesse que o prazer de matar um gato fosse tão bom e tão abissal, que o melhor seria que eu me preservasse de tal desmesura.

Agora mesmo, vejo que um dos elementos (i.e., um dos sobrinhos) retirou com brutalidade a chupeta da boca do outro elemento. Segundo a narração da minha mãe e da sua nora, presentes no flagrante, “ele ainda fez uma cara de mau!”. Com isso não defendo que as crianças sejam más in essentia. Mas, com toda a certeza, a maldade é uma possibilidade humana presente desde o berço.

Se concordamos que os adultos têm o dever cívico de educá-las moralmente ao longo da vida, isto é, dar-lhes leis e trilhos para que possam, no decorrer do seu crescimento, inclusive negá-los e pô-los em perspectiva crítica, por outro lado, sempre urge questionar os meios pelos quais se constroem tais tábuas morais.

Acredito que a segunda estrofe de Atireiopaunogato, evidentemente uma corruptela assombrosa (Nãoatireopaunogato), não cumpre o seu próprio objetivo progressista, e isso por algumas razões muito claras:

  • As crianças que escutam essas músicas ainda não têm acesso à Fala, portanto não podem julgar a relação ético-dialética entre a primeira e a segunda estrofes.
  • Os pais que expõem as suas crianças à tal música quando elas já têm acesso à Fala e à Compreensão mereceriam ser presos ou fichados enquanto criminosos em potencial.
  • A segunda estrofe evoca justamente o elemento psicótico latente em cada ser humano, em vez de neutralizá-lo, oferecendo a perspectiva de que assassinar um gato seria algo tão distinto e tão abissalmente prazeroso, que seria melhor nem tentar.
  • Instaura-se uma proibição moral (um tabu) onde poderia haver pensamento crítico sobre o fazer-ou-não-fazer. Expõe, assim — à revelia da sua própria intenção — justamente o pecado que gostaria de preservar incógnito, totem agora regenerado enquanto tentação oculta (“mal secreto”…).

Acredito, além de tudo, que as crianças deste mundo devam encarar a possibilidade da morte, da agonia, do assassinato e do mal desde muito cedo, munidas porém da segurança poética que certas tradições permitem usar e abusar (tal como o Atireiopaunogato original), já que, além do mais, a agonia é uma vivência íntima da infância, bastando que não encaremos com olhos de pais cada um desses espécimes infantis. Pois os bebês estão agonizando a todo momento, e isso mesmo ou principalmente quando estão sorrindo.

Desenho de Manu Maltez

Assim, creio que a visualização poética da agonia do gato pode ser educativa.

O gato crucificado, para as crianças, poderia funcionar como o seu melhor amigo, uma companhia como nenhuma outra, já que se mostraria como corpo equivalente, corpo-vivência íntimo, no sentido daquela dor-sem-nome que só crianças e adultos não-ignorantes sentem e pressentem.

Ventilo, por fim, algumas outras possibilidades.

Para os pais que não sejam preguiçosos ou ignorantes (note-se como o problema é sempre os pais), vale mais testar certas sonatas de Mozart, se o alvo for o relaxamento; quase todas as músicas dos Tincoãs, se o objetivo for o desperdício-de-energias-para-o-sono; metal pesado (Slipknot, p. ex.), se a questão for de relaxamento emergencial e/ou evasão de impulsos violentos (quase-exorcismo); etc. Os exemplos de boas músicas são infinitos.

Uma hipótese incidental: as canções infantis (populares/tradicionais) deveriam, talvez, ser cantadas apenas presencialmente (aliás, eis a sua origem e meta), e preferencialmente com a cabeça do  lactante grudada ao peito da mãe ou do pai (para que sinta as vibrações), não possuindo, essas mesmas canções, nenhum efeito benéfico quando reproduzidas em playlists etc.; pelo contrário, como vimos, elas podem despertar nas pessoas (e não só nas crianças) instintos opostos e socialmente repreensíveis. Eu mesmo, depois que escutei a versão progressista do Atireiopaunogato, ando sentindo coisas estranhas.

De resto, agrego um fato que parece mentira, mas que é verdade: uma gata pariu cinco filhotes aqui na garagem de casa. Por vezes – devo admitir (se é para o progresso da ciência humana) –, olho para aqueles filhotinhos de um jeito não exatamente carinhoso. A voz da cantora progré-pós-mô ainda ressoa nos meus ouvidos. Fui dormir com ela soando, aliás.

Coisa estranha.

Não. Não sei se quero. Não sei se devo.

Mas isso já é pensar demais…


Daniel Guerra é editor da Barril

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