Crítica | Cênicas


A Bouche, o Mar e o Tempo

agosto de 2016

Edição: 7


Crítica de A Danação de Tristão e Isolda – Capítulo 1 do Núcleo Viansatã

 Eu poderia começar esta crítica dizendo: A Danação de Tristão e Isolda é a cara do Núcleo Viansatã. Sei que à primeira vista pode parecer redundante, mas estou falando do processo de construção de uma identidade estética que o grupo vem desenvolvendo desde o ano de 2009. Dessas identidades facilmente reconhecidas e que, para quem acompanha a trajetória são visíveis as modificações, adições e recriações fruto da pesquisa continuada.

É importante lembrar que durante o boom do movimento de Teatro de Grupo aqui na cidade de Salvador, nos anos de 2011 a 2013, o reconhecimento deste aspecto – a pesquisa continuada – tornou-se uma das grandes reinvindicações dos coletivos que chegou a atingir esferas institucionais. Dando origem ao edital de manutenção de grupos e coletivos culturais, por exemplo.

Uma vez que as iniciativas estéticas do Viansatã se apresentam sempre como parte de suas pesquisas, vivencias, modos de criar e de gerir, seria impossível começar a falar da Danação de Tristão e Isolda sem fazer esta pequena digressão. Mas voltemos ao espetáculo em si.

Uma das características do Viansatã é o atraso no início de suas atividades. Apesar do estranhamento que isso pode causar, os efeitos negativos disso são facilmente dissipados se você se disponibilizar a considerar o tempo da espera como tempo da própria experiência. Então, ao chegar no largo do cruzeiro, o convidado – como já disseram preferir chamar as pessoas que vão até eles fruir de suas proposições – se depara com os últimos ajustes de uma estrutura que nos remete imediatamente aos grupos nômades mambembes: um círculo de luz com lâmpadas apoiadas em garrafas de cerveja, os programas, livros e máquina de cartão num tabuleiro, uma caixa de formas animadas e os ajustes de som. E é claro, as vestes cerimoniais gótico punk do coletivo. Após isso, Victor Diomondes, o mestre de cerimônia, deita nesta caixa e entre murmúrios e espreguiçadas finge dormir.

Nessa hora eu já tinha desistido de tentar descobrir quando ia começar e passei a olhar em volta.

Toda estrutura coexistia com a vida movimentada do centro histórico. Shows e aulas de dança afro aconteciam, turistas passeavam, curiosos paravam e eram abordados sorrateiramente pelo tabuleiro. Os que “vestem personagens” saem da sede, a Bouche de L’enfer e caminham pelo pelourinho. Aos poucos o som do acordeon que os acompanhava se misturava com os atabaques e as figuras de Tristão e Isolda se misturavam por sua vez com Oxum, Xangô, Iansã, que eram homenageados em edifícios vizinhos. Entretanto, mesmo assim, ainda pareciam estranhos, como se fossem de um outro tempo e de um outro lugar. Essa sensação permanece até que eles pararam na cruz do Largo do Cruzeiro para brindar entre si. Uma cruz que eles não colocaram. Uma cruz que já estava lá. Uma cruz que tinha muito a ver com eles, mas ao mesmo tempo tinha muito a ver com o lugar. Nessa hora deixam de ser estranhos e se fundem com o espaço. Nesta hora também começaram a tocar para Yemanjá em algum lugar próximo, e foi impossível não ligar esta irrupção sonora ao mar de Isolda.

Entram no círculo e apresentam os personagens: Tristão, Isolda, Rei Marc, A Lua e a Poção/Belladona. Narram a história. Falam de Amor, Vontade, Desejo e do Tempo. Assumindo ali, definitivamente, a contação de história.

Assisti, durante boa parte, pela perspectiva da Lua. Marcada com um número oito. Segurando os cravos que me haviam sido ofertados por Isolda. Cravos que me tinham sido apresentados pelo grupo em um de seus eventos de outono.

Entretanto, usando da contação, e do teatro de formas animadas a história de Tristão e Isolda termina num piscar de olhos me fazendo sentir falta do mar.

Somos então convidados a subir para Bouche. Somos servidos com a mesma bebida apresentada no Théâtre de Vampires, somos guiados por eles e acomodados pelo espaço, onde eles separam os grupos de pessoas que chegaram juntos como fizeram em um de seus experimentos abertos e observamos as ofertas que foram apresentadas nas Mostras Caóticas se desenvolverem. Nesse momento, eu já não via Tristão, nem Isolda. E sinceramente, não sei dizer se isto é um aspecto negativo ou positivo.

