Geral


Eco do Silêncio, foto de Urbano Neto.

ARTES CÊNICAS NA BAHIA

março de 2016

Edição: 1


Problema Ôntico

 PRESENÇA E ASSOMBRO

No ano passado, via Edital de Grupos e Coletivos Culturais, o Teatro Base trouxe o LUME Teatro para um intercâmbio com o grupo nos nomes de Carlos Simioni e Renato Ferracini. Tal feito foi o resultado de quase 5 anos tentando trazer os integrantes do LUME. Além do intercâmbio, cada um se dispôs a uma ação aberta ao público: Simioni apresentou a sua potente demonstração de trabalho, Prisão Para Liberdade e Ferracini organizou uma aula aberta – muito instigante – chamada Conceituações Sobre o Corpo em Arte. Durante todo o intercâmbio com os atores do LUME – eles vieram um por vez –, me propus a não só agenciar essa troca de saberes pragmáticos, mas também de organizar conversas, tanto após as horas de trabalho quanto, pela noite, numa mesa de bar. No conjunto de conversas que organizamos, principalmente no bar – Simioni indo bem mais vezes ao Bar Ancorador -, existiram dois momentos onde minhas motivações artísticas foram estremecidas, fazendo-me crer que estava preso numa espécie de palingenésica, num ciclo de reencarnações artísticas, numa perdição que, uma vez esvaziada dentro do vai-e-vem do processo labiríntico, me anestesiou – soporífico pela osmose.

O primeiro destes dois momentos surgiu quando eu perguntei a Simioni para onde eu canalizaria a “presença” – venho me distanciando progressivamente de um teatro representacional e não me interessava, naquele período e em primeira instância, ao que era entendido por “presentificação”; pensamento em evolução dentro de algumas iniciativas performáticas. Depois de beber mais um gole da cerveja, ele respondeu que não sabia, e que no fundo essa pergunta teria uma relevância no que tange a alguns cernes, bases e fundamentos do próprio acontecimento teatral. Naquele instante dialogamos sobre a tão difundida “arte do encontro” e, nas entrelinhas, parecia me dizer algo como “isso é problema seu, resolva”. O segundo momento foi justamente após a aula aberta de Ferracini, quando em uma conversa com algumas pessoas que tinham assistido a palestra ele comentou: “Eu vi muita coisa em teatro, dança e performance, já custa muito para eu me assombrar ou me surpreender com algo”. Essa informação de Renato fez com que eu analisasse minha “longa e extensa prática teatral de cinco anos”, e me assustei em perceber que eu guardava a mesma sensação de não-espanto. Isso me fez revisitar alguns empreendimentos com os quais me assombrei, entre acontecimentos baianos e não-baianos nas artes cênicas. Mais à frente citarei alguns eventos ocorridos em Salvador.

CIRCUNSTÂNCIAS DADAS: UMA ACEITAÇÃO

Contudo vejo que há uma espécie de movimento ou de aquiescência estética de que tudo em arte já foi feito, que já houve aberturas suficientes – em principal se tratando de avant-garde europeia e das inciativas não-arte e/ou pós-modernas. Que não há mais nenhuma porta a ser aberta e que, fatalmente, nos resta a análise do fazer tendo como parâmetro tudo o que foi transformado – sempre me foi curioso ler pesquisas em artes cênicas, as desenvolvidas nas pós-graduações, onde o artista, analisando a sua própria obra, se coloca como um crítico que estava a léguas de distância daquele acontecimento. Essa minha percepção se dá, obviamente e inevitavelmente, a partir do que acontece na Bahia e especificamente em Salvador. Não se trata, pois, de uma repulsa ao que acontece, inclusive a bem feitoria nas artes cênicas baianas é uma espécie de motor para grande parte dos artistas e esse bom fazer está calcado no que é entendido sobre um “bom teatro”.

