Ensaio | Visuais


Nas cidades de hoje, parece haver um denominador comum, além da onipresença das redes físicas de franquias e das plataformas virtuais pelas quais nos relacionamos no cotidiano: as manifestações de arte de rua. Atualmente, talvez não haja cidade sem presença de um muro grafitado, um pixo perdido na paisagem ou uma esquina com um semáforo cheio de pequenos stickers. Fico pensando nas minhas incursões recentes – até antes da reclusão doméstica imposta pela pandemia de Covid-19 – e, mesmo naqueles pequenos povoados aparentemente distantes do ritmo frenético das grandes urbes, você encontra uma manifestação de arte urbana.

Mas o que é arte urbana? Em princípio, arte urbana designaria (enfatizando o condicional) toda manifestação artística que ocorre no âmbito da cidade. Os exemplos mais legitimados são os monumentos e obras oficiais que vemos em vários lugares, quase sempre em homenagem aos personagens históricos (como a Zumbi dos Palmares, na Praça da Sé, ou a Clériston de Andrade, na Avenida Garibaldi), às efemérides (como a coluna da Praça Riachuelo ou o Caboclo do Dois de Julho, no Campo Grande) ou, até, de cunho religioso e devocional (como a escultura de Iemanjá, em Itapuã, ou a do Cristo, na Barra). Sem entrar nos aspectos estéticos e nas possibilidades técnicas desse repertório, podemos dizer que essas peças seguem protocolos de instalação em espaços previamente autorizados – embora muitas vezes não estejam isentas de controvérsias em seus conteúdos, mostrando-se opacas em sua pertinência. Entretanto, além dessas obras oficiais, há uma série de outras manifestações que podemos chamar de “não oficiais” ou “não autorizadas”, agrupáveis como arte de rua, que também envolvem diferentes tipos de técnicas e temas. Poderíamos dizer que toda arte de rua é arte urbana, mas nem toda arte urbana é arte de rua? Talvez.

Ainda poderíamos questionar: o que é arte pública – de ocorrência na rua ou em espaços públicos fechados, em suportes de circulação pública, e que muitas vezes carece de proteção oficial –, e o que é arte de acesso coletivo, localizada em âmbitos de propriedade privada, mas de acesso e fruição coletivos, inclusive desde a rua. E por que isso seria importante? Porque muitas vezes a fronteira entre alçadas públicas e privadas é confusa. Um caso recente (creio que se deu em 2019) foi o da colocação de um monumento ao trio Camaleão em um canteiro da Avenida Adhemar de Barros. A alegação de que o custo da peça foi de responsabilidade dos empresários carnavalescos é frágil (não ouso imaginar como ficariam os canteiros da cidade se todos os blocos e entidades da folia soteropolitana resolvessem “custear” objetos de cafonice similar). Mas o modo como chegam as obras “permitidas” aos espaços públicos e quais os critérios de aceitação e rejeição de peças para ocupar praças e ruas são assuntos para outra reflexão. Por enquanto, creio que um bom exemplo de arte pública, no sentido de não oficial, são as intervenções (em sua maioria pictóricas) nos vagões dos trens e metrôs de várias cidades do mundo, ora apagadas e criminalizadas, ora estimuladas e assimiladas à estética cosmopolita. É oportuno ressaltar que o adjetivo público não implica ausência de regras e que, apesar de as obras serem realizadas em suportes e situações passíveis de intervenção, tanto de superposição como de apagamento, há uma ética entre os artistas desse tipo de trabalho, com códigos próprios, convenções e acordos que tecem outra esfera comportamental paralela à das leis de conduta oficiais. Nesse sentido as noções de transgressão e permissividade da arte pública são extremamente relativas.

Já no caso da arte de acesso coletivo, um exemplo recente é o painel de homenagem à Irmã Dulce no exterior do Shopping Barra em Salvador, obra do artista paulistano Eduardo Kobra, que, atendendo à encomenda da administração do centro de compras, fez uma pintura de fruição coletiva para ser percebida desde a rua, porém, no espaço privado externo do edifício comercial. E esse tipo de situação não é raro: pensemos nos diversos painéis e obras de arte que, embora localizados em espaços privados, têm sua apreciação e apreensão desde o espaço público de uma rua ou de um passeio. Portanto, considerando a complexidade de situações e o amplo leque de possibilidades da arte urbana, é prudente frisar que nem toda arte urbana é arte pública e nem toda arte pública é arte de rua.

