Não-Ficção | Literatura


Assalto à agencia do Banco do Brasil em 2012. autor desconhecido

Amargosa

fevereiro de 2021

Edição: 22


“- Eu também imaginei um modelo de cidade do qual extraio todas as outras – respondeu Marco. – É uma cidade feita só de exceções, impedimentos, contradições, incongruências, contra-sensos. (…).” (Italo Calvino em As cidades invisíveis)

 

João do Rio, na crônica que abre o A alma encantadora das ruas, afirma terem alma todas as ruas de uma cidade, pois que elas trazem em sua história vivências humanas, fazendo pulsar em seus nervos a nossa miséria. Sim, as ruas são intercâmbios crepusculares de narrativas, por exemplo, em cada casa que comunga com a outra; principalmente na conhecida parede-meia na qual segredos, dores e alegrias são espreitados por ouvidos e carnes trêmulas. Tudo o que eu sempre soube de ruas aprendi na cidade de onde vim, encravada na serra da Chapada Diamantina; tudo o que eu sabia delas eram a sua amizade, o seu lirismo, o seu clima poético. Venho de um sonho feliz de cidade – Andaraí – onde, até meus 25 anos, soube do aroma e da beleza dos becos, das praças, das ruas sem saída, dos lajedos; de acordar com o rio rumorejando no fundo da casa e de ir dormir com o mesmo rio embalando meu sono. Nunca pensei que pudesse existir cidade diferente. Feira de Santana, Salvador e Recife – lugares onde morei logo depois – foram testemunhos de que metrópoles também podem ser lindas, acolhedoras, líricas, poéticas. Mas… e Amargosa (localidade para onde me mudei em 2011, assim que passei num concurso público para professora de Letras na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia)?

Sim, volto a me perguntar, e Amargosa? Por enquanto só eu pergunto, mas sei que você, leitor, certamente – como sempre acontece – me perguntará o porquê deste nome: “Amargosa”. Nome tão sorumbático, e cruel, e amargo, sem possibilidade de nos fazer acreditar no trocadilho libidinoso (“amar e gozar”) que pessoas consideradas “positivas” defendem. Os nativos respondem que esse nome é proveniente das pombas amargas que ali existiam quando a cidade fora descoberta. Mas que raio de cabeças tinham essas pessoas para batizarem o local com tal nome? Será que a carne amarga das pombas era mesmo gostosa? Ora, ora, nome é coisa importante, nome é algo que se materializa nas identidades dos lugares, nome é força simbólica.

Acredito, sim, na força simbólica do nome, seja de pessoas, coisas, seja de cidades. Morei em Amargosa por longos nove anos, de 2011 a 2019. Vivi experiências alegres, obviamente, na universidade, com meus alunos. Mas em suas ruas, nesse lugar de nome tão altivamente sombrio, vivi momentos difíceis. Conhecida por seu grande e animado São João, Amargosa tem uma praça principal bonita, cartão-postal – segundo soube, decalcada nos traçados das praças parisienses –, batizada com nome de gente, algo que detesto. A praça, onde acontece o São João, considero-a muito mais bonita, e seu nome é belíssimo: “Praça do Bosque”. Lá eu ouvia o canto desesperado das cigarras nos finais de tarde. Lá é como se a praça assumisse, com sua verve intensa, a profunda melancolia que existe em tudo ali, na cidade como um todo, mas que não é assumida. E não é à toa que logo nesse lugar é celebrado o São João modernoso, de extrema alegria irritante. A Praça do Bosque aceita, assume e exibe a sua mais profunda melancolia, que resiste em sua gênese poética – coisa que nas demais ruas e praças de Amargosa não acontece. Quanta tristeza e beleza naquelas casas apartadas, resquícios de uma estação de trem que ali houve! Vi a estação de trem numa fotografia em preto e branco e daí descobri por que gostava tanto daquelas casas tão tristes e curiosamente belas. Muitas e muitas árvores. Árvores felizmente desordenadas (sem a terrível poda em simetria) se enganchando umas nas outras, como deve ser. Nada semelhante à praça famosa, aquela do cartão-postal, com nome de gente, onde se situam dois bancos e a Prefeitura. Não poderia ser mais exibida, querendo ser linda e perfeita a pulso, com árvores que, devidamente podadas, formando vários desenhos, marcham como crianças tristes em parada de Sete de Setembro. Sim, lá há flores meticulosamente cuidadas, belas – mas dessa beleza esperada, previsível, diferente da beleza profunda e dolorosa das árvores despenteadas da Praça do Bosque.

“Vou andar no Bosque!”, muitas vezes me despedi de mãe (que foi morar comigo) falando assim, porque a praça – como convém – é do povo, e o povo sempre inventa uma elipse criativa. Portanto, ali nem praça mais é, e, sim, é “o Bosque” – recanto onde se sonha melancolicamente. A melancolia é a tristeza que se tornou leve, disse Italo Calvino. Oh, não há que se achar ruim ser triste! Quanta beleza há no spleen baudelairiano, no banzo das canções africanas, na canção da Hora do Angelus cristã! Se todos os amargosenses pudessem sentir as lições dessa praça bravamente poética! Ao situarem o São João modernoso lá – com som de sertanejos universitários e afins – ferem fundo seu cerne, sua carne, sua alma. Imagino o quanto ela sofre na semana do São João, repleta de impostores com botas nos pés, cintos de fivela na calça e cerveja na boca! Nessa época, como em todas, preservam a praça podada, o cartão-postal, com árvores em vários formatos e desenhos, visitada pelos turistas durante o dia. Descobri aí, através de uma colega de trabalho, árvores podadas em formato de pênis! Vários e bem no seu círculo. Foi só eu publicar um texto com foto no Facebook, que cortaram as cabeças dos pênis, podaram-nas! Esqueci de dizer que nessa praça também tem a igreja da padroeira, Nossa Senhora do Bom Conselho. Até chegar em Amargosa, nunca ouvi falar nesta santa: Nossa Senhora do Bom Conselho. A igreja se encontra quase colada ao Banco do Brasil. Vivi algo trágico nessa praça, em 2012. Mas antes de contar, deixe-me dizer da santa. Cheguei um dia na porta da igreja e vi uma efígie dela em sua entrada. O que me intrigou foi seu semblante sisudo – quem a esculpiu não estava com boa vontade. Nunca ouvi falar em santa carrancuda. Esta não traz um rosto feliz, a boca se fecha num esgar intrigante.

