Crítica | Literatura


Detalhe da capa do livro

O que primeiro se mostra ao leitor de Jeanine (Veneta, 2019, tradução de Maria Clara Carneiro), de Matthias Picard, é a história de uma mulher que trabalha como prostituta de rua em Strasbourg. Não exatamente na rua, mas dentro do seu carro. É daí que surge uma larga vivência, que ela sabe contar muito bem.

Ou é isso que o relato em quadrinhos dá a entender. O livro é roteirizado e desenhado por Picard e tudo a que nós leitores temos acesso é a transposição que ele nos entrega. É uma narrativa de segunda mão, reformada em outra linguagem: da contação oral de quem viveu para a história em quadrinhos de quem ouviu.

Claro que essa mediação entre linguagens cobra sua tarifa. O que eram as tonalizações de voz, pausas e gestos, com a vivência de odores, tato e presença se transformam em traços em preto e branco que compõem formas e figuras estabelecendo relações umas com as outras, com texto escrito para reapresentar algumas das palavras de Jeanine. Ou da memória ou da anotação do autor quando entrevista o personagem.

Portanto, trata-se de uma história em quadrinhos com uma presença de reportagem, embora ela não se preocupe em contextualizar muito além do que a própria Jeanine conta. Está mais para uma anotação de relato que é quadrinizado.

A estratégia narrativa do quadrinista é justa: Picard retrata a si mesmo como um dos homens que circulam Jeanine e seu dia a dia, ele é um dos clientes que ela atende. Para a maior parte deles, ela presta serviços sexuais, para o autor, presta o serviço de contadora de histórias.

A arte de Picard usa muitas áreas de preto, com figuras bem definidas e cenários detalhados, e torna visual as histórias contadas por Jeanine, que resulta em uma narrativa macia, que desce fácil no leitor. A tipografia do original francês é retrabalhada com bastante fidelidade na versão em português. O letreiramento é um elemento importante para o ritmo e fluência de leitura.

Sem pesar de forma moralista o trabalho de Jeanine, Picard não tem um julgamento sobre o ganha-pão de sua biografada (nem de forma direta, nem – principalmente – na forma de quadrinizar e montar as páginas ou na composição das artes e apresentação das figuras). O autor consegue estar próximo o bastante para ouvir o que ela tem a dizer, mas distante o suficiente para conseguir um bom grau de neutralidade e, desse modo, entregar ao leitor um relato quase liso de sua influência.

(quase, porque é impossível não interferir ao recontar uma história, a neutralidade pode ser desejável, mas não é atingível de todo. A escolha do que contar, qual material deixar fora, qual destacar, o que vira traço e o que vira texto verbal, tudo isso são opções que conduzem o entendimento sobre a história, por mais sutis que pareçam).

Porém, quase no fim do livro, Picard tenta verificar as informações das histórias de Jeanine (como quando ela conta que foi campeã de natação, que salvou crianças de um massacre na Argélia, que foi à ONU lutar pelos direitos das trabalhadoras sexuais etc.). Não se trata de julgar Jeanine pela prostituição, mas de entender se ela fala a verdade.

Pelos mistérios da fé da ficção, é a realidade que não importa. Não importa se as histórias que Jeanine diz ter vivido são verdadeiras ou não.

Não digo aqui que ela mentiu em seu depoimento a Picard, mas que pode ser que tenha ou lembrado mal de alguma coisa ou valorizado uma história específica ou mesmo criado algo para parecer mais interessante.

O peso da verdade que ancora o sentido de uma narrativa se coloca em ser esta mulher, que existe, uma prostituta e uma contadora de histórias. A verdade percebida dentro da ficção que reproduz um relato perde parte de sua importância. Pois, diferente da importância da coerência e da verdade das vozes e discursos oficiais, quando se trata de indivíduos, se permite se superestimar e ser incoerentes desde que isso tudo seja em nome de uma narrativa envolvente.

Ou seja, Matthias Picard consegue contar uma boa história, em parte, porque Jeanine conseguiu. A única verdade que importa aqui é a que se percebe na leitura e aquela que o leitor cria como experiência.

A ficção pode criar momentos verdadeiros a partir de exageros e mentiras. E até de verdades.


Lielson Zeni é editor da DarkSide Books, pesquisador e roteirista de histórias em quadrinhos e um dos membros do Balbúrdia, blog de crítica de quadrinhos.

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