Treta | Cênicas


Foto de Elenize Dezgeniski

A REVOLUÇÃO SERÁ LIMPINHA

abril de 2016

Edição: 3


A partir do “Projeto Brasil”, da Companhia Brasileira de Teatro

 

Uma das melhores coisas das colunas Selfie, Rizoma e Treta é que nelas não sou obrigado a justificar nada. Só teria que dar minha idéia, na lata. Entretanto, inicio com um prelúdio a la Pero Vaz de Caminha.

A nossa revista deveria pensar exclusivamente produções locais, tanto pela necessidade interna do campo quanto pela possibilidade de gerar diálogos. Mas constatando de maneira cada vez mais clara que arrancar pensamentos, idéias e críticas dos artistas dessa terra é quase sempre um milagre, e não querendo me aproximar nem um pouco dessa interlocução de fachada que é o meio-elogio, a meia-simpatia e o meio-afeto, permito a mim mesmo transgredir a regra criada pelo editorial. Capturo portanto um pássaro estrangeiro que por aqui pairou, na esperança de que esse encontro valha para além de sua especificidade efêmera. Isso porque não vi nada na agenda da cidade que valesse uma treta, mas também porque aquelas produções que mereceriam ser tretadas já possuem a avacalhação por fundamento (o que constituiria redundância), e principalmente porque o objeto do presente escrito me afrontou com olhos de lince.

Treto, portanto, com os habitantes de um lugar muito, muito distante, abrindo a partir daí um panorama maior, brotado da vivência nos nossos tempos. A passagem da Companhia Brasileira de Teatro pela província de São Salvador confirmou-me o quanto o sul do país pode ser tão distante de nós quanto o Japão. Graças à experiência vivida esta noite, me dei conta que, confrontado um mapa, saberei exatamente onde fica a terra do sol nascente, mas dificilmente apontarei de primeira a elegante Curitiba. Estes chiquérrimos companheiros de ofício trazem ao povo nordestino um espetáculo chamado Projeto Brasil. Entendamos portanto esse Brasil projetado.

Enquanto escrevo, há no Senado uma votação sobre o destino da presidenta Dilma Rousseff. Por outro lado, na internet, parece que se criou, concomitantemente a uma assunção generalizada da tagarelação sobre assuntos políticos, uma classe de gente que se sente no dever de educar, catequizar e introduzir-nos na burocracia democrática. É como se, nos dois casos, a única forma de luta estivesse encerrada no miserável jogo dos acordos, memes e leis; e subitamente, tanto os parlamentares quanto os vermelhos e verdeamarelos, transformam-se todos numa legião unificada de legalistas ferrenhos. Compartilham linguagem, estrutura e campo de coordenadas. É estranho pensar que em plena, flagrante e espetaculosa derrocada de todo um sistema representativo, a crença neste mesmo modus operandi como única via tenha aumentado de maneira assombrosa. Então, naturalmente, existe uma grande parcela dos artistas — essa gente propícia por definição — que incorpora tais formas de articulação. Retrucam sobre leis justas, direitos, representatividade, vontade do povo etc, como se nenhum destes termos se excluísse diretamente, ou como se o raio de ação esteticopolítica se restringisse a esses parâmetros. Tudo faria crer estarmos, inescapavelmente, num estágio último da evolução política. Portanto, não nos assustemos quando a constituição brandida pelas mãos endiabradas da advogada do golpe for a mesma levantada pelos defensores da democracia. É uma questão de estética.

Se a intenção do espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro foi refletir essa dinâmica, acertou em cheio. O começo do espetáculo é embebido em legislação. Todos trajados com esse minimalismo elegante e contemporaneamente tardio que é o pretinho básico, oferecem-nos  — logo a nós, o povão — uma cachaça nada convidativa. Sei lá, tudo soava como uma festinha classe média-alta. E então dão início a um blá blá blá cravejado de legalidades, que se de início parece engraçadinho, depois dá lugar a um hino à Lei que faria Kafka corar. E não contentes em recitar a lei de cabo a rabo, olhando nos nossos olhos com aquele ar de intimidade que só os melhores charlatões conseguem produzir, põem-se a sublinhar tudo de novo, mas agora com o corpo, primeiro beijando-se cheios de paixão teatral e depois distribuindo besos calientes na platéia, que atônita, não sabe se permite ou recusa tamanha demonstração de afeto forçado. Slogan:

Tudo faria crer estarmos, inescapavelmente, num estágio último da evolução política. Portanto, não nos assustemos quando a constituição brandida pelas mãos endiabradas da advogada do golpe for a mesma levantada pelos defensores da democracia. É uma questão de estética.

