Crítica | Literatura


recorte no olhar de toni em fotografia de Bert Andrews - (1970)

Sempre achei mais difícil escrever textos críticos sobre os livros que amei ler. Nem tanto pelo receio de que a passionalidade afete a razão e me incapacite de enxergar os possíveis defeitos, mas porque, imersa na paixão, parece que não há muito a ser dito além de elogios fervorosos que por si mesmo serão satisfatórios. A paixão, aqui, não é coisa mansa, fácil, tranquila. Ela se refere à sensação de arrebatamento, de quando me sinto provocada, convocada a repensar tudo o que está posto, quando o simples prazer da linguagem acurada emociona, quando me deslumbro ao encontrar dito, no texto, o que até então me parecia ser indizível. Em tal situação, ao fazer um relato crítico, só o que eu tenho vontade de dizer, e só o que penso que pode ser dito, é que é fantástico, genial, sensacional, maravilhoso e pronto. Apenas leiam, apenas de deliciem com essas palavras e deixem se levar pela exuberância, pela inteligência, pelo talento e pelo brilhantismo de quem escreve. Foi exatamente assim que me senti lendo A fonte da autoestima, livro que reúne os ensaios e discursos de Toni Morrison. 

De fato, poderia vir aqui apenas para dizer isso e ir embora. Se tratando de Toni Morrison, sei que nada irá bastar, nunca, nem textinho nem textão. Porém, como vocês obviamente podem constatar, sigo. Longe de me embrenhar na tarefa de expor minuciosamente os motivos da genialidade de Morrison, tentarei fazer aqui o que acredito ser a única forma que me resta, narrar a minha leitura, a maneira proposta por Barthes, e que só pode ser feita, segundo ele mesmo disse, através de uma leitura apaixonada, “pois que (ao texto) volta e dele se nutre[1].

Os quarenta e seis textos apresentados no livro, publicado pela Companhia das Letras, acompanham quatro décadas do trabalho intelectual de Toni Morrison e se dividem em três seções: O lar do estrangeiro, Interlúdio: black matter(s) e A linguagem de deus. Nessa compilação Morrison cobre praticamente todas as grandes questões contemporâneas com sua sagacidade impecável. A mesma energia que está impregnada em sua ficção aparece em seus ensaios: a palavra de Morrison vicia, passamos de um texto para o outro como quem acaba o capítulo de um romance e quer saber o que vai acontecer depois, sedentos pela oxigenação mental que seus textos repercutem, ansiosos para descobrir o que sairá agora da sua mente aguçada e que irá nos atingir feito flecha certeira.

A pancada vem logo que abrimos o livro, no texto para os mortos de 11 de setembro. De primeira pensei que esse texto poderia servir para os mortos de qualquer tragédia, e isso não é pouco, mas acabou revelando algo muito maior. O fio que começamos a puxar dali costura o livro inteiro e no final se consagra como uma característica importante da obra: a capacidade que Morrison tem de fazer leituras atemporais olhando para o próprio tempo. Isso não é o mesmo que dizer que o discurso de Morrison continua atual, colocar tal proposição seria muito banal para sua escrita. Tão pouco pretendo com isso relativizar a historicidade do seu discurso, até porque Morrison foi uma intelectual absolutamente comprometida com as questões ao seu entorno. Podemos lembrar de seu trabalho como editora, no qual colocou em circulação as biografias de Muhammad Ali e Angela Davis, lançadas no bojo do movimento dos direitos civis negros, na década de 70.

O que aspiro trazer aqui como a atemporalidade do livro de Morrison é a sua natureza clássica – nunca morre, nunca envelhece, nunca fica datada. As reflexões de Morrison ultrapassam os eventos e se estendem para além do tempo. Se trata de um discurso que serve para qualquer época e qualquer acontecimento, pois nunca se esgota. Questões de gênero, raça, globalização, guerra, mídia, literatura, linguagem, enfim, tudo o que Morrison toca reluz e transcende a própria sentença, se renovando sempre.