Assim, de modo geral e sem muito rigor conceitual, podemos perceber que toda essa terminologia, que frequentemente usamos de modo indistinto, contém nuanças que evidenciam a complexidade de se expressar no espaço urbano, independentemente de quais sejam os meios dessa expressão, de gostar ou não dos resultados estéticos e da discussão infértil sobre se tudo isso é ou não é arte. E esse preâmbulo serve apenas para resgatar aqui uma perspectiva sobre algumas iniciativas de arte urbana que vêm acontecendo em Salvador nestes últimos anos e, mais precisamente, na região do Comércio, com todas as possibilidades de interlocuções entre expressões artísticas autorizadas ou não, públicas ou privadas, de rua ou não.

No início de janeiro de 2021, o recém-empossado Prefeito de Salvador Bruno Reis inaugurou, com os correspondentes holofotes midiáticos, um breve e interessante circuito de arte urbana denominado RUA. A cerimônia, mais política que artística, foi imbuída de presentismo amnésico e, como era esperado, a arte foi apenas uma vitrine promocional para o início da gestão. Mas antes de falar dos predicados desse projeto e de suas potencialidades, gostaria de retomar uma trajetória desse tipo de ações na região.

Sempre fico me perguntando por que em Salvador há o que chamo de “síndrome de reinvenção da roda”. Explico: cada vez que se faz alguma coisa, há certa negação do passado de ações similares e até parece que incomoda reconhecer que projetos do mesmo tipo podem somar na consolidação de trajetórias e circuitos. O RUA é interessante e louvável, mas não é a primeira vez que o Comércio acolhe uma iniciativa de circuito artístico. Sem considerar a extraordinária produção de murais e obras de arte dos anos 50 a 80, dentro e fora de edifícios públicos e privados, o Comércio tem um acervo de arte urbana pouco divulgado.

Nas últimas décadas, o circuito mais antigo com remanescentes que ainda podem ser contemplados é a sequência de painéis da CODEBA promovida por um concurso público, organizado em 1998 em comemoração dos 450 anos de Salvador, e financiado pela Companhia de Docas da Bahia (CODEBA). A proposta, concebida como “uma galeria de arte em plena via pública”, segundo seus mentores, ocupou, ao longo da Avenida da França, os muros dos galpões do Porto de Salvador. Com formato predeterminado de 2,00 x 4,90m, os painéis se ajustam ao suporte arquitetônico existente e as técnicas empregadas são predominantemente pictóricas. Das 36 obras do projeto original, ainda podem ser apreciados murais de 24 artistas que foram restaurados em 2016 – sem informações do paradeiro das outras 12 peças que ficavam nos galpões demolidos para novas edificações.

Em outra proposta, entre 2005 e 2010, o Projeto Salvador Grafita, de iniciativa da Prefeitura Municipal de Salvador, na gestão de João Henrique, também estimulou a criação de vários murais grafitados, embora com um controverso viés higienista e de embelezamento, visando “transformar a pichação em arte, em emprego e em inclusão social, inserindo os pichadores na limpeza da cidade”, segundo a divulgação na época. Folgo dizer que a confusão entre grafite e pixo e a perspectiva do emprego como domesticação do trabalho artístico dos artistas de rua são, no mínimo, discutíveis… beirando o preconceituoso.

Em um sentido diferente, em 2016 foi realizado o projeto MURAL (Movimento Urbano de Arte Livre) de execução de painéis de grandes dimensões pintados ao longo de diversos muros pela Avenida da França, que inclusive reforçaram a visibilidade dos então quase esquecidos painéis da CODEBA. O MURAL foi contemplado pelo edital municipal “Arte em Toda Parte – Ano III”, da Fundação Gregório de Mattos, e teve participação dos artistas Limpo (Fábio Rocha), Fael Primeiro, Rebeca Silva, Davi Caramelo, Éder Muniz, Devarnier Hembadoom, Nila Carneiro, Pedro Marighella e Marcos Costa. E enquanto escrevo este texto, no início de fevereiro de 2021, é anunciada a realização de uma nova edição do MURAL, que, através de chamada pública, deverá selecionar outros quatro projetos para execução de painéis em pequenas e grandes paredes.

