Ensaio | Música


montagem sobre foto de Leo Aversa (divulgação)

A revolta dos cururus

outubro de 2021

Edição: 22


Resenha-canção do álbum Síntese do Lance (2021), de Jards Macalé e João Donato

 

Cuidado, tem dois velhos atrás da moita.

Juro. Dois velhos. Pelados.

Cuidado, esses dois velhos atrás da moita sobreviveram ao NVJ i.e. novo vírus da juventude e agora estão emanando partículas de cafonice.

E não tô falando apenas das pelancas expostas na capa do novo (velho) disco; não apenas do épico bonezinho; não apenas das tetas flácidas, ostensivamente reais.

Não, os dois velhos pelados atrás da moita vieram com todos os seus metais espetáculo-seculares: uns trompetes gemem; outros tossem; os sax se arrastam transtemporalmente — dos porões escuros da tropicália-DOPS às ondas superfici-digitais do ôjurduí — soando nos pavilhões dos nossos ouvidos feito lesmas radioativas.

Meu deus, o pianinho. O pianinho, deus meu.

O piano-fim-de-festa, meu pai-amado. E agora José. Piano temperado na brilhantina. Sem filtro porém. Brilho coado pela sujeira da lente. Ou por uma lente das-antiga.

Dá pra ver, várias vezes, no vácuo do entre-faixas, Ray Conniff redivivo; chega bailando e sorrindo para apresentar — batuta caquética, dionisíaco-autoritária, na caquética mão — cada gloriosa canção deste bailinho.

Mas principalmente, cuidado com a bola-de-espelhos imaginária. Seus raios são mortais; ela gira desde a década de oitenta, mas não a década de oitenta d’agora, tô dizendo a década de oitenta de Jards e João, essa mesmo.

E olha ali o uisquinho, e um podrão meia-bomba apoiado na boca. Cafonice nua-e-crua.

Kenny G, escutando o sax dos dois senhores, chora, pas-sa-doh, na cova — aliás, Kenny G tá na cova? Não importa. Out of story.

Enquanto tomo carona no Côco Taxi — escrevo escutando — lembro que um amigo, recém-convertido à Igreja do Contemporâneo (a transição foi lenta, mas fatal), começou a usar a palavra “cafona” pra tudo.

É que segundo a novafala 2000, um gesto pode ser cafona; uma frase: cafona; uma música: cafona; um penteado: cafona; uma peça: cafona; um tema: cafona; um texto: cafona; um relacionamento: cafona; and so on (esse tique de S. Zizek, o mestre da cafonice emancipada, camisa-por-dentro-do-jeans e tênis-de-corrida, sacoméqueé).

Então o Côco Taxi me deixa na faixa Cururu. Durante o curto trajeto, ouço três músicas do Síntese do Lance: todas cafonérrimas.

Jards e João não pegaram leve. Tiveram coragem de dizer não. Ou preguiça do sim.

No mais, é mesmo o que Jards canta: não.

Numa faixa lá. Escuta pra ver.

Não, me desculpa. Jards não canta. Faz tempo, aliás, que Jards não canta. Ele se recusa a cantar. Lembremos: ele é Silva e veio da selva. Selvagem, Jards cospe; gargareja; grita; gagueja; funga. Tudo, menos cantar. Ele diz não, é isso. Entorta o baba. Baba linguagem.

Sapo Cururu, na orla do Rio.

Ou um show que fui lá em Sampa, tem uns aninhos aí, e Jards já velho, velhão. Sentado na cadeira. Quase uma revolta. (Ou corpo-revolta, tipo Bienal).

A cadeira era giratória. Ele girava na cadeira giratória. Revoluções. Nos dava as costas. Muitas vezes. Incontáveis. Chorei litros e ele nem-aí, gargarejando poesia. Porco cuspindo pérolas. Grunhidos. Isso. Jards grunhe.

Jards-A-Voz-do-Brasil. Não The Voice.

Aí vem a pianola elétrica de João. Pê-cun-pê-cun-pê. Já sabe.

Daí vem a voz de João. A dobra da dobra dos ensinamentos moribundo-apocalíptico-fantásticos de um Nelson Cavaquinho.

“Tu não canta, padawan — falava-lhes Nelson —; tu fala. Aliás, tu fala que vai cantar mas canta falando. Aí tu canta que vai falar mas em vez de falar tu sussurra. Mas em vez de sussurrar tu pensa. Tu pensa. Tu pensa, tá ouvindo. Resumindo é assim ó, prestenção: você fala que vai cantar fala que vai sussurrar sussurra que vai cantar mas não canta nem fala nem sussurra, você pensa, irmão, pensa. E às vezes, fala. E às vezes canta, porque eles gostam. Sacou. É isso”.

Paulinho da Viola escutou isso também. Mas fez outro babado. Ele pensa cantando.

É a vida, a vida. Quer mais? A vida. É isso.

Que nem tiro dos Racionais. Plau plau plau.

A morte.

Que é que tu quer, dotô (mas quem nos lê?).

Deixa eu falar, pô. A vida. A morte. Só isso, morou. Segura essa. Não tô a fim de filosofar hoje, não. Só um sambinha; de duas notas (uma dou de lambuja): a vida, a morte, a vida, a morte.

Pô broto, é a síntese do lance, morou. Quer mais o quê.

É que fiquei a fim de arrastar minha voz, tipo os velhos da moita. Quero escrever não. Aliás, quero. Quero me arrastar junto com eles e invadir os pavilhões dos ouvidos novinhos.

 

Meu método é o da tabula rasa. Perdão. O da tabula de esmeralda.

Ressentimento + forma + paixão² = arte.

Paixão + forma + ressentimento² = crítica de arte.

 

Slogans, por exemplo.

O DISCO MAIS VIOLENTO DO ANO.

Se não for da década.

 

Lambada, vê se isso não é um nome alienígena.

Conga? Isso era coisa de Jô Soares.

Mas quem é Jô Soares, perguntou o de vinte-ou-menos-anos.

 

Tô dizendo, escuta aí, com certeza

O DISCO MAIS VIOLENTO DO SÉCULO

esse da síntese do bagulho. Do lance.

 

Deixa eu me arrastar, dotô. Tô escutando os velhos de trás da moita. Escuta aí também, enquanto lê.

 

Eles falam de casais.

De casais, dá pra imaginar?

De “amores carmesins”.

Isso pode?

Escuta aí pra ver se pode.

Escuta tomando um uisquinho.

Escuta aí tomando um porre.

Escuta apaixonado tomando um porre de uisquinho. Testa aí.

Que bate, bate.

 

E se um dia outro Nelson, o Rodrigues disse “Jovens, envelheçam rápido”, os Cururus do Ridixanêaro dizem melhor, hoje, porque o que eles dizem é: “Envelheçam, jovens, rápido, mas não fiquem caretas, tipo o Nelson”.

E se tiver que morrer — porque um dia você vai morrer — morra erê, morra espantado, como viveu e morreu o outro, o Cavaquinho.


Daniel Guerra é crítico de arte, editor da Barril, artista e doutorando pelo programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFBA, tendo como eixo de pesquisa o conceito de Acontecimento Cênico.

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