Cênicas


#noite2 Cobertura Crítica do JUNTA FESTIVAL DANÇA E CONTEMPORANEIDADE (PI) - 10ª edição
Victor Martins @martinsvictor_ 16/10/2024

AS CESARIANAS

outubro de 2024

Edição: 22


Sobre os espetáculos “Mulher Melancia” de Janaína Lobo (PI) e “Manifesto Transpofágico” da Renata Carvalho  (SP) 

Os atos de nomeação agem e marcam o mundo com seus efeitos de representação. São como instrumentos de corte: ferem  tecidos, realizam incisões, separam partes. Os nomes, enquanto marcas cicatriciais do fio da lâmina, são tanto representações quanto fatos. Existe aí um campo de permanente atrito entre representação e coisa representada, a depender da violência do corte e do manejo do bisturi que o opera. O ato de cortar supera a própria cisão realizada, na medida em que sempre revela algo que de outro modo permaneceria oculto. Acontece que o jogo entre luminosidade e obscuridade, superfícies e interiores, pode não ser um lugar tão óbvio na arte (e na vida). O que a princípio pareceriam relações entre aquilo que é exibido e o que é escondido, pede um pouco mais de atenção. Brotam outros talhos dentro do talho: superfícies podem ser opacas, o excesso de luminosidade impede a percepção dos contornos, embota outros sentidos. Enunciados podem se opor ao pretendido e o que está manifesto pode ser estritamente simulado. Após assistir  Mulher Melancia, de Janaína Lobo (PI) e Manifesto Transpofágico de Renata Carvalho (SP) na mesma noite, nessa ordem, percebi que os dois trabalhos, por proximidade de recepção, se despiam na presença do outro, no que vou chamar aqui de atos de navalha, sem nunca revelar plenamente a nudez de suas intenções. O corpo é infinitamente opaco, pensei.  

Desafiar as determinações do corpo biológico e vencer os efeitos das nomeações que lhes incide é o problema chave dos dois trabalhos. Ao referir-se ao próprio corpo como uma espécie de prisão na canção que encerra a peça, My body is a cage do Arcade Fire, o Manifesto Transpofágico apresenta a autogestação como gesto de resistência. “Grávida de mim mesma, eu me pari”, diz Renata Carvalho, a certa altura, para descrever seu processo de travestilização. Por sua vez, Mulher Melancia nos posiciona diante do apagamento da mulher e sua perda de contornos individuais para a condição de mãe, e propõe uma separação radical de sua barriga prenha, transferindo-a para um objeto alheio ao corpo — a melancia. A cisão entre a mulher e o próprio ventre, dada pelo corte com o objeto que a anuncia ao mundo como mãe, revela o absurdo da tomada de uma parte (a barriga), pelo todo (a mulher), ao mesmo tempo que reclama a autonomia desta em relação àquela. 

Um dos paradoxos da gravidez está em não vermos o feto e mesmo assim ele objetificar o sujeito aparente, a mãe. Transformar a barriga em melancia é uma excisão que libera a mulher e a devolve para sua condição de sujeito. Ao mesmo tempo, revela o quão objetificadas as mulheres grávidas se encontram na vida social, uma vez que a externalização da gravidez em barriga-fruta é um procedimento impossível. Se por um lado, a figura da travesti no Manifesto move-se principalmente por interiorização (gestos de colocar para dentro: a prótese, o silicone industrial e a gilete escondida na boca). A palavra manifesto, por exemplo, para além de referir-se a tratados de exposição de termos com fins de reivindicação e convencimento público, também pode ser lido simplesmente como “aquilo que se manifesta”, logo, que se torna aparente, que traz algo ao reino visível. Se a mãe em Mulher Melancia corta, extirpa algo da superfície para liberar-se,criando, enfim, a chance de ser vista como independente de,  a figura da travesti, por sua vez, recorre aos implantes e processos de inserção para se acomodar melhor ao próprio corpo e ter a chance de ver-se como dele. Ao enunciar “corpo”, me refiro àquilo que tem agência no mundo, e  “objeto” àquilo que sofre as agências do mundo. Quem ocupa ao mesmo tempo ambas as determinações vive no terreno intersticial na arena de provocação mútua entre objeto e corpo: corpo operando como objeto, objeto operando como corpo. E quem é que vive assim? Todas as pessoas, eis o chá de revelação. 

