Ensaio | Música


Canção
de Amine Barbuda

Que horas são na crítica de música feita no Brasil? Dois livros lançados em 2017 apontam caminhos bastante diferentes – ou talvez complementares – no que diz respeito ao modo como pensamos a música popular cantada.

Aquela que não se deixa encarar, assunto que escapa, difícil de abordar objetivamente: assim é a música A Fugitiva para Lorenzo Mammì. O crítico italiano radicado em São Paulo teve editado o livro que traz ensaios produzidos ao longo de mais de 30 anos, divididos entre música popular e erudita. Os temas vão de João Gilberto, Tom Jobim e Chico Buarque a pensatas sobre compositores como Wagner, Villa Lobos, Debussy, passando ainda pelo jazz americano.

A tradição ensaística de Mammì é muito devedora de Roberto Schwarz, e tem outros pares como José Miguel Wisnik, Luiz Tatit, Arthur Nestrovski, todos eles ligados à Universidade de São Paulo. Schwarz, por sua vez filiado ao trabalho de Antonio Candido, é conhecido por seus ensaios sobre obras diversas (Verdade Tropical, Cabra Marcado para Morrer, entre vários outros) e suas análises de Machado de Assis. Marxismo, dialética, teoria crítica e Auerbach são algumas das poderosas ferramentas da análise, mesclando estrutura interna, história e sociologia – assim também o é para Mammì.

Música de Montagem – A Composição de Música Popular no Pós-1967 – é resultado da tese de doutorado de Sergio Molina, músico formado na Universidade de São Paulo, um trabalho (propositalmente) mais fiel à musicologia, em sentido estrito – diferentemente de Mammì, que apesar de tocar, não se considera músico.

Molina faz uma série de análises do que chama de “música popular cantada” (sendo assim, não eruditas, nem instrumentais) e de como seu processo de composição foi radicalmente alterado após o lançamento do Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, em 1967. A partir do álbum clássico do quarteto britânico, o processo de criação incorporou completamente a experiência em estúdio. Expresso 2222, de Gilberto Gil e Sentinela, de Milton Nascimento são algumas das músicas brasileiras analisadas junto a Helter Skelter, dos Beatles, e Crystaline, de Björk.

Em termos cronológicos, Mammì e Molina estão quase em linearidade: a maior parte da crítica feita pelo italiano ronda os anos 1950 e meados de 1960. Já o musicólogo privilegia o pós-1967. Mas a diferença fundamental entre os dois é a do teor da crítica. Enquanto Mammì faz uma análise da música no formato “canção” mais tradicional possível, enfocando voz e violão, variações harmônicas e melódicas criadas a partir desses dois “instrumentos”, e a liga ensaisticamente ao espaço social, Molina abre espaço para um tipo de crítica até então pouco feita no Brasil. Ele analisa fonogramas, apresenta gráficos de como a música se apresenta sonoramente, sua intensidade, as entradas de guitarra, voz, variações de levada, solos, synths, além do uso de espectogramas, claves rítmicas (e não apenas as notações de partitura, típicas da Europa ocidental).

O princípio que norteia Música de Montagem – termo cunhado pelo autor a partir de Walter Benjamin – é o de que a partir de 1967 não é mais possível falar em “canção” apenas a partir de melodia e harmonia, e sim incorporando os processos de estúdio, que expandem o sentido tradicional da canção. “Quando o campo principal da criação musical se desloca, como ocorreu no século XX, para esse nível secundário, ou seja, para a composição de sonoridades resultantes da inter-relação de determinados componentes, uma análise limitada ao nível primário pode discriminar o material escolhido, mas não desvenda o processo de criação, justamente porque a trama do artesanato do compositor está focalizada em outra dimensão”, escreve.

Arrisco dizer: no limite, a análise de Molina invalida que se façam outros ensaios como os de Mammì para tratar da produção contemporânea de música popular cantada. Se, depois que os Beatles se enfurnaram no estúdio, a canção nunca mais foi a mesma, como explicar a permanência da tentativa de se produzir ensaios a la Mammì, Tatit, Nestrovski e outros teóricos da canção? Por outro lado, como fazer uma análise das produções pós 1967 sem focar apenas em seu aspecto musicológico? E, pior, como ligar os efeitos da criação em estúdio ao contexto social?

Mammì diz, em A Era do Disco (último texto dos ensaios sobre música popular do livro), que até os anos 1980, fez sentido pensar o produto-disco (o LP) como um objeto de criação artística, por mais caráter mercadológico que tivesse. Era, ainda assim, revolucionário porque o consumismo teve algum valor nesse sentido, diz. Mas, a partir de então, com a chegada do CD, perdeu-se a capacidade de construir “universos originais e complexos” como o de um Exile on Main St. ou o de Thriller.

