Na edição anterior, tivemos uma breve discussão sobre a palavra acontecimento. É interessante que esse conceito esteja aparecendo na boca de tantos criadores ao mesmo tempo. Poderíamos chamar a isso sincronicidade. Eu prefiro achar que é uma imanência histórica, ou seja, algo como um zeitgeist pairando abaixo ou acima do mundo, dos corpos e das coisas, irrompendo aqui e ali, inflando esta ou aquela existência potencial. De alguma forma incontestável e inexplicável, acontecimento é um conceito imanente ao nosso tempo.
Talvez porque as formas genéricas dos campos artísticos tradicionais não estejam mais dando conta da complexidade das situações impostas aos criadores, muitos vem preferindo usar essa palavra. Muitos acadêmicos pensam tratar-se de arrogância contemporânea. Ora, que vão morrer pra lá. Mas há também aqueles que — dentro do próprio campo criativo — rejeitam toda construção conceitual, afastando-as como mero academicismo, quando na verdade a própria academia está muito aquém da sofisticação conceitual emergida da prática.
Nunca tive medo de conceitos. Eles são muito úteis na hora de dar nome a algo que até então não havia sido nomeado, e essa ação de nomear, nada mais é que a ação de sentir ou experimentar, construir ou desconstruir, e por aí vai. Ninguém leva à boca um pedaço de nada, ou um pedaço de alguma coisa; e, mesmo se levasse, esse nada ou alguma coisa seriam simultaneamente experimentados pelos nomes de nada ou alguma coisa. Sendo assim, amor, sensação e afeto, por exemplo, essas palavras usadas e abusadas no nosso “meio” (às vezes como cortina de fumaça para preguiças transcendentais), são igualmente conceituais. Porque, na prática, os conceitos funcionam como máquinas, além de produzir uma série de experiências, sensações e memórias.
Fiquei com aquela palavra na minha cabeça desde 2011, quando criei, junto ao Alvenaria, o espetáculo Fogueira. Já então, falávamos vez ou outra de acontecimento, mas este só foi irromper como evidência mesmo uns dois anos atrás, quando lia Heidegger. O alemãozão falava de uma tal clareira do ser. Olha só, que bela construção poética, no meio de uma filosofia tão intrincada. Esse é o tipo de frase que arruma tudo ao redor. Você está tropeçando num total breu intelectual, sentimental, existencial (aliás, não há diferença alguma) e, de repente, se bate com essa maravilha de simplicidade. E aí tudo se ilumina.
Para mim, a partir daquele momento, acontecimento seria uma clareira, uma abertura onde o ser acontece, onde o ser se dá. Simples assim. Hoje lembro de ter anotado, no rodapé da página, com aquele cuidado despretensioso que faz alguém escrever nome e ano na primeira página de um livro recém-adquirido, esse poeminha safado: Desperto/ na clareira/ dos tempos// O ser/ me abana/ seu rabo// Já tá tudo/ iluminado.
Como podem ver, acontecimento não é uma idéia, nem uma criação arbitrária, nem um quitute da contemporaneidade. Acontecimento é antes de tudo uma palavra que — por ela mesma — acontece. Algum dia brota, intimamente. Basicamente cria uma forma de ver mundos. A essa visão eu chamo, junto com Heidegger, de mundificação.
Durante o processo do História Sob Rocha, em 2015, dei um tempo e fui ao Capão. Lá, perambulei demais pensando nessa tal mundificação, feliz transformação de substantivo em verbo; em tudo via sua face. A mundificação pra mim era efeito e causa do acontecimento. Teatro, dança ou performance, essas seriam apenas algumas das suas possíveis materializações. Estava tudo por ser descoberto, e meu corpo sentia em tudo aquela presença iminente.
Anteriormente, lá na residência em Cajazeiras, Yuri Tripodi havia presenteado o grupo do História com uma imagem produzida no processo. Nela vemos três elementos distintos, em disposição geométrica contra um fundo negro, unidos por algumas características visíveis, outras nem tanto. O que me interessava, na ocasião, era esse “nem tanto”.