A mãe só existe se existe o bebê; portanto, mãe é um atributo, um estado em relação a, não uma condição a priori. A melancia, virtualmente a barriga grávida, mantém-se todo o tempo próxima da dançarina e sua condição materna é notada pelo ato de cuidado com a inseparável fruta-barriga-bebê. A imagem integral do corpo grávido só se completa quando a dançarina abraçada à sua melancia é projetada em sombras na parede. Arrisco a dizer que Mulher Melancia é dramaturgicamente regida pela visualidade e por uma lógica mais imagética que sensorial ou acontecimental, embora pareça não estar inteiramente consciente disso. É importante desconfiar das superfícies enunciativas, ainda que elas sejam imagens (esse é basicamente o truque da publicidade). A melancia, por deslocar-se pouco da sua posição de barriga. também reforma pouco a própria posição da mãe-objeto justo por apostar quase que unicamente no procedimento da externalização.  Nesse sentido, é um trabalho que resiste à própria nudez, e não estou falando da presença do shortinho enquanto peça de figurino.   

Do mesmo modo, o Manifesto é a peça de uma nudez impossível – e  mais uma vez não estou falando de peças de roupa ou da calcinha, que aliás nunca será removida. Logo no início, a atriz já nos diz que seu corpo sempre chega antes daquilo que ela enuncia, revelando – sem dizer – que talvez nossa atenção deva se dirigir ao campo de atrito entre o performado pelo corpo e o performado pelas palavras, como camadas distintas das suas enunciações textuais. Por mais que Renata, sob uma luz geral, beire a quase completa nudez de pele circulando por entre o público, por mais que nos mostre, em depoimentos pessoais e de outras travestis, sobre o teor e a história do interior de seu próprio corpo num misto entre teatro documentário e stand-up, as operações enunciativas da peça sempre performam outra coisa sob a superfície do enunciado, de propósito, um anti-chá de revelação, Em certo sentido, a centralidade da palavra TRAVESTI no imenso letreiro luminoso centralizado no palco e suas mudanças de cor já me levam para uma das performances das palavras nesta peça: TRA (som de arma) + VESTI (verbo vestir em primeira pessoa, no passado)

 Instaura-se uma desconfiança a respeito do valor de verdade daquilo que é dito pelo público, quando interpelado pela transpóloga, já que os enunciados nessa ocasião se mostram estritamente performativos. O medo do cancelamento da plateia pela plateia (e não pela própria Renata) paira sobre quaisquer palavra dita, o que parece uma grande chance de performar os problemas da enunciação pública hoje, no campo cultural. Quando a atriz afirma que a população cisgênera — que constituía a esmagadora maioria do público da sessão — devia aprender a receber doses de agressividade como parte de uma redistribuição da violência, e traz a gilete como um patuá, a economia de afetos reclamada revela outra camada: o desejo de se desvencilhar da posição opressiva por onde recaem as maiores infrações à dignidade da pessoa, a de objeto — afinal, objeto não goza. Porém ao defender sua subjetividade, deixa entrever que há sim, objetificações desejadas, como a posição de objeto de afeto.

Em Mulher Melancia, algo semelhante ocorre quando a dançarina reclama seu erotismo, rompendo com a ideia sacrossanta da figura maternal. A melancia, antes símbolo de fertilidade, abandona sua qualidade prenha; seu contorno esférico torna-se uma bola sobre a qual Janaína se insinua e quica no chão. A re-objetificação da figura antes materna e agora transformada em mulher-fruta se apresenta como uma revanche possível. No entanto, permanece a dúvida: será que essa ação resolve o problema (ao libertar e reempoderar a mãe, devolvendo-lhe o controle sobre seu corpo e desejo) ou será que a faz sucumbir novamente à posição de objeto, porque à mulher é dificílimo escapar dessa posição? Ao final, a redistribuição da violência, mencionada no Manifesto como método, ecoa em Mulher Melancia. Após acostumar-nos à barriga-fruta, Janaína empunha a faca contra ela. Se a imagem da travesti armada por uma gilete pode ser intolerável, a faca na barriga é igualmente perturbadora e sinistra, tolerada apenas por remeter ao corte cirúrgico da cesariana.

