Crítica | Cênicas


Muha Bazila

A UM PASSINHO DO CÉU

março de 2018

Edição: 19


Sobre o espetáculo “Favela digital” da Companhia Passinho Brazil

Embora o pensamento objetivista não reconheça o sujeito da paixão como o sujeito do conhecimento, qualquer um que já se sentiu afetado sabe: é muito mais fácil escrever se alimentados por amor ou ódio. Morno, a galera vomita, avisara-nos o Inri Cristo. Seja qual for o polo do espectro da paixão, ninguém poderá levar a tarefa do conhecer a fundo sem ter sido tomado por sentimentos intensos. Diante do estado de pathos, aquilo que se origina nas entranhas revolvidas – seja admiração, inveja ou desprezo absoluto – terá na dominação da vida mental o destino certo na geografia do corpo. No Kemet[i]  levavam-se as vísceras mais a sério que o cérebro; ele que fosse descartado pelo nariz, ora. Primordial era mumificar fígado, timo e tripas para o além-mundo.  Olhando assim, o baixo-ventre teria mais poder sobre a pena crítica do que sonhara por tanto tempo nossa vã filosofia.

Desde que assisti Batalha do Passinho – O filme (2012), dirigido por Emílio Domingos, tomei em altíssima conta o Passinho[ii], e considero suas manifestações no mais alto patamar de potência das danças produzidas hoje no Brasil. Portanto, a reboque, comecei a amar de amor ingênuo o espetáculo “Favela Digital” da Companhia Passinho Brazil antes mesmo de sair de casa para vê-lo. Escolhi a obra para inaugurar minha presença neste espaço justo por invejar as críticas de verve entusiástica, as capazes de enfeitiçar aqueles que as leem na direção do amor e do êxtase por objetos com que nem sequer tomaram contato. Aristóteles sabidamente legou seu tratado das paixões à Retórica, muito a par da capacidade do orador em suscitar ou pacificar paixões em sua audiência. Imaginei-me escrevendo períodos extensos e alegres, cada palavra parecendo tributária e devedora da experiência cênica anterior. O desejo de escrever uma primeira crítica, (que sorte se a primeira pudesse ser assim) em que tudo parecesse ter a medida inequívoca e cujo ritmo de palavras fizesse jus ao ritmo da respiração do meu objeto de amor. Aquele entusiasmo abrigado em exclamativas que chegasse a flertar com a armadilha da indizibilidade da dança: “Não tenho palavras para descrever o já dito no discurso dançado…!”, no fundo, só artifício batido para disfarçar o corriqueiro “iletrismo no gesto”[iii] que acomete boa parte da nossa crítica especializada. Para esse primeiro objeto crítico de dança, tudo que eu queria era bater na visão intelectualista do pensamento crítico, pois é na paixão que se pode realizar uma reflexão por inteiro, uma vez que, nela, “espírito e corpo seriam uma só e mesma coisa”[iv]. Qual melhor forma de fazer reflexões sobre uma obra de dança sem parecer que o acontecimento deva algo ao trabalho intelectual que lhe sucede e que o faz, muitas vezes, embotado de desprezo? Não parecia haver maneira melhor do que tentando provar a natureza carnal do juízo de gosto – do qual a crítica é um resíduo – senão através dum relato reflexivo quase obsceno de paixão.

                                                                                              […]

Spectaculum, specere, spectator, spectatoris, sperare

Expectativas reduzidas de imediato, ao constatar a óbvia precariedade infraestrutural do palanque de banda que faz as vezes de palco no espaço da Caixa Cultural, na Av. Carlos Gomes. “Eros vai ter de esperar”, pensei. Os dançarinos me aparecem, por sua vez, todos talentosíssimos; facílimo amá-los, moleques sinistragem mesmo, cuja inexperiência se fazia notar somente na preocupação em gerir o diminuto espaço de cena que a parca luz mal conseguia recortar. Sem coxias, víamos os garotos transitarem entre os estados dentro e fora do espaço/espírito cênico. Admitidas essas condições iniciais pouco promissoras, soa um estribilho funkeado, aparentemente extraído de um Tim Maia. Os garotos entram no palco e iniciam a clássica coreografia em linha de baile black das antigas. Nesse momento, a obra quer me dizer algo, quer evocar a filiação daquilo que vamos conhecer hoje. E é um dos raros momentos em que o espetáculo se/nos dá a delicadeza de se mostrar sem o afã de me explicar tudo.

Considerando o espetáculo “Favela Digital” naquelas condições de temperatura, pressão, iluminação e videomapping[v], a coisa toda me pareceu pensada no esquema made in Brazil para gringo ver. E do que o Brazil com Z é feito? Em primeiro lugar, de Rio de Janeiro, é claro, a metonímia preferida do Brasil no exterior. Se o problema da identidade nacional volta e meia assola a dança para perguntar quem somos, quem podemos ser e o que há de genuíno em nós, o trabalho responde a essa pergunta-esfinge compilando os elementos que crê fundamentais da estética-favela. O passinho, enquanto subproduto da cultura do funk, seria o perfeito representante dessa estética, reunindo alegria, a suposta pobreza, exotismo e criatividade brotada em meio à violência, todas no mesmo velho pacote. Um dos dançarinos, o que aparece como protagonista da peça,  toma o palco com um microfone, como um MC, entre uma coreografia e outra. Evocar a figura do mestre de cerimônia, um dos pilares no movimento hip hop, soa uma boa ideia, mas na prática não funciona nem como estratégia de transição de cenas, tampouco para recriar o ambiente do baile funk. Há os raps autorais com direito a legendas no telão pra audiência cantar junto, cujo conteúdo contempla a competitividade presente nas batalhas (embora seja um símbolo distante na obra, não aparece senão por essa menção longínqua) e a importância do dançar na vida daqueles garotos; não esquece a humilhante instituição “baculejo”como evidência do impacto das UPPs na vida das comunidades cariocas, e o orgulho dum suposto suingue natural dos corpos negros.