Três formas circulares: um rolo de arame, uma lua e um pneu. Essa é a disposição básica, superficial. Mas por que diabos essas três coisas dispostas numa mesma página? Por que não qualquer outra forma circular? Estava claro que a resposta não poderia ser encontrada num nível lógico, nem semiótico. A imagem só seria preenchida com a vivência de um olhar. O conjunto pedia por isso; era sua condição existencial. Existiu um olhar ativo que dispôs aquilo em imagem, e agora existirá outro que fará os elementos dançarem. A mundificação é o pressuposto do acontecimento. A lua, o pneu e o arame, de alguma maneira, mundificam quando se encontram com minha vivência, e a partir disso a imagem se torna um acontecimento. Só se revela no momento do encontro, brotado do complexo olho-página.
Então o espaço do acontecimento, a clareira da qual Heidegger falava, dava-se justamente num entre. Um ser só poderia acontecer a partir de um espaço entre, relacional. Daí me dei conta de que as estruturas às quais eu poderia chamar acontecimento possuíam ao menos uma constante: eram porosas. Não exatamente abertas, não com lacunas intelectualmente dispostas, mas preenchida de vazio em todas as suas dimensões. Daí a recorrência, em todos os meus trabalhos, da improvisação. Era a incorporação do acaso como fator constitutivo da cena. A visualização de uma estrutura assim teria o aspecto da esponja de Karl Menger, um cubo constituído por subtrações e não por adições e que, apesar de possuir superfície infinita, tem volume igual a zero. Um ser feito só de entres.
Portanto, não me interessava mais cristalizar formas finais. Bastava-me preparar dispositivos, terreiros, clareiras. Possibilitar. Entendia que dispor e redispor, mudar coisas e corpos de lugar, já seria o bastante para pôr a funcionar os complexos mecanismos do acontecer. Se tiro uma pedra daqui e a ponho ali, isso por si só já define uma série de outras transformações, das menores às maiores, de uma folha a um corpo, de um fio de cabelo a um cachorro, de um pneu à lua.
Por isso, durante minhas caminhadas e descansos no Capão, fiquei tão atento às pequenas disposições, usualmente invisíveis ao comportamento normal, agora tão flagrantes ao espírito. Munido de uma câmera ruim de celular, passei a fotografar disposições elementares (natureza + coisas humanas) que encontrava ao redor. Algumas me pareciam especialmente reveladoras de uma ordem outra, paridas de dentro do caos. Pareciam-me peças delicadas, plenas de sentido, e principalmente, intocadas pela ansiedade discursiva da contemporaneidade. Se eu pudesse levar aquilo pra cena, ao menos um por cento de tudo aquilo, já estaria mais ou menos satisfeito.
Então passei a anotar num papel as conclusões que fui tendo, paralelamente às fotos, observando o tempo e o espaço, o sentido outro das coisas materiais, suas relações, seus espaços entre, suas distâncias. A partir de agora é isso que ofereço à apreciação do leitor. Transcrevo aqui minhas anotações, um tanto enigmáticas pela própria ocasião da escrita, pontuadas por fotos precárias de micro-vislumbres, mas que naquele momento me pareciam tão eloquentes quanto qualquer espetáculo.
Hoje, nem eu vejo tanto em cada foto, mas ao menos as disponho a outros olhares, que talvez aí encontrem algo. Nas palavras, mesmo em suas lacunas, há alguma coisa que supera e ao mesmo tempo sublinha seu significado imediato; há aqui também um entre incorporado, e justamente, esse é o acontecimento que espero possibilitar. Agradeço a estadia na casa de Ci, Joaquim e Tereza.
(Ao longo do próximo texto, o restante das figuras,
dispostas mais ou menos como no arquivo em PDF)
disposições produzem disposição = reunião
de elementos
exposições – corpo
exposição = dispositivo de possibilidades – coisa
de acontecimento(s) – olhar
– estar
acontecimento é com isso cria-se um lugar
disposição do olhar
+ dos corpos
+ dos objetos
abrir um campo
de imprevisibilidade
rumo a novas disposições
estar disposto
é estar aberto e abrindo
atento
mas a exposição (dispositivo do acontecimento)
nem significa
mas produz
produz porque
é
é, é ser
acontecimento não é fantasma a fotografia
fantasma também é entre é a exposição
mas acontecimento é excesso imprevisível ou melhor
e fantasma é imagem repetida a captura
eco de um acontecimento morto do acontecimento:
que surge como possibilidade revela a lógica ilógica
dentro da imprevisibilidade
o fantasma quer sempre ficar
repetir-se
toda imagem/palavra
histórica
é fantasma
eco de uma explosão nas montanhas
mas
objetos-memória
é engajar
fantasmas
em novas possibilidades
de acontecimento
repetições
diferença