Essas metáforas de violência e desconforto, no entanto, se materializam em Mulher Melancia e no Manifesto Transpofágico também por meio dos gradientes de luminosidade, discursivos em ambos os trabalhos. No Manifesto, a penumbra inicial cede lugar à luz intensa e ostensiva sobre si mesma e sobre a plateia, encerrando-se em um espaço sombreado. O corte literal e simbólico da lâmina, que aparece na entrevista projetada, marca a ruptura entre interior e exterior, entre corpo e performance. A atriz, ao declarar o fim da peça, deixa a plateia imersa na luz, sem sombras de dúvida. O jogo de poder entre quem faz as perguntas e quem responde, com a palavra “TRAVESTI” substituindo “saída de emergência”, por mais que a Transpóloga anuncie que ali é um lugar seguro, a plateia resiste ao enfrentamento proposto pela performer, mesmo que diga o contrário. Nesse cenário, a incapacidade de um homem da plateia em pronunciar a palavra “travesti”, torna impossível não lembrar da leitura de Eve Kosofsky Sedgwick sobre a paranoia e a reparação em Leitura paranóica, leitura reparadora, ou, você é tão paranóico que provavelmente acredita que este ensaio é sobre você

Da mesma forma, Mulher Melancia também coloca o corpo feminino em evidência, mas de um modo que desafia a imagem idealizada da maternidade. Desde o início, percebemos que dar à luz, no sentido literal, é mais importante que parir. Janaína, deitada, observa uma imagem projetada na parede enquanto a barriga-melancia se move. O cenário remete aos exames de bioimagem, tão comuns na gestação, mas também à “hora dourada”, quando o bebê está prestes a nascer. Contudo, o círculo projetado na parede, sombreado com halos luminosos, não anuncia a chegada de uma criança coroando a vagina da mãe, mas sim a expulsão da própria barriga, um gesto que desestabiliza a narrativa convencional da maternidade. A predominância de tons brancos e as luzes de led criam um ambiente asséptico, distante do espaço doméstico, aproximando-se mais do cubo branco da galeria de arte, sugerindo uma estética que dilui as fronteiras entre o corpo vivo e o corpo objetificado.

A faca que corta a melancia parece reencenar o corte cesáreo — um parto que só ocorre quando o “natural” falha ou ameaça a vida da parturiente – para em seguida nos oferecer uma fatia da melancia. Essa “ceia” redistribuiria a violência sofrida com a chegada da maternidade ou advoga pela partilha do peso que carrega? No início deste texto, menciono a autogestação a que alude o Manifesto;  agora, ao fim do texto, as duas gravidezes se reencontram, provocando a relação entre corte e nascimento. Se superfície e  interior nunca estão perfeitamente colados, as duas instâncias raramente se alinham sem tensões, exigindo atos de navalha — cortes que revelam novas superfícies, que exigirão, a seu tempo, novos cortes. 

As certezas, assim como os corpos, exigem cisões — cortes que expõem mais do que fecham. Talvez as lâminas das duas peças nos contem menos sobre libertação e mais sobre o esforço contínuo de fazer coincidir o que nunca se alinha por completo: o corpo, a identidade, o desejo e o discurso. Talvez não seja o corte em si que liberta, mas a possibilidade de que, a cada fenda aberta, algo diferente se revele. Se as camadas nunca se colam por completo, isso pode não significar um descompasso eterno, mas um convite para o movimento contínuo, para um ciclo de rupturas e recomposições onde, em vez de certezas, o que resta é a abertura para o inesperado — uma superfície que sempre pode revelar mais do que o previsto, inclusive para quem fez o talho e o exibe.

Esse texto faz parte da cobertura crítica do Junta X Festival – Dança e Contemporaneidade, realizado em Teresina (PI) entre os dias 15 e 20 de outubro de 2024. Para esta cobertura, as críticas de arte Heloísa Sousa (Farofa Crítica, RN) e Alana Falcão (Revista Barril, BA) fazem uma primeira conversa pelo whatsapp, após cada espetáculo, e a partir daí escrevem seus textos individualmente, que são postados tanto no site do Farofa Crítica quanto no site da Revista Barril.

 

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