Selfie | Audiovisual


CEO III - Márcia Tiburi - (Acrílica sobre papel)

Quem você é?”, minha filha me pergunta sempre que a gente vê qualquer filme ou desenho animado. Eu sou a Sol” (dos Detetives do prédio azul), eu sou a Macha” (do extraordinário desenho russo Macha e o Urso), eu sou a Elsa” (de Frozen), eu sou o Harry Potter e a Hermione”, ela me diz num tom triunfante, com uma certa pressa, para escolher primeiro suas melhores” personagens antes que eu nem sequer tenha tempo de pensar no assunto. 

Mas filha, eu tenho mesmo que ser alguém?! Não posso curtir o filme sem me identificar com nenhuma personagem? A projeção narcísica é mesmo a única forma de gozar? Você não sabe que o distanciamento crítico é muito mais legal que a identificação empática? Você não nasceu brechtiana, porra?”, eu penso. 

E respondo na lata: Eu sou o Severino”, Sou o Urso”, Sou a Ana”, Sou o Voldemort”. 

Elisa tem 5 anos. Elisa ri. E acha que se deu muito melhor do que eu. Não sabe que eu tenho uma coisa que ela não tem: uma filha chamada Elisa. 

Rá! Agora quero que você me diga quem se deu melhor!”, concluo, de forma sublimemente madura. 

 

*

 

No dia 26 de fevereiro deste ano, a imprensa divulgou amplamente o aniversário de um ano do primeiro diagnóstico de Covid-19 no Brasil. Entre março de 2020 e fevereiro de 2021, segundo a pouco confiável estimativa oficial, já são mais de 250.000 mortos. Apenas entre o dia em que comecei a escrever este texto, há menos de uma semana, e este exato momento em que faço sua revisão final, a contagem passou de 254.942 para 265.411 mortos.

Não obstante esse inominável sofrimento coletivo, 2020 foi um dos melhores anos da minha vida. 

Justapor de forma sem dúvida brutal esses dois fatos tão contraditórios me causa enorme mal-estar. Será indiferença com os milhões de mortos mundo afora dizer que 2020 foi um dos melhores anos da minha vida? Não reside aí uma imperdoável falta de empatia com o sofrimento alheio? Alguém pode mesmo ser feliz enquanto milhares de pessoas à sua volta adoecem e morrem asfixiadas?

Qual é a relação entre a felicidade pessoal e a coletiva? Entre a vida invisível de um sujeito e a vida hipervisível de uma sociedade que, hoje, sofre espetacularmente nas manchetes dos jornais, nos reality shows e nas timelines

Atestar que existe uma certa independência entre a felicidade pessoal e a felicidade coletiva leva inexoravelmente à conclusão (cínica!) de que, no fundo, ninguém se importa de verdade com os outros? A compaixão (que é como os carolas entendem a empatia de Brecht) é mesmo só mais uma mentira cristã? Ou ela teria um real alcance civilizatório?

O prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado”, dizia Brás Cubas, denunciando como o altruísmo sempre foi uma forma de egoísmo. Mas Brás Cubas era um canalha. Eu sou um canalha quando sinto que 2020 foi um dos melhores anos da minha vida?

 

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Quando Daniel Guerra, editor da Barril, me convidou para escrever este relato autobiográfico sobre as minhas experiências no campo do audiovisual ao longo da nossa quatrocentena, prometi ser sincero. Não a ele, claro, que isso não é coisa que se prometa a um editor. Mas a mim. E também a você, care leitore. Vou dizer a verdade. Toda a verdade. Nada além da verdade. So help me, God

Como é feio falar de boca cheia, vou cortá-la em pequenos pedaços. 

Ei-los.

 

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Ah, peraí. Última ressalva: para que a verdade soe convincente, aviso logo que vou ter que mentir um pouco. Como aprendi com um outro Guerra pouco tempo atrás, pobre da verdade que não se estrutura segundo as convenções habituais da ficção. O trecho está lá em Guerra e paz, do Tolstói. É um pouco longo, mas vale a pena:

Depois que começou a contar, a história ficou cada vez mais animada. Contou-lhes o seu incidente em Shöngraben exatamente como os que participaram de uma batalha costumam contá-la, ou seja, da forma como eles gostariam que fosse, da forma como eles ouviram outros contarem, pois assim era mais bonito contar, embora fosse completamente diferente do que de fato havia ocorrido. Rostóv era um jovem sincero, não contaria mentiras de propósito, de forma alguma. Começou com a intenção de contar tudo exatamente como havia acontecido, porém, de modo imperceptível, involuntário e inevitável, passou para a mentira. Se contasse a verdade para seus ouvintes, que, como ele mesmo, já tinham ouvido muitas vezes relatos sobre os ataques e já tinham formado uma ideia bem definida do que era um ataque e esperavam que o relato fosse exatamente daquela forma – ou não acreditariam nele, ou, o que seria ainda pior, pensariam que Rostóv era o próprio culpado de não ter acontecido com ele o que acontece em geral com aqueles que contam ataques de cavalaria. Rostóv não podia lhes contar simplesmente que todos saíram a galope, que ele caiu do cavalo, deslocou o braço e, com todas as suas forças, correu para a floresta, fugindo dos franceses. Além disso, para contar tudo como havia ocorrido, era preciso fazer um grande esforço contra si mesmo, a fim de contar só aquilo que havia ocorrido. Contar a verdade é muito difícil; e os jovens raramente são capazes disso. Esperava-se o relato de como Rostóv ardera todo em chamas por dentro, sem sequer entender o que fazia, e como voou como um tufão contra o quadrado inimigo; e como abriu caminho à força entre eles, golpeando à direita e à esquerda; como o sabre provou a carne e como ele caiu de exaustão, e coisas semelhantes. E Rostóv contou-lhes tudo isso. 

*

 

Bernardo, 14 anos, a outra criatura para quem transmiti o legado da nossa miséria, rapidamente se cansou de Breaking bad, a série que me propus a ver em sua companhia, movido por aquele imperativo moralista de ter algo a compartilhar com o meu filho adolescente”. Eu estava gostando de ver a saga de Walter White pela segunda vez – não deixa de ser contundente usar o câncer de pulmão como metáfora para uma crise de meia idade”, quando contemplamos a ruína de todos os nossos sonhos de onipotência e juventude eternas. Em tempos antropocenos de asfixia por Covid nos quais eu próprio me aproximo da meia-idade – na verdade, uma amiga me diz que eu já passei da meia-idade há muito tempo, ou tu acha que vai viver 90 anos fumando e bebendo desse jeito?!” –, a doença de WW ganha ainda outros sentidos. Mas Bernardo logo se desinteressou daquele professor de química cinquentão – “isso é papo de coroa, velho!” – e me propôs uma outra série: O mandaloriano, espécie de spin off de Guerra nas estrelas. Stendhal dizia que não existe o amor. Só provas de amor”. Aceitei a sugestão do meu filho.

O argumento da série é, como sempre, massarandúbico (lembra daquela personagem de Claudio Manoel em Casseta e Planeta ?): guerreiro indestrutível mata centenas de pessoas como se isso fosse apenas natural (isto é: eticamente inevitável e sexualmente excitante) para, no final das contas, após ser salvo da morte certa inúmeras vezes por roteiristas que odeiam Aristóteles (verossimilhança já era, mano!), realizar a missão impossível. 

 

(Tantan tantantantan tantantantan tantantan

 Tiururu tiururu tiururu ruru  

Tantan tantantantan tantantantan tantantan… 

Entra na banda sonora deste texto a musiquinha do filme estrelado por Tom Cruise).     

A missão impossível do guerreiro genocida era combater sozinho todo um exército (na melhor tradição de Arnold Schwarzennegger em Comando para matar, 1985) para conduzir um bebê (versão miniatura do finado Mestre Yoda dos filmes originais) até um cavaleiro Jedi que pudesse ensiná-lo a manipular mentalmente a força” – essa espécie de energia cósmica meio hippie que só podia mesmo ter sido inventada por um roteirista anos 1970. 

Ocorre que, segundo outro clichê de produções do gênero, o porradeiro fascista cai de amores pelo fofíssimo Yodinha, com quem começa a desenvolver uma relação de pai e filho. É a velha mentira ideológica denunciada por Zizek: a de que torturadores e assassinos podem ser simultaneamente bons maridos e pais, como se, depois do expediente”, suas máscaras pudessem ser trocadas sem contaminação ou fissuras. Fazendo referência àqueles programas de humor estadunidenses em que, após cada piada, ouvimos um riso enlatado” (canned laughter) que nos dispensa até mesmo do esforço de rir, nos garantindo uma passividade quase perfeita, Zizek fala em um “ódio enlatado” como fundamento social do comportamento de figuras como Adolf Eichmann e Jair Bolsonaro. Ambos realmente só podem fingir que não são responsáveis pela morte de milhares de pessoas porque funcionam como ímãs ou catalisadores de ódios e ressentimentos sociais que eles nem sequer precisam se dar ao trabalho de sentir subjetivamente. Não precisam esfregar as mãos nos bastidores (como o Ricardo III de Al Pacino em Looking for Richard, 1996) nem espumar de ódio para, como quase fantoches de forças que os ultrapassam, disseminarem o ódio em suas ações e omissões. (Esse raciocínio, temo, vale mais para a banalidade do mal de Eichmann que para a variante perversa do neofascista Bolsonaro).

