Não-Ficção | Literatura


águia
de Amine Barbuda

A ÁGUIA RASPANDO O BICO

março de 2018

Edição: 19


Existem duas crenças adquiridas por minha esposa sobre mim que ao longo dos anos se tornaram verdades inquestionáveis, ainda que sejam mentiras sem qualquer fundamento. Uma delas é que eu tenho o costume de enfiar as colheres nas panelas de feijão e colocá-las na boca, para depois enfiá-las de volta na panela sem me preocupar em limpá-las antes. Nunca fiz isso em toda a minha vida, nem quando morava com minha mãe, antes de meus 25 anos, ou mesmo quando eu era um solteirão e podia ser relapso quanto às normas de higiene pessoal. Mas a Dani sempre me vem com uma dessas, de que teve que jogar o feijão fora por eu tê-lo azedado.

Não se trata de uma acusação, e não há nada de ofensivo nisso, já que ela usa a voz enlevada da esposa que opera dentro dos fundamentos tradicionais e mesmo religiosos de seu zelo doméstico. Talvez – engraçado que me venha, meio que assustadoramente, só agora – ela esteja projetando uma ironia finíssima de eterno estoicismo feminino ao dizer isso com calibrada ausência, e talvez isso possa um dia se converter numa causa acumulada de divórcio – algo na linha da psicopatologia social mais indevassável e insuspeita que revele minha tirania despercebida de macho insensível. Mas eu nunca me importei em desmenti-la, em corrigi-la, por jamais haver me prontificado a cometer esse pecado caseiro.

Não sei mesmo por que sempre fui conivente com essa crença derrisória; talvez por achar o fato de uma sensaboria completa e insignificante, e ver que ela também o ache, e saber que certos mitos devem ser ignorados para não se enaltecê-los e transformá-los em problemas maiores. Talvez por haver uma inteligência do casal, uma áurea atmosférica poderosa nunca alcançada pelas palavras, e por nós dois termos a presciência espontânea de que se trata de uma linguagem em si, um mimetismo. Em quantas coisas que acredito sobre ela a Dani nunca me desmentiu?

A segunda crença, porém, foi desmentida hoje. Ela sempre achou que eu tinha medo de dentistas. Direto brincava comigo sobre minha “fobia de dentista”, um homenzarrão desses com medo de um motorzinho  etc. Acontece que minha infância foi povoada por dentistas dos mais surreais, o que arrancou na raiz qualquer medo ou apreensão que eu pudesse ter deles. Me recordo de salas sombrias e homens de aventais sujos, com suas dickensianas aparências de devassos mal ajambrados, abrindo a porta da sala de canais e obturações após despachar algum cliente aturdido e sinalizar para a minha mãe, enquanto esfregava as mãos numa toalhinha encardida, para que ela me conduzisse até eles. Não sei mesmo a razão para eu ter sido tão descuidado com meus dentes na infância, e a coisa que mais me enche de intuições tardias sobre a real vigilância materna é não entender como minha mãe pôde ter sido tão conivente. Tenho uma boa dentição, mas se meu cadáver fosse descoberto e não houvesse maneiras mais simples de levar os peritos à minha identificação, o estudo de minha arcada dentária fascinaria um perito imaginativo. Fosse ele um poeta intuitivo, rezaria na beira de meu saco de indigente em honra às evidências de meu sofrimento juvenil atestado pelo palimpsesto de revelações apreendidas pelo estudo dentário.

Os dentistas da minha vida foram quase sempre crápulas gananciosos; os piores deles se passavam por senhores abnegados que atendiam por um terço do preço a crianças cujas mães já haviam gastado todo o resto da apertada renda familiar com bolachas recheadas e jujubas coloridas, sabendo que suas soluções garatujadas para aquele universo de bocas doloridas e sorrisos falhos eram apenas um paliativo temporal: em dez ou mesmo vinte anos, o adulto no qual a criança se transformaria descobriria que seus dentes não foram salvos, o que se fez foi adiar o martírio para a maturidade, de forma que quase nunca restava alguma solução. Mas eram crápulas isentos até de maiores artifícios de dissimulação; esses bandidos se entregavam pelo próprio descuido, mas as mães dos moleques queriam esconder de si mesmas que suas faculdades haviam sido porões e garagens e as experiências corajosas nos protótipos humanos que essas senhoras lhes levavam. Muito da conversa fiada e da desinformação onde proliferou o mercado negro de todas as coisas no Brasil dos anos 70 e 80.

