Nebulosa | Visuais


Nebulosas
de Amine Barbuda

NEBULOSAS

março de 2018

Edição: 19


Substantivo Feminino. Singular e plural.

  1. Coletivo de nuvens. 2. Conjuntos de nuvens podendo significar também nuvens isoladas, soltas, névoas, mera neblina, névoas de nuvens… 3. Camadas de éter, passageiras, transitórias, densas, esparsas, esgarçadas, moventes, apenas traços, indícios de uma presença…

O sopro da vida

Nebulosas são uma metáfora de encontros, confrontos, desencontros, conflitos. Metáfora de rupturas claras, difusas – das quais às vezes nem sequer se deu conta -, mas que conformam um céu que é o da história e das memórias, e que é, antes de tudo – dada  a  transitoriedade e instabilidade de suas formas – uma imagem do efêmero, a própria existência. Metáfora do próprio céu intransitivo, do ser, do estar, do existir mutável e fugidio.

O sopro da atopia

Absolutas e relativas, nebulosas podem ser grandes massas de gases –  imagem de um desejo de solidariedade que, movido por afetos, vai fazendo neblinas, névoas, pequenas massas de vapor irem se agregando de tal modo que já não se sabe como se formaram. Apenas se sabe que estão aí. São e existem no tempo de um olhar, no tempo de um tempo, no tempo de uma vida.

Mas em uma nebulosa há nuvens que, mesmo reunindo certa densidade, permanecem como que isoladas, como que soltas, introvertidas à margem das diferentes formas de  agrupamento. Aqui se sabe menos ainda… É como se o próprio sopro da vida lhes tivesse faltado ou lhes tivesse sido, de repente, subtraído, mantendo-as em um afastamento imposto, mas quem sabe também desejado, por soberba, impotência, desvio ou descuido, contudo, em um caso ou outro, por desatenção e desamor.

Como suas formas, seus ritmos podem ser diversos, mas o que marca o ser contingente e transitório das nebulosas é esse sopro invisível que se adivinha e de um instante a outro, fazem e desfazem suas formas. Nem entregues ao acaso, nem seguras de suas posições; é a atopia que define seu modo de existência e talvez seja aqui que a metáfora revele sua potência e sua natureza filosófica e política.

O sopro da cidade e da política

Pensar, portanto, por meio de nebulosas, sintetiza uma poética do político que atravessa  subjetividades em seu desejo de compartilhamento e em sua construção contínua. Em sua instabilidade e em sua insistência em construir-se e reconstruir-se como configurações desejáveis e necessárias, as nebulosas parecem pensar com o mundo, insistir em ser mundo e fazer mundos, diante da memória da própria incompletude e precariedade que caracteriza a condição humana.

Observar os céus metafóricos das nebulosas é ser convidado a pensar o tempo político como aquele do presente, da ação. Como tal, este é um tempo sem tempo. Aqui desfazem-se a estabilidade e o conforto de pensar tempos mortos ou tempos do vir a ser. O tempo das nebulosas é um tempo que se dilata e escorre. É um tempo gerúndio  que, sendo, forma e desfaz conjuntos de éter para misturá-los, não separando modos de existência, arte, ciência, política, reflexão, ação. Desfaz para refazer.

Pensar por nebulosas desfaz fronteiras, desarma verdades, desmonta recortes nacionais e a xenofobia dos nacionalismos, e aponta para formas de cultura e do mundo social feitas de misturas, hibridações – conformando como nuvens culturas nômades, no pleno sentido da palavra. Ensina que as identidades se constroem e se reconstroem a cada gesto, a cada ação, a cada movimento que se sente como um sopro coletivo  em relação ao qual se reposiciona.

Pensar por nebulosas é uma forma de pensar o político e a ideia de vida social a partir de um certo sentido de universalidade, que dá sustentação à própria ideia de cidade como espaço possível de confronto, mas de pleno respeito à alteridade, por sabê-la outras faces de si. E, aqui, a luta pelo direito à cidade guarda seu horizonte simbólico, de luta pelo direito de todos, de qualquer um – um direito  nômade, isto é, o direito, os direitos dos que habitam uma terra sem fronteiras, sem propriedades, sem muros, sem fixidez, que se quer igualitária em suas singularidades.

O sopro da ação

O tema das nuvens tem ocupado a pintura e a história da arte há muito tempo. Embora a imagem seja celeste, o tema talvez seja justamente como um desses abismos que cada um escava com seus objetos de estudos, como quem explora antigos “mundus”  tanto à busca das leis que regem as práticas coletivas quanto dos fundamentos que faz seus.

A inconsistência mesma do solo à medida que se escava, evoca, em contraposição, o horizonte movediço, fluído e lacunar das brumas, das névoas, de conjuntos infindáveis de nuvens em constante movimento.

Em todo caso, dentro-fora, fechado-aberto, terreno ou aéreo deixam de ser topologias  e tornam-se campo movente  e atópico de forças  que evocam as configurações que o precedem e em relação às quais se posiciona:  os objetos estudados, as visões de tempo, as narrativas constituídas,  os atores visíveis e deixados em segundo plano, suas ações e possibilidades. A capacidade imaginativa, discursiva e o próprio lugar político e poético que cada um dá para si e para o que empreende são, assim, acionados em um movimento que não é neutro, nem objetivo (linear e limitado), nem subjetivo (evocativo e totalmente ilimitado) – é transubjetivo e cultural (impactante, sincrônico, contrastante e relacional).

Contornos

Nebulosas não têm limites; no máximo, possuem algum contorno temporário. As nebulosas são metáforas das configurações precárias e contingentes, possíveis de serem pensadas e propostas no campo coletivo por cada um a partir dos fragmentos que reúne em seu esforço de objetivação dos discursos do outro e em relação ao próprio exercício de dotação de sentido que empreende.

Nebulosas (des)jogam o jogo… São redobramentos e repetição, onde tudo e todos encontram um lugar situado, e, no entanto, é transitório, passível da delicadeza ou força de tantos sopros que movimentam ar e nuvens, mas também os homens e seus mundos, suas fantasmagorias e as lutas e desejos que fazem  seus.


Margareth Pereira é professora da UFRJ, arquiteta e historiadora

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