Agora contarei os momentos mais difíceis que vivi em minha vida, e foi nessa cidade, e foi nessa praça bem-comportada (as árvores podadas não se assanham com o  vento; a poda não permite). Era uma quarta-feira, dia 29 de fevereiro de 2012. Nesse dia haveria, à tarde, como em todas as semanas daquele primeiro semestre do ano, aula de Literatura e Filosofia, componente curricular optativo que criei. O tema de estudo era a Morte. Os alunos diziam ter medo da aula, dos textos que eu levava. Uns afirmavam não conseguir mais dormir, com fortes pesadelos. Sim, não é fácil descobrir-se mortal. Naquela quarta, 29 de fevereiro de 2012, pois, próximo ao meio-dia, atravessei o portal, ops, a porta giratória do Banco do Brasil, coisa que não costumo fazer. Puxei da máquina uma ficha para ser atendida no caixa. Só foi o tempo de eu sentar e ouvir um tiro, dois tiros, três, quatro, cinco, e o grito: “Deitem no chão!”. Não acreditava naquela realidade! Eu não aceitava que estava dentro de um dos maiores assaltos ao Banco do Brasil da história de Amargosa. Onze bandidos invadiram esse banco e onze, o banco em frente, o Bradesco. Eu deitei no chão, e tiros, tiros, homens encapuzados ordenando que a gente saísse. Foram nos levando para fora, para o meio da rua, nos empurrando com a boca das metralhadoras. Ficamos – éramos em torno de vinte pessoas – muito tempo lá fora como reféns, enquanto as duas quadrilhas agiam. Pensei logo: “Vou morrer hoje, no dia da aula sobre a morte!”. Repito, era quarta-feira, dia da aula sobre a morte que ministraria à tarde na universidade. Enquanto chorava, constatei: “Sim, a vida tem enredo e é irônica; logo hoje eu vou morrer!” E danei a fazer promessas para santos e orixás e espíritos, não queria morrer. As mulheres choravam e os homens, não. Os homens sem camisa (por ordem dos bandidos) tremiam as carnes expostas. Tudo durou uns cinquenta minutos, mas dentro de mim foram cinquenta séculos. Os bandidos fizeram cena. Jogaram moedas para uma plateia ensandecida, que ali louvava os bandidos. A cidade em peso assistia ao horror, clamando pelas moedas. Eu ouvia algo do tipo “Eta, vão matar os reféns!”, frase com entonação de suspense, de alegria, como se fôssemos só personagens de um São João fora de época, ao som de metralhadoras. “Que povo é esse, meu Deus?”, pensava enquanto treinava minhas pernas para correr dali. E isso se deu quando eles queimaram um carro à nossa frente, o carro no qual iriam fugir, mas que não pegou quando ligaram. Foi nesse exato momento que saí correndo. E, mesmo em hora tão horrenda, me lembrei da arte: “Corre, Forrest!”, falei para mim mesma. Quando parei, eu não era mais eu. E ainda ouvia tiro, e fiquei ouvindo tiro por muito tempo. Nessa época eu morava na Rua da Lama (morei em muitas ruas, me mudei de casa por cinco vezes). Sim, “Rua da Lama”. Acostumada com a “Rua dos Sete Pecados”, com a “Rua da Ilha”, ambas de minha infância, não gostei desse nome. E foi a rua onde mais sofri. Mais do que na Rua da Jaqueira – que em nada se parecia com a Rua da Jaqueira de minha Andaraí – e na Rua do Buraco, lugar onde morei por último, de 2016 a 2019. Antes de eu morar na Rua do Buraco, morei na Rua do Ribeirão, nome bonito, resgate de águas ali inexistentes – meu carma com a cidade, parece, ia melhorando.

Na Rua do Buraco, rua do estádio, as casas viviam todas fechadas, ensimesmadas, nem parecia haver gente viva morando dentro. Fui conhecer minha vizinha por insistência de mãe, mulher interiorana que gosta de fazer amizade com vizinhos e de conversar através da parede-meia. Mãe não entendia o fato de não conhecermos nossa vizinha. E, no primeiro dezembro de nossa mudança para aquela rua, foi ela lá tocar a campainha com um presente de Natal. O marido apareceu e disse que a mulher tinha saído. Mãe entregou ao senhor o presente para a sua senhora por cima do muro – ele não abriu o portão. Que cena mais triste e solitária, pensei ao ver isso da janela do meu quarto. Mãe insistiu naquela amizade impossível, e, numa tarde, a vizinha foi lá em casa conhecê-la. Não passou disso em quase três anos. Já era uma grande evolução ela me perguntar por mãe, quando me via na rua. E só. Rua do Buraco. Tocas e corações fechados numa solidão gigantesca, amarga, dolorosamente fiel àquela cidade com nome proveniente de uma ave singular.


Ângela Vilma é poeta e professora. Publicou, entre outros, Poemas para Antonio (P55, 2010), A solidão mais funda (Mondrongo, 2016) e Aeronauta (Mondrongo, 2020), livro de crônicas. Professora de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

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