Com a digitalização completa dos estúdios musicais entre os anos 1980 e 1990, a música deixou de ter o empecilho da limitação dos canais sonoros: a quantidade de camadas numa música criada digitalmente passa a ser infinita. Embora os Beatles já tenham feito isso com o Sgt Peppers em quatro canais, condensando o que tinham produzido num só e criando novas sonoridades nos outros três, o impedimento físico deixa de ser uma questão na música digitalizada. Assim, na única análise de uma música criada pós digitalização dos estúdios – Crystalline, de Björk –, Molina mostra ataques, acontecimentos musicais que são emulados com sintetizadores (e lembram as sonoridades de uma bateria orgânica), mas são todos criados a partir de timbres.

Esse “impasse”, criado aqui por uma comparação forçada entre dois lançamentos de críticos consagrados, vinculados à USP, quer estimular uma discussão. O próprio Mammì, quando compara Miles Davis a João Gilberto num ensaio que comemorava os 80 anos do baiano, pergunta: o que foi do jazz? O que será da canção? (note os tempos verbais: o jazz foi, a canção, no texto de 2011, será).

Para Mammì – a julgar pelo livro que faz uma coletânea dos seus ensaios sobre música – a canção popular vai de uma linhagem de João Gilberto a Chico Buarque (“onde ela chega ao seu auge”), passando por Tom Jobim e fazendo algumas raras concessões a artistas menos consagrados (no entanto, estudioso consagrado, e autor de trabalhos que convergem com o seu: Luiz Tatit).

A obra de Chico Buarque pode ter, como afirma Mammì, a grandiosidade de “testar os limites” da canção brasileira ao adquirir “uma nova autonomia artística, que já não depende tanto de sua inserção midiática nem de sua referência a comportamentos ou situações imediatamente atuais, mas se apoia no prestígio e na riqueza de sua própria história, e (…) começa a refletir sobre seu próprio fim”. Mas esse é também um dos motivos que contribuem para que seu último álbum – também de 2017 – soe como uma consolidação daquilo que já se esperava: músicas complexíssimas arranjadas magistralmente por Luiz Cláudio Ramos, sem novidades em termos de som. No máximo, ganhamos um beat de funk do Dream Team do Passinho em Caravanas, música que é exceção ao disco.

Por outro lado, a música que dá nome ao disco é tudo aquilo que confiamos na tradição ensaística sobre a música popular: a linhagem Schwartz-Mammì-Tatit-Wisnik-Nestrovski-etc. busca canções como Caravanas para se manter viva. Não que precise ainda provar que é uma forte e enraizada tradição na nossa crítica musical, mas é a novidade não tão nova da mistura entre uma melodia e harmonia que tensiona e problematiza a letra, totalmente ligada ao contexto social do Rio de Janeiro atual, que faz com que O Estrangeiro de Camus aporte no Jardim de Alá da zona sul carioca e faça renascer, mais uma vez, a canção.

Mas é o lugar do crítico que precisa ser problematizado: para além do já óbvio fato de que são homens brancos de certa fração de classe elitizada e intelectualizada criticando a música de um par, há que se pensar na função de tal crítica. Afirmar e reafirmar a história da canção popular, seus ápices, seus tensionamentos, não seria também uma forma de colocar o seu papel, como selecionadores, ouvintes de música popular e apreciadores de arte como falantes de um lugar também único?

Vale pensar numa certa reflexividade (não estou sozinha aqui – a sociologia vem falando sobre isso de Weber a Bourdieu) que merece entrar em conta na teoria literária e sua ramificação na música popular. Por outro lado, Molina traz uma percepção um pouco mais arrojada em termos metodológicos, em relação ao que se propõe. Isso porque é pouco comum que venha da escola de Música da USP uma análise de fonogramas de música popular, ainda mais pela abordagem pouco usual que faz. Além disso, escolhe como objetos álbuns que fogem, de uma forma ou outra, da “canção” tradicional.

Há quem diga que a crítica de música no Brasil morreu – e não completamente sem razão –, mas, talvez mais acuradamente, o que se pode dizer é que hoje temos dado menos importância a ela. Seja pela falta de espaço nos jornais e revistas ou pela efemeridade dos feeds de Facebook e Twitter, raramente temos parado para discutir canções, e, quando paramos, vemos que a situação é cada vez mais complexa. Temos uma cena infinita de produtores independentes; uma cena estabilizada da MPB que pouco produz novidades interessantes; um mundo no rap de norte a sul do país; milhares de meninos e meninas querendo ser os novos MC’s de funk do momento; sertanejos enfiados goela abaixo.

As leituras de Mammì e Molina são importantes: seja por apontarem novos sentidos ou pelo que deixam de apresentar; mostram sinais do tempo. E causam também certo espanto: dois livros lançados em 2017 não têm sequer uma linha tratando da música popular feita no Brasil pós anos 2010, chame-se canção ou música popular cantada.


Paula Carvalho é jornalista

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