Ensaio | Literatura


Saciturno
Ilustração de Amine Barbuda

O COVEIRO DE TUDO

março de 2018

Edição: 19


Goza, goza a flor da juventude
Que o tempo trota a toda ligeireza
E imprime em toda flor a sua pisada.

Oh não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

Gregório de Matos, “Discreta e formosíssima Maria”

Ainda que não por ofício, somos todos historiadores. No pior dos casos, somos os historiadores das nossas próprias vidas lidando com documentação. É o que acontece quando recolhemos aquele velho álbum de fotografias do fundo da gaveta e rememoramos momentos passados com gente querida e ausente, já meio apagados no registro frágil da memória, mas que, tão logo pomos nossos olhos sobre eles, avivam profundamente diante desse testemunho. Enfim, todos devemos lidar com essa grandeza que é o Tempo. O Tempo é o coveiro de tudo.

Nossas lembranças embaçam e se embaralham; mesmo as fotografias envelhecem e rasgam; os objetos que testemunharam as nossas vidas e as outras tampouco têm um destino melhor: tudo perece. O Tempo enterra até as emoções. E assim ficamos a historiar as vicissitudes de nossa existência, apanhando os ganchos do tempo com intuição, disciplina, observação metódica e, muitas vezes, com imaginação. E também com poesia: tudo nos salões do infinito será varrido por essa vassoura que não poupa sequer a menor partícula de poeira estelar. Mas, enquanto não somos tão habilmente varridos, registramos ou coletamos registros para vivermos melhor.

O tempo trota a toda ligeireza, e seu galope é incerto. Ele dispara nuns momentos, demora-se mais em outros: a cadência não tem muita constância. Podemos passar anos em relativa estabilidade e, então, num solavanco assustador, chegarmos aonde menos esperávamos devido a um desdobramento inesperado das circunstâncias. Digamos que alguém perca o pai, o emprego e termine o namoro numa mesma semana; isso parece uma reviravolta dessa marca. Ou que seu país entre em crise econômica e, por conta disso, a fome comova as camadas populares a fazer motins violentos e contestações políticas, culminando na morte dos líderes e na mudança da estrutura política para um regime totalitário; esse também é um bom exemplo de como às vezes o tempo desembesta num ritmo de mudanças ao qual simplesmente não estamos habituados. Essa descrição é familiar para quem viveu no Brasil nos anos recentes: sob a égide da polarização política, em muitos aspectos pareceu que o chão sob os nossos pés se desmanchava e o ar se rarefazia, uma pulverização das certezas; no torvelinho de explosões díspares das guerras culturais, desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff, as mudanças abruptas foram rudes, desconcertantes e assustadoras para quem não podia domá-las.

A História não envia arautos, ou os devora natimortos. Conduzir a História, encaminhá-la para algum telos, “objetivo”, do grego, é uma pretensão descabida, prenhe de confiança na razão. A ideia de controle é uma ilusão moderna de fôlego curto. O incipiente ceticismo de René Descartes, em seu Discurso do Método (1637), é capaz de sintetizá-la. Ainda que o mundo seja falso e mesmo que seja impossível confiar em nossos sentidos, há possibilidades de certezas: “Cogito, ergo sum”, penso, logo existo; raciocinava o matemático francês.  No entanto, essa confiança na racionalidade tem sido solapada e antes era simplesmente ausente. Durante milênios, as mitologias em sua melhor forma sugeriam que deuses controlavam os processos e regiam o Universo, até que a ambição renascentista os destronou em favor de uma visão cada vez mais mecanicista, materialista e antropocêntrica. Porém, Nietzsche, em Para Além do Bem e do Mal (1886), sugeriu ter sido Descartes vítima de uma armadilha de palavras. No “cogito” cartesiano há: 1) algo pensa; 2) creio ser eu quem pensa; 3) o primeiro ponto “algo pensa” contém igualmente uma crença, aquela em que “pensar” seja uma atividade que requeira um sujeito. O filósofo francês chega à conclusão de que “não sou eu quem pensa”, mas que algo pensa em mim. Para Nietzsche, seria falsear os fatos afirmar que o pronome pessoal “eu” seja determinante na conjugação do verbo “pensar”.