Pois uma dessas bombas programadas estourou na minha boca faz uns cinco anos, e eu só arranjei de ir consertá-la hoje, após saber da morte de um amigo em decorrência de um abcesso dentário. O dentista é o melhor da cidade. Um cara esclarecido e humanista, o Dr. Luís. Como todo clichê clássico, ele colocou uma pala azul em minha boca, após anestesiar o lado direito da minha mandíbula, e, enquanto tratava o canal, pôs-se a falar sobre filosofia, política e assuntos pessoais – e a me fazer perguntas e aguardar uma absurda resposta em silêncio, olhando para mim à espera de como eu passaria por aquele teste interno de maneira digna, com fios e plástico na boca arreganhada. Quem ganharia a aposta entre os outros hipotéticos dentistas que nos observavam por detrás de uma parede falsa ou por câmeras escondidas?  A certa altura ele me perguntou o que eu achava sobre quem acredita que os EUA são um país mais rico por serem protestantes, pois ele havia discutido essa afirmativa com seu filho, um aviador militar, e sabe o que ele respondera? Nessa hora ele chegou a tirar a broca da minha boca, quase a afastar a máscara de seu rosto, e a esperar mesmo que eu vencesse as mil traquitanas enfiadas no canal para lhe responder. A moça que segurava o ejetor de água também não conseguiu manter a cara de quem não estava ali e me lançou um olhar atento lá de cima.

Eu sou um desses caras que tem uma educação subserviente compulsiva; jamais venci aquelas disputas raivosas entre pessoas que não se gostam de esperar que a outra lhe cumprimente, e sempre vi sair o “oi”, o “tudo bem” e o “bom dia!” da minha boca, mesmo me arrependendo logo em seguida por ser respondido por uma cara virada com empáfia. Há um desenho da Warner em que o coelho põe a perder o seu esconderijo por não se conter em concluir a frase musical anunciada em voz alta pelo seu caçador: tchã tchã rã rãn tchãn… ao que o coelho espicha a cabeça para fora da toca, após tentar  em vão reter a fala na garganta inchada pelo pânico, e esguelha tchãn- TCHÂÃÃÃNNN. Pois eu respondi: Zvueler. E o Dr. Luís: o que você disse?, e eu: Zvveler, Max Zvveler. Ah, sim, ele respondeu, isso, concordo plenamente com você e foi isso que disse a meu filho, há teorias que abalizam isso, como a de Max Weber, você tem razão, mas não quer dizer que Deus esteja do lado deles.

Acontece que esse doutor Luís estava cotado para ser candidato a prefeito da cidade, e ele explicava toda a trama dos bastidores que lhe impossibilitara tal intento. Retirava a mão oficiosa que ora estava na minha boca, para gesticular a fim de tornar mais veemente alguma parte de sua exposição; parava tudo e encolhia os ombros, e me mostrava o quanto a política real o desgastava. Num dado momento me distraí e viajei olhando a lâmpada alaranjada voltada para meu rosto. O Dr. Luís falava, falava, e quando eu percebia a deixa para minha vez, eu apertava as sobrancelhas num sinal equivalente a “mas não é!”. Daí me lembrei de uma conversa que eu tive com um colega de serviço. Eu lhe falara de meu tratamento e ele me disse, de forma ameaçadora, que eu nunca fosse ao Dr. Manuel, o pior dentista não só da cidade como de um raio geográfico de três mil quilômetros quadrados. Esse colega chegou a me mirar como aquele profeta cego dos idos de agosto do Júlio César, firmemente, com sua carinha de tartaruga simpática de olhos aumentados por lentes de dez graus de miopia, e a exigir que eu nunca, jamais fosse me consultar com o tal do Dr. Manuel. Para tornar o anúncio mais enfático, pôs-se a contar os eventos traumáticos que lhe ocorreram quando esteve nas mãos desse facínora com diploma de odontólogo. O Dr. Manuel lhe anunciara, quando esse meu amigo já estava deitado na cadeira para receber o procedimento, que estava faltando água no consultório, mas que faria o canal assim mesmo, sem mais problemas. Daí começa com a broca a perfurar o dente dele, o zum-zum-zum muito alto do pino rotativo raspando e retirando a parede interna do dente até chegar na raiz e, de repente – esse amigo continua contando – o que acontece? O dente começa literalmente a pegar fogo! A fricção da broca fora tão forte que queimou o dente e a boca do meu amigo. Saem dentista, auxiliar de dentista e cliente em polvorosa, cada um para um lado, desesperado à sua maneira. Aliás, meu amigo não sai, fica preso à cadeira, estático com a cara de desespero, sem saber direito o que estava acontecendo. Aparece, depois de alguns segundos que pareciam longos minutos, o Dr. Manuel com uma garrafinha de água mineral e lança a água toda na boca do meu amigo, o que lhe causa um engasgo violento ante a repentinidade da coisa e quase o mata.