Vendo essa série com meu filho, uma pergunta atravessou na minha garganta como uma espinha de peixe: diante de uma Hollywood que se globalizou, capilarizou, miniaturizou (cada pequeno telefone celular é um grande estúdio”!) e jamais superou John Wayne (o miliciano que por alguma razão inexplicável passa a defender os direitos humanos, como John Ford radiografou brilhantemente em O homem que matou o facínora, 1962), como estranhar as vitórias de Trump ou Bolsonaro? E mais: como trabalhar para que elas não se repitam num mundo em que latinhas de ódio” não são apenas as mercadorias mais rentáveis da indústria cultural, mas também as mais fáceis de produzir com reles telefones celulares? 

 

*

 

Desculpe, eu tinha prometido não enveredar por essa filosofia política de botequim neste texto. Pensei em suprimir a seção anterior. Mas desafio a atirar a primeira pedra quem não cultivou morbidamente pensamentos semelhantes sobre a nossa falta de saída como país enquanto, durante a quatrocentena, engordava consumindo notícias e produtos culturais.

 

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Momentos com meus dois filhos como os que acabo de descrever dificilmente teriam acontecido antes que a pandemia me desse uma coisa que não tinha há muitos anos: ócio. 

Uma espécie de vácuo se instalou nos dois primeiros meses. 

Para quem não separa vida e trabalho, tirar férias é falta de caráter. As férias sempre me pareceram uma espécie de morte, um para aí a vida pra eu descer”, um jeito de comprar uma passagem para aqueles paraísos artificiais estampados em posters de agências de viagem quando agências de viagens ainda existiam, uma forma de mentira ou evasão bem parecida com esse papo de vida depois da morte”. 

Na sua última entrevista, Clarice Lispector diz que, quando termina um livro, morre, e sublinha que ali, naquela entrevista, estava morta…

Vácuo, eu dizia, não férias. Vácuo, não morte.

Fisicamente, vácuo implica falta de gravidade? 

Quando penso em vácuo, penso no pequeno passo” de Neil Armstrong na Lua, vejo a risonha dança da morte no final de O Sétimo Selo (1957), sinto cada terminação nervosa do meu corpo envolta pelo abraço quente de uma banheira de espuma de motel.  

Naqueles dois primeiros meses, com o privilégio de uma casa para morar, o salário de professor caindo regularmente na conta e as ótimas companhias de Louise, Bernardo e Elisa, foi uma sensação de estrangeiramento radical de repente conseguir ficar sem trabalhar e ao mesmo tempo sem sentir que eu estava morto ou, pior, devendo alguma coisa para alguém. (A Universidade, como algumas religiões, é uma fábrica de produzir dívidas infinitas.) 

Para além da minha habitual rotina de trabalho, haveria então uma estranha forma de vida, para mim antes desconhecida? Uma vida invisível como a das plantas, que antes eu mal notava e logo passei a regar diariamente? Uma vida invisível como a das amebas em Cega obsessão (1969), obra prima da nouvelle vague japonesa? Uma vida independente de quaisquer imagens de trabalho e realização? De qualquer significado?! De toda finalidade produtiva? Uma vida de objeto não identificável? Uma vida de lagartixa esparramada sob o sol? 

Porra, que descoberta!   

 

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Sobre a origem do nosso nome de família (Pessoa), sempre concordei com meu tio Fernando. Achava que minha máscara (Persona) estava colada à face e que já seria tarde demais para tirá-la. 

Pensava que, como o mandaloriano da série da Disney, estava condenado (por fado ou promessa) a viver com uma intransponível armadura de béskar, confinado em uma pele tão espessa quanto a do comerciante malaio Shlink sonhado por Brecht em Na selva das cidades, primeira e única peça que fiz como ator. 

Só que não.

2020 me ensinou que não preciso me identificar com o mandaloriano. Ufa!

E nem mesmo com Walter White.

Me desculpa, Elisa, mas em 2020 curti mesmo é ter sido Personne, ninguém. Um Pessoa, Ninguém (salve, Arnaldo Antunes!), dissolvido numa vida invisível (salve, Karim Aïnouz!).

E, para mim, isso fez toda a diferença (salve, Robert Frost!).

(Mesmo que, para os que sofreram na carne com o vírus, apesar do meu rigoroso isolamento social, lamentavelmente isso não tenha feito diferença nenhuma.)

 

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Rostóv, creio, sorri agora com a minha obediência a seus preceitos de narrador. Espero que você também, care leitore.

 

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Entram na banda sonora deste texto aquelas frequências sonoras de que David Lynch usou a abusou ao longo de sua obra. Barulhos de estática, como os de televisores antigos sem antena, agarram as nossas vísceras até serem subitamente sugados. 

E o resto é vácuo.


Patrick Pessoa é filósofo, crítico, professor e dramaturgo.

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