A atuação no que tange ao bom teatro – que, de fato, e a partir de suas engenharias, é bom – implica em muita coisa, não somente no modo de fazer, mas de como se produzir, como adentrar e se manter no mercado, como competir ou se equivaler a outras mídias, prisão a possíveis gêneros estéticos e, especialmente, de como analisar e criticar as obras, e esse método consome a produção em artes cênicas há anos. Tal estrutura crítica ainda sendo usada como forma para analisar obras que atuam em outras zonas, o que é complicado.

Logo, se apresenta uma outra força que questiona esta estrutura, as classificadas como pós-dramáticas, performativas – as que dialogam nos eixos de risco – e que se lançam numa experimentação de multilinguagens (ver mais abaixo). Essa colisão lança as artes cênicas para um problema ôntico, pois nos aprisionamos sempre nos fenômenos mais acessíveis (principalmente aos olhos e ouvidos) optando por não dilatarmos os sentidos para o que é visto, vendo além do que acontece e além da estrutura. Aceitando uma condição alea iacta est, sendo escravo das reações do “público” ou de outros artistas. Logo, seria necessária uma libertação de uma cristalização perceptiva e/ou criptográfica da estética em artes cênicas, uma espécie de reforma que pode ser, com efeito, bastante quimérica.

CIRCUNSTÂNCIAS DADAS: VER O QUE SE QUER VER

Isto posto, é evidente – mas também posso estar enganado – que tanto os artistas quanto o público em hipótese (especificamente, aqui, aquele que não é do meio artístico), buscam, por caminhos diferentes, uma empatia quando se relacionam com as obras – essa empatia, muitas vezes, pode ser “um ver o que se quer ver” – e, em algumas medidas extremas, aprisionar na Sibéria iniciativas que se colocam em outra frequência que não o do expectante.
Este “ver o que se quer ver” consiste na expectativa do artista-expectante, quando se coloca diante da obra de outro, de ver naquilo as suas próprias projeções estéticas que, comumente, podem estar arraigadas no bom teatro, quando não, em outros supostos interesses estéticos e pessoais como os de algumas ações desconstrutivas. No entanto, para o público em hipótese há uma esperança de ver no teatro, ou em qualquer iniciativa cênico-performativa, o que, possivelmente, ele vê em outras mídias. Porém, diferente do artista que ocupa o lugar de expectante, o público em hipótese sustenta esta expectativa a priori, mesmo que inconscientemente, já que é o mais aberto para possíveis assombros “descriptografados”.

No que se refere ao artista diante da obra de outrem é perceptível esta possível conformação do que é posto enquanto parâmetro artístico, e isso se evidencia em duas vias que se unem no campo das projeções estéticas citadas acima. Seria, o caso de ‘gostar’ por cumprir com a expectativa de um bom teatro e/ou virtualidade dessa recepção ou a indiferença – que é pior do que não gostar – por não cumprir as necessidades subjetivas, as possibilidades viáveis elencadas nesta projeção do receptor em questão. Além disso existe também uma problemática social, que seria negar as propostas cênicas que dialogam em outras frequências – e eu não falo somente do que não é dramático, mas, inclusive, do que é. Essa repulsa é sustentada com tenacidade por alguns de nós. Essas negações frequentemente são responsáveis por cisões, criação de ilhas e pulverização de diálogos que poderiam conduzir a um novo pensamento estético dentro das artes cênicas baianas.