As noções de individualidade e consciência foram confrontadas na interpretação nietzschiana, e agora sofrem ataques da neurociência. As certezas modernas de livre-arbítrio, tempo e espaço, como os experimentamos, se dissolveram. Na verdade, as categorias tradicionais de passado, presente e futuro não fazem o menor sentido para os físicos teóricos. Para citar Einstein, a distinção entre passado, presente e futuro seria apenas uma ilusão teimosamente persistente, uma vez que não existe linearidade: tudo é um continuum. Contrariando o senso-comum, o tempo é um lugar. Ainda, outras interpretações físicas do tempo são mais radicais, como as múltiplas realidades paralelas da Interpretação de Muitos Mundos (IMM) do físico estadunidense Hugh Everett III (1930-1982). Tais abstrações são mais facilmente compreendidas quando transformadas em narrativa, como nos contos do livro Sonhos de Einstein (1993), de Alan Lightman, ou o episódio “Hang the DJ”, da quarta temporada de Black Mirror, que usa uma IMM, para mencionar dois entre inúmeros exemplos.

No século XXI, a História neutra, linear, totalizante, universal e grandiloquente tem cedido lugar a uma multiplicidade de novas abordagens, métodos e sujeitos. Sujeitos minoritários e quantas vezes esquecidos: mulheres, iletrados, pobres, operários, crianças etc., tomaram o cenário; assim como também os grandes enredos e as tramas nacionais deram lugar aos medos, o imaginário, os hábitos, a cultura popular, a alimentação. Quer dizer, a história fugiu do universalismo, e doravante se apoia no discurso pós-moderno fragmentário e plural.

Mas o ponto essencial é este: a história é uma só. Não há como destacar as histórias, a sua história da história do seu país; a história da sua escola e a história da sua cidade; a história do seu namoro e a história familiar de quem namora com você. São a mesma história, e quanto mais perspectivas considerarmos, melhor ela é contada. Assim, se você nasce na Inglaterra, provavelmente falará inglês; se nasce entre tribos indígenas na Amazônia, não. Ou: se você nasce e vive nos Estados Unidos no século XVII, uma gama de fatores o leva a não adotar o islamismo como religião, mas se nasce no Oriente Médio, sim. Somos nós que fazemos a História, mas sob circunstâncias dadas.

Outra história que frequentemente se esquece, ou que se desconhece por completo, é a “história natural”, que vai além de quando o homem se organizou em sociedades. Essa história é normalmente contada por físicos, biólogos e químicos. Raramente conectamos nossas histórias pessoais a um passado que nos parece tão remoto. Os mamíferos surgiram há cerca de duzentos milhões de anos e a Terra parece ter sido formada há não menos que 4,54 bilhões! Convém se lembrar de tudo isso porque, repito, é uma mesma história. Você só pode contar o último babado para alguém ou jogar bola com os amigos porque os mamíferos surgiram sobre a Terra há tanto tempo. Caso contrário, você nem estaria aí.

O que faz a minha história parecer diferente da sua é que eu a conto vendo a partir de onde estou, e você, como não poderia deixar de ser, a partir de onde está. Ou seja: contamos exatamente a mesma história, mas de lugares diversos. E como afinal ela é comprida demais, nem eu vou contá-la toda, nem você, por mais que nos esforcemos. É atribuída a Leonardo da Vinci a famosa frase “Os olhos são as janelas da alma e espelho do mundo”. Mas, se há um par de olhos para cada indivíduo, chegamos à conclusão inevitável de que o mundo está espelhado de tantas e distintas formas quantas são as pessoas. Ora, nosso mundo está grávido de problemas, uma porção deles derivados da falta de percepção das circunstâncias em que vive o outro. A alteridade tem se revelado um exercício difícil, cuja ausência redunda em preconceitos e proselitismos. As outras histórias, todas elas, são também a história da minha trajetória pessoal.