Ser convidado pelo Viansatã é escolher estar ou não disponível. Para que os rituais propostos se façam, depende deles, mas também se torna claro que depende de você.

Esta segunda parte era um grande energético através do qual compartilhavam os vislumbres que se tem quando se coloca nesse estado. Comida é feita, drinks são preparados, corpos se tocam, gritos se escutam, respirações se tornam sonoras tão repetidamente como se nos lembrassem de respirar e toda complexidade que envolve este movimento.

Gostaria de destacar, a presença de Juma Mascarenhas, que me escolheu para observá-la durante a distribuição dos lugares. A Belladona nos faz tremer juntas mesmo quando está imóvel. Nos enfeitiça enquanto mexe seu caldeirão, nos fazendo aguar por um pouco da mistura. E que vem apresentando uma sensibilidade ao entorno cada vez mais aguçada. Chegando a antecipar movimentos entre eles e entre nós.

Ser convidado pelo Viansatã é escolher estar ou não disponível. Para que os rituais propostos se façam, depende deles, mas também se torna claro que depende de você. Entrar na Bouche, é entrar num espaço que foi transformado por eles em um espaço sagrado. E, se tratando de um espaço sagrado, se nunca visitou a Bouche de L’Enfer, aviso de antemão: Não toque em qualquer coisa. Não sente em qualquer lugar. Nem tudo é permitido.

Mas, permita-se e lide com este paradoxo.

Estou presente frequentemente nos rituais do núcleo. Acompanho sua trajetória que respeita o Tempo e o Caos. E gostaria que aceitassem esse texto como um presente.

Vida longa ao que os mantém unidos.

Que assim seja, e que assim se faça.

Rebate à crítica “A Bouche, o Mar e o Tempo” de Laís Machado

 Por Victor Diomondes

Nos deixou com sede o seu olhar. Somos assim. Viciados em visões múltiplas, viciados em sentir até onde cada escolha pode nos levar. Não seria diferente depois do tanto de sal que comemos juntos em sete anos, quando iniciamos pelo pretexto de encenar essa mesma história que aqui e agora escolhemos fazer. Sim. Cada palavra, gesto, som ecoa nosso caminho, que se abre para o Norte e para o Sul, para o passado e para o futuro, mas que marcamos com nossos pés de agora. Precisa ser desse jeito.

Um velho mito narrado nas pedras antigas de um bairro histórico. Poderia ser apenas isso. Mas é tudo isso que também nos move. Somos ecos de escolhas que nos são anteriores, mas o grito precisa ser nosso, com nossa voz. O lugar e as horas nos pertencem, basta termos o poder de lembrar disso. Construímos nossa – e repito, nossa –presença entre os prédios, entre as músicas, entre os sons, naquele Cruzeiro de São Francisco. E depois em nossa Bouche.

Uma vez um menininho pequeno disse que somos o tempo. Então não há argumento para não termos tempo. É no Teatro Ritual que construímos nossas ações. E isso deve acontecer com toda a Vontade e a diligência que marcam quem enxerga a arte e a vida manchado de religiosidade.

Talvez devesse me preocupar com a falta que o mar lhe fez. Porém, com toda a certeza, me deliciei em saber que você o sentiu. Como partilhei há linhas atrás,esse é também um caminho para o futuro, para a escuridão, para a incerteza abraçada pelos ouvidos que anseiam escutar o Caos. Onde está o mar? Seria no coração dos atuantes? Nas luzes bruxuleantes das velas que recebem os convidados que adentram a Bouche? Nos espelhos da Lua? Nos drinks gelados? No caldeirão de Belladona que se derrama? De toda forma, esse é apenas o Capítulo I. Ainda há muitas e muitas léguas submarinas a percorrer. E isso me dá um tesão tão grande.

Sabemos do peso que as velhas histórias trazem. Mas Artaud nos disse  para destruir tudo. Solveet Coagula. E assim conseguir aquilo que faz nosso pulso estremecer e nossa boca salivar. Dar ao espetáculo o título A Danação de Tristão e Isolda foi como nos resvalar no passado para beijar a boca do presente. Pois cada personagem – Lua, Belladona, Marc, Tristão e Isolda – são um mundo, um mar. E assim a narração da paixão de um casal feita na rua se prismou nos muitos lugares onde esses personagens habitam na casa do Viansatã. E eles servem a si mesmos em bebida, comida, música, cheiro, luz, dança. Você esteve com a Poção, e a experimentou em sua cozinha.

E falando em delícias, essa foi mais uma que você nos proporcionou. O prazer de ter entre nós uma artista que trilha a mesma vereda do Teatro de Grupo, que sabe que é conosco o encontro, para além do espetáculo. E mais. Que é sagrado.

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