Se a aparição e desenvolvimento do passinho carioca nos deixa ver quão digital é a favela, no espetáculo, o adjetivo que lhe serve de sobrenome diz respeito exclusivamente ao  trabalho de videomapping. A projeção acompanha quase como um cenário dinâmico toda a duração da obra e, na maior parte do tempo, parece apenas legendar as cenas num didatismo superficial. Não aprofunda muito a relação entre as culturas de periferia, juventude, dança e a Internet. E, infelizmente, abre mão de mostrar além dos clichês. O que era  uma promessa de paixão, das que te faz demorar no banho e passar perfume envolvente,  acabou se materializando num encontro morno. E a respeito dos acometidos de espírito ou opinião mornas, creio estarmos de memória fresca do conselho antináusea cristão.

[…]

Mesmo nos agitos ou festas […] Eu me alimentava literalmente da dança dos outros. Eu me colocava no meio da multidão e comia as danças das pessoas. Eu mudava de espaço na medida em que os estados de corpo me parecessem menos interessantes. Nas boates, procurava os bons dançarinos para ficar do lado deles e engolir, devorar a relação deles com a música, no corpo.

O excerto acima é de uma série de relatos de dançarinos retirado do texto “Histórias de Eros”[vi] e toca num aspecto importante do desafio de transpor fenômenos populares para uma formatação cênica. Nessa tentativa de tradução de uma natureza para outra, há alguma coisa viva que é facilmente abandonada no caminho, algo que tem que ver com isso de comer a dança dos outros. Após o espetáculo, as meninas do AfroRagga foram chamadas a dançar e a batalhar no palco com os garotos do Passinho Brazil. Ali, a noite teve parte de seu brilho devolvido, porque só naquele momento a dinâmica de improviso própria do ringue rítmico não estava sendo representada – ela acontecia. Ali cabiam a galhofa, a provocação e um diálogo com as respostas do público, já abandonando seus lugares de espectador e circundando os batalhantes como podiam, com seus urros, vaias, aplausos e gargalhadas. Ali apareciam as assinaturas nos modos de mover, surgiam pathos e os temperamentos de cada dançarino. Ali se viam as escolhas em tempo real com todo mundo devorando como podia as informações do ambiente. Os desafios de constituir uma companhia com corpos cujo treinamento apontam para uma aprendizagem bem distante das pedagogias tradicionais de aulas no estúdio passam por evitar enquadrá-los na uniformidade tradicional presente no ideário de uma companhia de dança. Passam por evitar deixá-los cair na estabilidade em que as assinaturas tendem a se dissolver. Diante do alto índice de especialização e singularidade daqueles meninos,  pergunto:

Eros cabe na fôrma de Apolo?

O metiê do dançarino profissional, nesse caso, pode se tornar alienante se a repetição do gesto reduz os movimentos de seu imaginário. Mas ora, se dançar é – entre outras tantas coisas – dar de comer à imaginação, a minha não saiu de barriga cheia. E, graças ao fim da noite, também não saiu esfomeada.


[i]  Kemet é a transliteração da sequência de hieróglifos usada pelos antigos egípcios para chamar sua terra. Pode ser traduzida como  Terra negra ou Terra de negros .

[ii] O fenômeno do passinho nasceu e ganhou força graças ao acesso maciço dos jovens da periferia carioca à Internet quando, à certa altura de 2008, um garoto postou no Youtube um vídeo caseiro batizado “passinho foda” com um jeito diferente de dançar funk. Há ali uma espécie de proto-passinho, ainda não acrobático e espetaculoso. O material obteve recorde de acessos imediatamente (na casa dos milhões de views). Quem acessava o conteúdo começou a gravar vídeos em resposta àquele modo de dançar arriscando fazer melhor. Tornou-se febre nos bailes funks das comunidades do RJ até que as batalhas, antes circunscritas aos domínios do digital, tornaram-se também presenciais. O modo de dançar, muito dinâmico, incorporou rapidamente elementos de samba, frevo, dribles de futebol, capoeira, passinho do romano, break, crump etc.

[iii]Expressão usada por  Isabelle Launay na compilação de textos “Leituras do Corpo”, organizada por Christine Greiner e Cláudia Amorim. Editora AnnaBlume, 2003, São Paulo.

[iv]Excerto extraído de “Os Sentidos da Paixão”, organizado por Adauto Novaes. São Paulo: Ed. Companhia de Bolso, 1987.

[v]Pesquisando outras  exibições do espetáculo na plataforma Youtube, sem o videomapping, num palco de proporções razoáveis e sem os conectivos de cena apresentados em Salvador, a obra se sai melhor, soa muito mais viva e instigante. E uma vez os mecanismos explicativos ausentes, podemos nos relacionar com ela de maneira mais aberta.

[vi]Greiner, Christine e Amorim, Cláudia (org). Leituras do Corpo. São Paulo: Editora Annablume, 2003.


Alana Falcão é dançarina, professora e dramaturgista

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