CIRCUNSTÂNCIAS DADAS: NOSTALGIAS EM EXTREMIDADES

A suposta ideia de que o teatro baiano vive numa eterna crise, também é sustentada por nostalgias. Seja pela saudade dos tempos áuricos entre os anos 80 e 90 onde houve uma explosão de produções teatrais, momento de destaque para diretores como Fernando Guerreiro, Luiz Marfuz, Paulo Dourado – sendo muitas vezes referenciada, também, como a época dos grandes produtores culturais – ou pela saudação as iniciativas artísticas dos anos 60/70 no Brasil, a exemplo de Zé Celso, Hélio Oiticica e a poesia concreta, para citar alguns exemplos – sei que são exemplos insuficientes para ilustrar a profusão artística daquele período. O saudosismo dos anos 80 e 90, geralmente é referenciado por uma parte da classe que acredita numa falência da máquina produtiva, que, por consequência, afasta o “público” das produções teatrais baianas. É, a certo ponto, uma visão de que há escassez qualitativa nas obras cênicas baianas. Há também a crença em uma improdutividade – agora o elemento quantitativo –, que está na negação de algumas inciativas, a exemplo das obras que têm o risco enquanto motor. O outro grupo acredita que a forma de produção em artes cênicas, principalmente a ensinada nos âmbitos acadêmicos, está datada, empoeirada; blindando, por vezes, o acesso a um pensamento crítico mais concernente “do que foi”, o que ocasiona em muitas vezes na repetição de estruturas que flertam, inclusive, com os pensamentos estéticos que negam. Enquanto de um lado se corre para uma retomada progressiva do “público”, inclusive a partir de uma retomada do bom teatro – e até acho que isso vem dando certo, e isso é valoroso –, do outro há uma busca por uma colagem de ferramentas que abarque outras formas de criação artística, estreitando relações com a performance, audiovisual, dança e outras linguagens, além de uma apropriação semiótico-cultural, operando em zonas Multi-Inter-Trans disciplinar. Um enfrentamento entre estrutura e mercado.Ambos os caminhos são extremamente válidos e importantes, mas creio que somente pensar ferramentas, misturas ou “como o público pode voltar a se interessar pelo que se produz nas artes cênicas” é insuficiente para uma reviravolta estrutural que possibilidade a transformação de um corpo que insiste em estar anestesiado. Isso, em suma, seria o problema ôntico, do que nos é posto, logo, um problema fenomenológico, já que não se coloca em questão as bases da estrutura, o que fundamenta “a coisa”, mas, sempre, a própria estrutura, a própria máquina a nível Bahia – ciclos sem saltos quânticos. Pavis em A Encenação Contemporânea – em minha opinião o seu melhor livro, posto que vemos um crítico totalmente em crise – sugere uma outra análise do que ocorre na França (também ressaltando algumas ações estrangeiras) em termos de artes cênicas, uma análise que alie a necessidade semiológica com a fenomenológica. Talvez seja uma alternativa essencial, tanto para o artista quanto para o crítico, uma oportunidade de visar uma possibilidade outra, não somente na experimentação de uma outra forma de análise ou dentro do processo de criação, mas também experienciar algo além fenômeno, criando e analisando, e quebrando uma dependência ao mercado e a técnicas catalogadas. Isto é, gerenciar uma crise nos fundamentos estéticos.

PROPOSIÇÃO LASCIVA

Ou seja, para um novo pensamento estético no cenário teatral baiano, seria mister uma proposição ontológica, se isso é possível, emancipando-nos de uma dependência criptográfica que não só se fomenta de nossa realidade simbólica ou ôntica, mas também das reproduções dos símbolos/mitos estéticos. Superar o que está posto é necessário para o assombro, ir além da estrutura. Questionar, por sua vez, as bases estéticas. Segundo Heidegger, “o nível de uma ciência determina-se pela sua capacidade de sofrer uma crise em seus conceitos fundamentais”. Ora, qual seria afinal o conceito fundamental das artes cênicas?

Acredito que seria o próprio conceito de presença – ou algo que se equivale a este termo –, termo este que já deixou muita gente maluca em nosso campo artístico. Mas, por mais que pareça uma visão ainda incipiente, de um possível conceito fundamental em artes cênicas, escolho este termo enquanto fundamento pelo seu admissível sentido mais tradicional, o de entre, de “sendo”, uma temporalidade ou uma “tensão do tempo”, como visto em Heidegger, aliado a uma força perceptiva e, fundamentalmente, relacional a partir de um movimento que só consigo chamar de “um fora dentro”. Tentando abarcar outros sentidos – e justamente o sentido -, fugindo das circunstâncias propostas do entendimento de presença (dilatação, tensão, beleza, tônus, força e etc.). Ou seja, é neste fundamento, que, de modo sistêmico, mora uma revolução estética em artes cênica em minha humilde, e talvez leviana, visão. Enxergar presença como possibilidade para o assombro, como fenômeno e diretriz além fenômeno. Logo, área de transformação e criação. Puro acontecimento talvez. Daí nasça uma estrutura emancipada, articulada por uma nova crise no conceito dentro das artes cênicas baianas.