“Celebramos a livre união & a diversidade”. Mas ironicamente, a cena toda se passa como um apelo persuasivo à Família e à Constituição, ao qual só faltaria Deus para que tivéssemos o triângulo perfeito — tão pacífico e harmonioso quanto as ilustrações evangélicas da Bíblia.

Esse progressismo miguxo — nossa enfermidade conjuntural — vai atravessar todo o espetáculo, brotando aqui e ali de variadas formas, porém o mais assustador de tudo é o tom pedagógico (outra doença grave). O ápice dessa sensação dá as caras no meio da peça, quando achei que testemunhava a Primeira Missa do Brasil. Depois de executar uma imagem-bonita-de-difícil-definição-em-cima-de-um-palco-giratório-envolto-em-fumaça, um dos atores aparece ao microfone recitando em espanhol um discurso político talvez originalmente falado pelo democrata modelo, José Mujica. Mas como para selvagens deve-se sempre sublinhar as coisas, presenteiam-nos com mais uma legenda, desta vez num telão acima do ator, onde a peça retórica é traduzida simultaneamente para o português. Depois de uma eternidade o ator finalmente pára de falar, a luz baixa e ficamos todos olhando para o telão lá em cima, onde continuam a passar as palavras humanitárias que el uruguayo costumava proferir. Na atmosfera pesava o mesmo silêncio grave que os nativos devem ter feito frente à primeira cruz de madeira do Brasil. Quanto a mim, sentia um sono ostensivo. As palavras finais tinham algo a ver com destruição ou salvação do mundo, o que — seja nos quadrinhos ou na macro-política — dá sempre no mesmo.

No mais, há a exploração incansável de um tipo de tônus usado e abusado em produtos cênicos de qualidade. Já existe um padrão contemporanóide universal (e como sabemos, universal é sempre europeu ou norte-americano) que consiste no seguinte mandamento: faça o que quiser, contanto que não esteja ali. É a famosa dignidade da cara-de-nada. É assim que a cena do estupro da mulher é de uma esteticidade gratuita, é assim que as quedas e lapsos desconstruidões soam tão coreografados, é assim que a cena da festa ébria desiludida, em vez de parecer brotada da desilusão geral, vem na verdade da cobertura de um edifício em Copacabana. Finalmente, foi assim que o signo da cachaça me chegou como champanhe e a tinta preta simbolizando sujeira soava tão limpinha. Eis o espírito dos tempos.

No projeto de Brasil proposto pela Companhia só existem brancos e índios (infelizmente a alteridade local mais distante, e portanto mais segura). O negro não dá as caras. Ao final o grupo nos diz, numa voz em off, misteriosa como vinda de um deus do black-out, algo como: “Só quem pode entender é o homem nu. Ele flutua no ar”. Ora, com toda certeza esse homem nu não é o mesmo de Viveiros de Castro ou Levi-Strauss, o primeiro um anarquista confesso; está mais pro bom selvagem dos tempos clássicos. E é claro, esse bom selvagem, o homem nu da Companhia, continua flutuando no ar, leve como uma idéia distante.

Enquanto isso, aqui na Terra, especificamente em Salvador, onde uma população negra leva bala todos os dias, os cidadãos e cidadãs, vestidos, seguem suas vidas para além do teatro. E durante a escrita desse texto, depois de apenas duas páginas e dois dias, o Senado já havia decidido: num golpe de leis, o país está tomado.

2018 | Revista Barril - ISSN 2526-8872 - Todos os direitos reservados.