Crítica da Crítica | Cênicas


A GRANDE CRÍTICA

setembro de 2016

Edição: 8


Sobre a crítica “Imperadores de nós mesmos”, de Welington Andrade, na Revista CULT, publicada em 10 de outubro de 2016: http://revistacult.uol.com.br/home/2016/10/welington-andrade-imperadores-de-nos-mesmos/

Parece que todas as coisas grandes, para que soem naturalmente grandes, devem invocar para si, em algum momento, todo o peso da história. Esse tipo de procedimento funciona bastante bem em monumentos, na vida política e nas academias. Constróem-se labirintos de referências, datas, cimento, mármore, nomes e toneladas de cobre, diz-se “a história nos julgará”, e é claro que a crítica também não se furtaria em vestir seus próprios lauréis. Na crítica teatral, quando se quer subir em coturnos trágicos e cantar aos deuses, a melhor coisa a se fazer é demonstrar um grande entendimento da história da dramaturgia e metralhar nomes e datas pra tudo quanto é lado.

Por algum motivo desconhecido eu não era leitor da CULT, mas na tentativa de deixar de lado o soterocentrismo fui atrás de alguma crítica com um mínimo de fôlego no jornalismo brasileiro, e o que encontrei foi o colunista Welington Andrade falando da nova peça de Gabriel Villela, aquele do “Romeu e Julieta” com o Grupo Galpão nos anos 90, cuja poética — dizem por aí — recebeu a alcunha de “o triunfo do teatro caipira”, rótulo criado por ninguém menos que Antunes Filho[1], e olha eu já subindo nas minhas tamancas referenciais.

O professor Welington, que escreve na coluna “Cena Contemporânea”, abre seu texto invocando James Joyce, que por sua vez fala a respeito do norueguês Henrik Ibsen: “Quando a arte de um dramaturgo é perfeita, a crítica é supérflua”. Se eu desse plenos ouvidos a Joyce, e ainda a Andrade, pararia naquele mesmo instante. Pensava: ora, meu amado Joyce, se a crítica é um mísero reflexo da perfeição de uma obra, por que cargas d’água estou eu aqui, começando esse enorme trabalho que é dedicar dez minutos a um texto? (Depois que escrevi isso fui ajoelhar no milho, debaixo do altar).

Mas, como sou um trabalhador dedicado e minha mãe me disse para nunca confiar em pessoas mortas, respiro e continuo descendo o cursor, preferindo acreditar, pelo menos por enquanto, que vivo é o Andrade e que o morto é Joyce. A crítica, que deveria tratar do espetáculo teatral “Peer Gynt”, dedica quatro enormes parágrafos à vida e obra de Henrik Ibsen, que não por mera coincidência é autor do texto “Peer Gynt”. Mas é só no quinto parágrafo que finalmente ficamos sabendo da existência desse artista mineiro, o Villela, que, segundo o crítico, “optou por compreender o personagem [Peer Gynt] por meio da ótica de uma linguagem artística genuinamente brasileira”.

Porém, no lugar de discutirmos o que seria esse problemático “genuinamente brasileiro”, preferiria ater-me à estrutura daqueles quatro parágrafos iniciais. Eles sintetizam dois dos quatro paradigmas da grande crítica: o historicismo e o a priori dramático.

Ao ler esse e outros textos de Welington, é flagrante a eleição do drama como epicentro legislador de toda a análise crítica. É claro que isso não vem, vamos supor, exclusivamente da consciência moral do autor. Essa é apenas mais uma das incorporações de uma tradição que o teatro carrega no lombo a milênios, e que, ao menos no campo da escrita especializada, parece não querer desencostar. Porque para a maioria dos criadores, é mais do que óbvio que a raíz do juízo estético da cena deva ser a própria cena, e mesmo em montagens fiéis aos textos dramáticos, deve ser o acontecimento, sua duração e presença, o crivo absoluto na hora de uma análise. Até porque o que seria de Ibsen sem um Villela? Um bom livro pra se ler num dia frio, preferencialmente escutando Djavan. Em outras palavras: um clássico da literatura.

E assim prosseguirá a sua análise, tentando sempre virar o olhar para o espetáculo em si, mas não resistindo à tentação de retornar às duas musas, Dramaturgia e História, para, a partir delas,  comparar as malajambradas belezas posteriores. Por falar nisso, a comparação é a tônica da análise welingtoniana, e é no vácuo dela que entramos nos próximos dois paradigmas da grande crítica: a adjetivação enquanto muleta e a mutilação enquanto metodologia.