O Brasil, meu país, é pobre. Há quem diga que ele é rico, o mais certo é dizer que é rico, mas a população é pobre. Meus antepassados mais recentes conviveram a maior parte dos seus anos sem as benesses das tecnologias avançadas, excluídos do vórtice dos produtos do capitalismo global. “E daí?”, você pergunta como quem dissesse “Que tenho eu a ver com seus pais pobres?”. Mas isso não é uma lamúria, apenas uma constatação: meus pais são descendentes indiretos de escravos negros da época do Brasil colonial. Repito, é a mesma história, a minha e a do meu país. Mas eu a conto de modo bem diferente dos arquivos nacionais, ainda que não a contradiga. E eu tenho um pequeno palpite de que se fosse descendente de algum rei europeu da época do Brasil colonial, meus pais e eu mesmo teríamos outra identidade, outra vida, outra cultura. O que sou está diretamente relacionado ao passado.

Ainda que os ignoremos, elementos distantes, muitos acontecidos em outros países, interferem diretamente em nossas vidas pessoais. E não apenas os elementos históricos. As regiões distantes no globo estão muito conectadas, mais do que em qualquer outra época anterior. Nem sempre foi assim, alguma coisa aconteceu da lá para cá. Poderíamos identificar isso como sendo um produto de revoluções, quer dizer, mudanças abruptas. Eric Hobsbawm assinalou que um camponês medieval na Europa se parecia mais com os legionários romanos de oitocentos anos antes, do que nós com a geração dos nossos avôs que ainda visitamos no fim de semana.

Antes do século XVIII, e consequentemente da Revolução Industrial, e mesmo durante, os portugueses exploravam o ouro de Minas Gerais e enviavam à Europa, notadamente para quitar suas dívidas com a Inglaterra. Para que a Revolução Industrial ocorresse era necessário muito investimento, acumulação de capital, quer dizer, muito dinheiro: e eis que lá estava o ouro das minas brasileiras. Ouro que havia sido retirado por trabalhadores africanos: trabalhavam muito, mas não enriqueciam – eram escravos. A escravidão acabou. O tempo a deixou para trás. Mas, se ele sepultou mesmo a escravidão, será que não restou ao menos uns ossinhos? Caetano Veloso retoma as palavras de Joaquim Nabuco em seu álbum Noites do Norte, de 2000: “A escravidão permanecerá / por muito tempo como a característica nacional / do Brasil”. O pior argumento do mundo seria afirmar que esse fenômeno se dá porque os negros são natural ou biologicamente inferiores: a humanidade surgiu na África, todas as teses corroboram essa ideia – inclusive todas as teses da biologia. O contraste de cor é ainda flagrante em nossas favelas e shopping centers. Vá lá, não é um exercício muito difícil.

Por mais que o tempo vá deixando tudo atrás de si, isso não se dá de maneira imediata. Quando o capitalismo suplanta o feudalismo, leva-se ainda bastante tempo para que as estruturas feudais cedam o lugar. Ainda que falemos muito delas, mudança abrupta é coisa rara na história. É como quando um ente humano morre: as células não se dissipam em pó imediatamente. Ao contrário, depois de morto, o corpo ainda é um corpo, apesar de as principais funções vitais haverem cessado. Assim, se é verdade que tudo dali para frente definha até que deixem de ser completamente o que foram, é igualmente verdade que esse processo nada tem de imediato. As estruturas se confundem em passado e presente. Eu já vou ficando velho, ao menos mais velho que ontem. E vou de encontro ao futuro, com mais pressa do que eu queria. Sempre que posso, vou revisitando as minhas memórias, porque não sei fazer diferente. Passado, presente, futuro: como todos vocês, eu também vou fazendo história, a despeito de estar dentro dela.


Juliano Dourado é historiador

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