Ensaio | Cênicas


Antes de qualquer coisa, permitam-me: escrever sobre performance não é traí-la. Performance como gênero já é sua própria escritura. Portanto, nada há de anacrônico em teorizar performance. Podem dizer: “performance resiste à definições”; eu direi: “mas é justamente a performance que não resiste à definições”. Porque performance é esse falar sobre si mesma, é esse falar como processo de sua própria constituição. Para além do verbo. Performance não é uma prática específica nem um conjunto de práticas heterogêneas. É a delimitação simbólica de um gênero. Na verdade, é o gênero em sua feição mais radical — pura superfície. Puro gênero artístico: performance. Performance não é interdisciplinar. Não é o encontro entre múltiplos campos artísticos. Performance é a revelação estrita da auto-consciência artística, fotograma congelado em seu momento crítico de exposição e intimidade. Afinal, o que pode o artista senão inventar territórios?

O artista em performance é o artista em sua radicalidade estrita: aquele que produz demarcações. O artista não é o arauto da liberdade. O artista é o um dos grandes delimitadores da experiência humana; o incansável marcador de círculos. Nunca apenas um grito de revolta. Com o dedo indicador ou qualquer outra coisa, um pincel, um tablado, um cubo branco, uma tela, ele sempre designou seu próprio círculo, o da arte. Mas é claro. O artista, como a sublimação maior e mais bela do cinismo civilizatório, sabe: não existiria acontecimento sem uma designação que lhe nomeasse. Não existe belo, terrível ou vida em si. É necessário um dedo que os aponte, ou um olho solitário que sussurre para si: veja essa paisagem. Qualquer lugar é um recorte no espaço. O espaço não existe, ao menos fora de sua palavra.

Daí o corpo como objeto. Face à cotidiana ameaça de desaparição total, melhor voltar a revelá-lo. Já que não está mais demarcado a ferro e brasa pela força da tribo ou do Estado, já que por sua vez outros poderes praticamente invisíveis lutam pelo seu território (o sistema atual tem o “cuidado” de não causar muito dano aparente), melhor demarcá-lo eu mesmo. Então ela, Esther, a performer, a artista in essentia, diz: já que não posso fazer outra coisa senão produzir limites e molduras, melhor que restaure as coisas, e entre elas meu próprio corpo. Então sentada numa cadeira e ao lado de uma mesa (já neutralizadas por uma demarcação teatral convencional), começa a revelar – usando e abusando do fluxo temporal linear e tradicional – as coisas; o corpo. Não se sabe muito bem se são as coisas que devém coisas quando postas no marco da sua cabeça ou se é o contrário. Sim, pareceria por vezes que é justo o avesso. São as diferentes coisas colocadas sobre sua cabeça que estão designando, a cada diferença de aparição, “a artista”.

Então ela inverte o jogo. Revelo o meu corpo por meio das coisas, e não o contrário. As coisas são o marco do meu corpo, elas o revelam. Um rádio, portanto, é a moldura de Esther. Depois um desentupidor de pia, um espelho, um pênis de borracha. Tudo isso vira nome lá em cima. É a assunção da diferença. Mas também a designação da igualdade. Um corpo humano, sempre. E a mesma expressão. Não se sabe muito bem do que se trata, tristeza, alegria, etc, tudo que possam nomear na sua cara. É igual a tudo mais. Diferente como todo o resto, as múltiplas micro expressões de Esther lhe dizem: “Descubra o que descobri, o acontecimento só acontece quando é delimitado. O mundo interior é uma falácia, não me venha com esse papo de personalidade. Coragem! Delimite seu próprio significado, não se amedronte com a presença do artista; não ouça os essencialistas do corpo ou os mensageiros da razão, tudo é moldura, e veja, o melhor de tudo é o seguinte: eu sequer estou presente!”.

E é verdade. Esther é o avesso de Abramovic; sua sombra. Em Esther a artista está ausente. Aliás, um bom título para uma retrospectiva estheriana: the artist is absent. A artista está ausente porque aqui a artista significa “todxs xs artistas”. Esther é a artista em geral, uma idéia de artista: quero dizer, “aquele que cria territórios”. Seu corpo não é seu corpo, não é o corpo de Esther. É um corpo a serviço de um acontecimento. O acontecimento aqui não é forçado a entrar num campo. Não é seduzido por estratégias chocantes, não há sangue ou olhar penetrante. Nenhum cristianismo de fundo. Nada recalcado que precisasse ser revelado. Tá tudo aí: todo um nada em potencial.  Abre-se uma fissura no tempo e no espaço para que o acontecimento se efetue nos corpos. Mas também não nos venham com afetos e sensações. É claro, tudo isso vem: apenas depois da demarcação. Depois do “isso é arte”, tudo vem, pode vir.

Daí que a performance pode ser uma porta aberta para um pensamento materialista da arte. Porque performance não é avessa a essencialismos. Muito pelo contrário. Performance é a essência mesma, surpreendida em seu momento de trabalho: auto-construção. Performance é a mais cínica expressão civilizatória, é a elevação da capacidade de produzir limites e campos, e capital acumulado. É a essência de si mesma. Não necessariamente suporte de energias transcendentais ou dores reveladas a corpos crentes e anestesiados que lotam as galerias de arte. Tudo isso pode até ser. Mas antes, performance é, é, e é. Perceba, olhe honestamente pro assunto: performance nunca não é. Performance sempre está dizendo para si e para todos os outros: nós somos graças ao próprio fazer.

Performance, como materialismo estético, não aponta para fora do terreno da arte, nem esboça uma saída. Aponta para dentro, e é lá dentro que se mete. Designa as forças de produção, os corpos, os procedimentos. Observadora de todas as artes, nasce do meio da merda civilizatória, falogocêntrica — e se erige absurda, como o pau na cabeça de Esther. Diz: eu sou de borracha, mas sou o olho que tudo vê. Sou aparência: a essência de tudo. Sou o fantasma, a arte, o artista. A grande mentira. Sou o destino e meta da humanidade, sou todo o capital acumulado, sou o capital transformado e abusado, e é por tudo isso que lhes digo:  artistas de todo o mundo, emancipai-vos!

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.