Finalmente, o mencionado Roteiro Urbano de Arte (RUA) é definido como um projeto de arte contemporânea, sob curadoria de Daniel Rangel e iniciativa da Fundação Gregório de Mattos da Prefeitura Municipal de Salvador. A ideia da proposta foi (novamente) criar uma galeria de arte a céu aberto pelas ruas do Comércio. Utilizando como suporte muros e calçadas, além de elementos de mobiliário urbano como postes e bancos, foram criadas instalações e esculturas em fibra de vidro, resina, poliéster e aço, bem como pinturas e painéis totalmente acessíveis à população que circula pela Rua da Grécia, Praça da Inglaterra, Rua dos Ourives, Rua Francisco Gonçalves, Plano Inclinado Gonçalves e Plano do Pilar. Sete artistas convidados criaram as peças relacionadas a outros sete artistas homenageados: Bel Borba homenageia Caribé; Ayrson Heráclito homenageia Mestre Didi; Ray Vianna homenageia Mário Cravo Júnior; Lanussi Pasquali homenageia Joãozito; Iêda Oliveira homenageia M.B.O.; Zuarte homenageia Reinaldo Eckenberger; Vinícius S.A. homenageia Rubem Valentin. E ainda pelas avenidas da França e Estados Unidos, e as ruas Miguel Calmon e Conselheiro Dantas, o artista Bigod criou o Conexão Grafite, com desenhos e grafites espalhados pelo trajeto. Portanto, à diferença dos outros projetos mencionados, o RUA compreende uma diversidade maior de expressões além da arte mural e grafites e cria relações conceituais e laços de memória mais complexos que a perspectiva contemplativa dos outros circuitos existentes.

Entre os monumentos públicos e os circuitos da CODEBA, MURAL e RUA, podemos elencar um acervo de pelo menos 50 obras autorais no Comércio. Pensando nas contribuições e potencialidades dos diferentes conjuntos de obras, e nos alcances e limitações dos projetos mencionados, creio que a Prefeitura e as esferas privadas de atuação na área podem (e devem) fortalecer uma cooperação que possa consolidar a ocorrência da arte urbana e a visibilidade do patrimônio da região, tanto aquele que é fruído desde o espaço público quanto as manifestações que se encontram em contextos de acesso restrito.

Os painéis da CODEBA configuram um circuito do que chamei “arte de acesso coletivo”, de promoção privada na sua produção e manutenção, mas também de responsabilidade controversa ante o desaparecimento de uma dúzia de obras artísticas que poderiam ter sido deslocadas para outro lugar. No entanto, o MURAL se apresenta como “primeiro projeto de Arte Vertical realizado na capital baiana” e sua logística de produção é mais complexa que a dos painéis da CODEBA pela mobilização de equipamentos especiais para a pintura em superfícies de grandes dimensões. Porém, é um projeto que mistura “arte de acesso coletivo” com recursos públicos.

Já o Salvador Grafita é um caso anacrônico de “arte de rua oficial”, que produziu muitos painéis distribuídos por várias partes da cidade somando-se a trabalhos existentes e reforçando, por certo tempo, a presença de alguns conjuntos de grafites. Entretanto, a maioria das pinturas foi apagada por intervenções posteriores, na dinâmica inerente à arte de rua, ou pela ausência da manutenção que se esperaria de um investimento público, uma vez que o projeto foi uma iniciativa municipal. Nesse sentido, o RUA apontou para uma perspectiva promissora ao estimular, mais do que a homenagem, o resgate de artistas cujo legado está longe da divulgação, da legitimação e do conhecimento que merecem. E assim como foi criada a Conexão Grafite, aponta para possibilidades de conexões e diálogos com o rico patrimônio de arte existente no Comércio, ampliando e fortalecendo a interlocução com obras mais antigas.

Se o Comércio parece ser o espaço para alguma implicação da Prefeitura Municipal de Salvador nos rumos da depauperada cena de artes visuais da cidade na era pós-covid, é bom que seja da mão da arte urbana, já que museus, bibliotecas e outras dimensões culturais nunca estiveram no escopo político das administrações das últimas décadas. Mas avisa lá que Salvador é muito maior que um bairro e que a arte soteropolitana pode ir muito além de uma galeria a céu aberto.


Alejandra Hernández Muñoz é uruguaia residente em Salvador desde 1992, arquiteta, Mestre em Desenho Urbano e Doutora em Urbanismo pela FAU/UFBA, com Pós-Doutorado pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília (IA/UnB). Desde 2002 é professora permanente de História da Arte da Escola de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia (EBA/UFBA). Atua em curadoria e crítica de arte e arquitetura; participa de comitês e júris de seleção artística nacionais e internacionais.

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