Num movimento duplo, que cria dois planos paralelos e concorrentes (a cena e o texto), Welington é obrigado a agir como um pêndulo. E, já que um pêndulo não pode existir em dois lados ao mesmo tempo, é obrigado a estabelecer comparações entre a magnum opus ibseniana e o espetáculo villeliano, mecanismo que dá vida a passagens como a que leremos agora:

A Ibsen foi atribuído o epíteto de “Shakespeare burguês”, a partir do momento em que sua obra entrou na segunda fase, a das peças de tese sobre a mentalidade da classe média, mas talvez seja na primeira fase que ele tenha se aproximado com mais veemência do bardo inglês, justamente por seu desabrido romantismo e por sua vibrante poesia. Pois intensidade romântica e acento poético é o que não faltam à encenação de Peer Gynt por Gabriel Villela, exótica por conjugar cenografia, figurinos, iluminação, adereços e maquiagem em uma mistura da qual exala a aura de uma plasticidade inebriante. Cada um desses elementos funciona como uma espécie de nota musical de cujos cruzamentos surge uma portentosa imagem sinfônica em cena, de intensidade natural e beleza orgânica.

Percebam como Villela, frente aos bustos “veementes” e “vibrantes” de Shakespeare e Ibsen, torna-se quase um bom selvagem, de “intensidade natural” e ‘beleza orgânica”, e é aqui que Welington mostra toda a sua destreza na hora de cunhar adjetivos, como por exemplo: “A instauração em cena de climas que alternam lirismo, vida onírica e psicodelia se dá por meio da execução de canções dos Beatles – o que constitui um verdadeiro achado” ou “Certamente, este é um dos pontos altos do espetáculo, sublinhado, vale destacar, tanto pela interpretação inspirada de Maria do Carmo Soares como pela bela voz de Letícia Medella”. Neste último, já vemos despontar então o famoso “ponto alto”, que merecerá um parágrafo à parte.

Encontrar o ponto alto é a salvação de todo crítico. Se você depara com um deles, pode considerar o trabalho feito. O ponto alto, assim como o “verdadeiro achado”, é a senha para um encontro feliz entre crítico e artista criticado. Achando um ponto alto, o crítico já sente que pode respirar tranquilo, porque essa é a sentença que legitimará o texto frente ao artista, que, com os olhos tremelicando, no mais das vezes saltará todas as linhas para ler finalmente, em algum momento do texto, seu lindo nome ligado a algum “ponto alto do espetáculo”. E por falar nisso, o ator premiado da vez foi Chico Carvalho, que, segundo Welington, foi o “destaque do elenco”, com um “trabalho de corpo e voz [que] confere ao protagonista uma energia criativa toda especial.”

Se um espetáculo é corpo vivo, sujeito a pequenas ou grandes transformações ao decorrer de sua duração, porquê deveria ser condenado à dissecação, privado de sua coerência interna ou caos imanente, em prol do labor de cirurgiões destrambelhados?

Esse tipo de adjetivação é uma muleta porque é o que permite ao crítico dissimular suas fraquezas. Quando as únicas ferramentas se baseiam na história e na dramaturgia, pouco sobra ao espetáculo enquanto acontecimento. É ai que o crítico jornalístico derrapa e é obrigado a fazer uso de certas artimanhas. Afinal, a presença não é feita de talento somente, e há aqueles que não sem razão afirmam: “talento é chocolate”. Porra, anos e anos de estudos da presença, da ausência e o cacete a quatro, seminários, congressos sobre o corpo enquanto coisa e a coisa do aplicativo enquanto corpo incorporado da ameba líquida do pós Bauman, Sennett e Foucault, para vir Welington e me dizer que o Chico é destaque porque o Chico é capaz de acessar “uma energia criativa toda especial”. Pelo amor de deus, então que alguém ao menos justifique a existência daquela praga de sotaque semiotiquês universitário paulista, explicando por A + B porque Chico, que é destaque lá no espetáculo do Villela, é melhor que os demais colegas de trabalho.