Presença = Gerúndio Performativo

TRÊS EXEMPLOS

Pensando nisso, tentei me recordar de algumas possíveis obras, aqui de Salvador, que se aproximaram desta crise, que anunciam esta possibilidade. Citarei elas sem recorrer a uma análise detalhada do acontecimento, porque ambas inspiram outros textos e caminhos muito diferentes de análise. Primeiro um acontecimento recente: Reino de Thor Vaz (2015), que a partir de uma verborragia retórica, e criando uma espécie de alegoria, um palestrante, agencia uma atmosfera de desorganização psíquica para com quem compartilha daquilo. Por este viés a presença se apresenta a partir de uma relação conturbada de mim para com Thor. Essa “perturbação” é evidente em muitos que se inserem naquele espaço. Uma Dança Para Omin, Orobroro de Laís Machado (2013): embora Oroboro, tenha minha participação – logo, peço aqui licença para esta citação – o solo de Laís nada teve de minha mão a não ser uma sugestão de onde apresentar o acontecimento – Laís, a poucos dias da “estreia” de Oroboro, jogou fora tudo o que eu tinha dirigido, criando uma outra coisa em casa. Quanto a esta obra de Laís, era assombroso, estranho e até imprudente como as pessoas, no ato ritual que finalizava esta obra, se lançavam para a performer – cortando os panos que a prendia, buscando consolo, inclusive, na própria artista. Neste sentido, a presença estava no “sendo” de uma maneira que até hoje não é compreensível, só era claro que houve um esquema rigoroso composto pela performer, onde parecia que ela levada as pessoas pela mão sem necessariamente tocá-las até o momento de uma total ritualização – Laís recebeu mensagens de pessoas, durante um bom tempo, falando de como elas estavam lidando com a resolução do que as tinha afetado. Essas duas obras, de Thor e de Laís (performances vistas por poucos), anunciaram, para mim, um teatro em seu sentido mais cru, ou cruel, de exposição, que não só convoca um assombro como também me faz repensar a ideia de presença. Outra obra, que não necessariamente se insere no âmbito teatral, mas numa ação performativa, é a proposição estética Biquíni Quadradão de Yuri Tripodi (2014). Ali, numa qualidade de proposição como, acredito, é defendida pelo artista, Yuri reinventa uma existência, um caminho que, cada vez mais o consome. Por esta via a ideia de presença é esgarçada numa qualidade de intervenção direta na rua e de afeto ao outro, uma ação direta na composição de um possível novo comportamento: presença como a própria estrutura de enfrentamento.

O que eu vejo como problema ôntico nas artes cênicas da Bahia – ou até como um grande problema das artes cênicas – é justamente o nosso enraizamento num processo estrutural que já dura anos. Num processo estrutural que ou se valoriza ou se nega, mas sempre nele mesmo, mantendo os fundamentos sempre intactos. Acredito que não há assombro sem um abalo sísmico no que motiva uma disciplina. Entretanto, não é uma proposição que preza por algo informe, mas sim por uma possibilidade de nascimento de novas estruturas, de novas formas, inclusive, de existências em arte, possibilitando outra configuração do olhar, da análise e da criação, e, fundamentalmente, encerrando o fluxo nostálgico. Pode ser que tudo isso não passe de uma alucinação, abantesmas que não levam a lugar nenhum – ou que somente eu tenha essa necessidade de assombro, desejando ver ou criar o que não esperava. Mas prefiro observar como uma proposição, hipótese, que seja. Uma tentativa de nos libertarmos de um pensamento estrutural que se encerra sempre nele mesmo, alcançando outras camadas além de uma conformação das circunstâncias dadas.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.