Seria uma morte atroz, das piores, por ser carregada de dor, por ser coaptada a um afogamento, e por ser dessas mortes que, após o período de duas semanas ligeiras de respeito no memorial popular, passam a perder seu veemente aspecto de tragédia para afundar o morto na mais indigna lembrança do anedotário paroquial. O Dr. Manuel não só o mataria, como desonraria seu nome por todas as futuras gerações, como o do infeliz que se afogou numa garrafinha de água mineral enquanto seu molar se parecia com o edifício Joelma. Capaz até de dali a uma década esse amigo ser alvo de encenações escolares em que o gordinho da classe fosse amarrado na cadeira diante de um público de pais embevecidos e entediados enquanto lhe jogam água de uma garrafinha pet na cara, e o filho da putinha do demônio simulasse colocar os bofes para fora ao mesmo tempo que outras pestes de oito anos em torno inflamassem labaredas feitas de papel celofane, simulando a parte sagrada da piada do fogo no molar. Uma espécie de malhação do Judas.

Quando meu amigo me contou isso, eu fiquei chocado; percebi o ar humorístico acentuado por detrás, mas, por razão de estar com o pensamento voltado para outras bandas, não ri mais que um leve ensimesmamento labial. E não é que me lembrei dessa história na cadeira do dentista e a graça toda me veio de forma incontrolável? Senti os pulmões se agitando, querendo ir além da dimensão torácica usual. Ouvi minha voz interna se surpreender com a alegria errática demonstrada ao se deparar com a oportunidade rara do Grande Riso, do riso convulsivo, do gargalhar do choro. Êba, taí o Grande Riso de volta! Só que não era, definitivamente, o momento oportuno. Quanto mais eu tentava me concentrar em outros pensamentos, mais a imagem do meu amigo na cadeira, com os olhos arregalados e o dente em chamas, se apresentava com uma clareza impressionante. O Dr. Luís estava falando sobre algo relacionado a mulheres e o organismo humano, do organismo humano não reconhecer certas raízes dentárias e atacá-las, tão inesperado como o são as mulheres, e eu num franco desespero por não conseguir controlar a maldita de uma gargalhada que prometia tacar tudo instalado na minha boca para fora. Dei engasgos de modo que o Dr. Luís parou de falar, me olhou atentamente e perguntou se a anestesia não havia pegado, se eu estava sentindo alguma dor. Impus-me uma concentração budista, onde imagens da natureza me vinham na cabeça, folhas com orvalho, colibris, céus de tormenta. Mas meu amigo surgia inadvertidamente invadindo esses exercícios, com seu dente de fogo. Arrebanhei tragédias, a fome da África, mas nada adiantava. A onda subia em grande velocidade. Aí me lembrei, como última esperança, de um professor do colegial que um dia na sala de aula brincou com o público masculino sobre métodos de controle das inconveniências hormonais da adolescência em ônibus e outros locais que, apesar de nada estimulantes, forneciam incentivos estáticos a determinados músculos do homem. Pense na águia americana que, no frio extremo de algumas regiões montesinas, raspa o bico e os pés contra as pedras até minar sangue, para se aquecerem. Pensei na bendita da ave, majestosa, encolhida no ápice da montanha, com muito frio… e o sangue vindo à carne após sua autoimolação. Com uma força mental, só isso aplacou o forno que saía da boca de meu infortunado amigo. E foi com esse estoicismo que apaguei a segunda crença infundada de minha esposa, a de que eu tinha medo de dentistas.


Charlles Campos é escritor e leitor profissional no https://charllescampos.blogspot.com.br

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