E que procedimento permite a ascensão dessa adjetivação enquanto estilo? Aqui chegamos ao último paradigma, a mutilação. Perpetrada por nove em cada dez escritos sobre as artes cênicas, a mutilação é, como o próprio nome diz, a separação em partes do todo cênico, geralmente sob os seguintes disfarces: atuação, cenografia, figurino, iluminação, adereço e maquiagem. Vamos encontrar um grande exemplo de mutilação naquele fragmento do texto welingtoniano. De acordo com Welington, é a conjugação das partes que permite ao todo a exalação de uma “aura de plasticidade inebriante”. De qualquer forma, Villela teve sorte, porque no seu espetáculo tudo se misturou no caldeirão do crítico formando uma boa sopa, e talvez seja essa a malandragem fundamental de muitos artistas.

O que acontece na mutilação é que as instâncias técnicas do espetáculo são confundidas com o espetáculo em si. São colocadas no lugar dos dispositivos e emanações, que por sua vez não são em nada parecidos, nem no cheiro, nem no gosto, nem na cor, com qualquer dessas instâncias técnicas, que certamente as promovem, mas que não podem tomar seus lugares. Se um espetáculo é corpo vivo, sujeito a pequenas ou grandes transformações ao decorrer de sua duração, porquê deveria ser condenado à dissecação, privado de sua coerência interna ou caos imanente, em prol do labor de cirurgiões destrambelhados?

E, assim como no texto da crítica local Eduarda Uzêda, que analisei numa edição anterior[2], ocorre a mesma finalização sintomática, como se a crítica jornalística fosse sustentada por dois pilares: a moralidade e a identificação. Em algum momento, ambos os estilos parecem ser compelidos a emitir uma nota moralizante ligada a uma consideração sobre a pertinência desta ou daquela “mensagem”, para a correta edificação do leitor/espectador. Tal comportamento estilístico coaduna com a aura jornalística, mas também com o universo classe média, a que muitos jornalistas se sentem naturalmente impelidos no momento da escrita. Acostumados que estão, desde sua mais tenra criação, a adular e excitar a opinião da maioria e do senso comum, devem necessariamente escrever coisas tão soltas e gratuitas como: “Entretanto, não passam incólumes na adaptação do próprio encenador a crítica ao esnobismo de classe e à falta de ética comercial, quando Peer se torna um mercador no Marrocos.”

Nessa frase encontramos o “ponto alto” da análise. Por meio desse pequeno período, aparentemente deslocado e non-sense, vemos transparecer a quem o texto é direcionado. O jornalismo impresso vem tomando machadadas brutais desde a virada do século, e a hora do tombo se aproxima vertiginosamente. Mas mesmo nas publicações virtuais, especializadas e responsáveis, como é o caso da revista CULT, subsiste um tom jornalístico que se conecta a uma suposta vontade da classe média em só fruir grandes nomes e espetáculos. Na coluna “Cena Contemporânea” encontramos um terreno de fomento do mais-do-mesmo em vez da exploração de territórios arriscados.

Enquanto isso, lá fora continua o ruído das machadadas, e tal como os personagens de Tchekhov[3] — para usar uma metáfora dramática — persistimos olhando pela janela. Uns esperam o tombo final como uma grande redenção, outros apenas desesperam, outros ruminam o passado. Mas o real, o real mesmo, é que o mainstream está cada vez mais circunscrito ao próprio mainstream. A televisão, os jornais, os espetáculos e os críticos mais “oficiais” tem falado cada vez mais deles mesmos e para eles mesmos, porque sua penetração nos outros mundos, essa miríade de novos mundos criados pelas redes sociais e múltiplas ações urbanas, se torna mais e mais impotente. Ou tais publicações escolhem encarar a realidade, falando realmente para os corpos loucos e complexos deste milênio, ou continuarão presas na sala de estar, esperando o anjo exterminador, monologando para outros monologadores, todos ainda pensando que existirá um dia um futuro mais alto, a celebridade, o foco, a cena, o drama, Ibsen, século XIX, e por aí vai. Até que se diz basta e olha-se para o a potência seca de cada machadada. Talvez alguém transforme aquilo em música. E publique diretamente no seu Soundcloud.

[1] Diretor teatral paulista (1929 – ).

[2] http://revistabarril.wixsite.com/revistabarril/critica-da-critica-lapides-pracas-e

[3] Anton Tchekhov, médico, escritor e dramaturgo russo (1860-1904). O texto invocado é “O Jardim das Cerejeiras”.

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