 A fonte da autoestima é aquele tipo de livro que nunca terminamos de ler, um livro para colecionar frases, períodos, expressões, para reter trechos na memória. Morrison fala, como exemplo, que os discursos de guerra, antes tão eloquentes e pomposos, agora não passam de “lamúrias de parquinho”. Tal termo logo se cola à imagem dos nossos governantes infantilóides, antidiplomáticos e néscios que, no limiar da guerra, se comportam como crianças birrentas. É impossível passar incólume à leitura ao revés que Morrison faz do mito da torre de babel, quando ela diz que nunca estaríamos prontos para ascender ao paraíso com uma única língua, ou seja, sem a diferença, sem conhecer o Outro, sem viver a dissemelhança, a diversidade, a heterogeneidade, e que talvez o paraíso se encontre justamente aí, portanto fragmentar a linguagem não seria uma punição, mas uma benção. O livro é um manancial de citações e por isso um deleite para os leitores mais vorazes, que riscam, anotam a margem e colorem as páginas com post-its. É quase um dever grifar as colocações de Morrison sobre a literatura, como, por exemplo, quando ela diz que “A literatura, sensível como um diapasão, é uma incansável testemunha da luz e da sombra do mundo em que vivemos” (p.170). 

As questões raciais, tão importantes para Morrison, não se restringem, como pode parecer à primeira vista, aos ensaios da seção intitulada “Interlúdio: black matter(s)”.  Elas atravessam e movimentam cada texto, cada ponto dado no fio da palavra. Portanto fica estranha a escolha editorial do termo interlúdio, que definiria uma pausa, um lapso de tempo que interrompe alguma coisa, como um parêntese no livro para se falar do assunto raça. Os textos ali contidos certamente convocam a questão para mais perto, mas, ainda assim, o estranhamento persiste. Até mesmo porque, quando a raça não vem como algo explícito, subentende-se no decorrer de todo o texto, e isso fica ainda mais patente ao lembrarmos que Morrison tem como interlocutor principal, desde sempre, a comunidade negra, e é ali onde encontra sua energia criativa. Em suas palavras: “A compulsão para escrever, e mesmo para ser, se inicia pela minha consciência do povo negro, minha experiência junto a ele e mesmo meu espanto diante dele da qualidade de nossa vida como de fato vivida (não percebida)” (p.290). 

Justamente por se debruçar sobre a raça, a produção intelectual de Morrison também abriga questões incontornáveis para a reflexão sobre a branquitude. Ali as armadilhas do racismo ficam nítidas, como o confinamento que certas leituras, advindas da crítica hegemônica, fazem em relação aos escritores negros e à literatura negra, encarcerando-os em um lugar isolado no qual parece não haver saída. E, em poucas palavras, Morrison aponta uma lição que feminismo ocidental branco reluta muito a aprender, a de que “a emancipação das mulheres floresceu melhor no solo preparado pela emancipação negra” (p.120).

Os ensaios de Morrison sobre seu processo de escrita, que arrematam o livro, são a expressão de sua generosidade. Uma aula magistral, operada graciosamente, para escritores, leitores e críticos. Tentei, por algumas vezes, fazer o exercício de imaginar a sua voz suave, inalterável, proferindo aquelas palavras tão cortantes. Entre os grandes momentos do livro, está o discurso do Nobel. Na ocasião, Morrison contou a história de uma mulher velha, cega e sábia. Uma mulher negra, filha de escravizados, considerada pelo seu povo tanto a lei como a transgressão. Chega a casa dessa mulher um grupo de jovens que querem colocar sua sabedoria à prova. Eles têm nas mãos um pássaro e exigem que a mulher lhes diga se o pássaro está vivo ou morto. Cega, a velha primeiro se entrega ao silêncio, depois reconhece que não pode saber se pássaro vive ou não, mas tem a certeza que “ele está em suas mãos”. O pássaro, vivo ou morto, pertence agora aos jovens, e é deles a responsabilidade de escolher o que fazer com ele.

Morrison escolhe ler o pássaro como o idioma, e segue o seu discurso. Eu escolho ler o pássaro como a linguagem de Morrison e a velha como a própria escritora. A fonte da auto estima converte-se então em um dos pássaros que Morrison deixa, entre tantos outros em revoada. O pássaro está vivo, vibrante e em nossas mãos, nem tanto como uma responsabilidade, mas como um presente. E a imagem de Morrison como a velha cega e sábia se distende, ficando cada vez mais mística, até se transformar em uma grande deusa-anciã, mais antiga que qualquer coisa viva, detentora de um saber infindável. Porque deus é uma mulher negra, e se as palavras são dotadas de alguma magia capaz de mudar materialmente as coisas, de restaurar a humanidade perdida, de encaminhar um futuro decente, essas palavras, sem dúvidas, são as palavras de Toni Morrison.


[1] BARTHES, R. Escrever a leitura. In: O rumor da língua. Tradução Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.26-29.


Ana Carolina Oliveira é crítica e pesquisadora. 

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