Selfie | Cênicas


a dança
Amine Barbuda

Selfie a partir de experiências vividas na imersão Palhaças Bem Vindas Sois Vois com Felícia de Castro em Salvador-BA e com o LUME Teatro em Campinas-SP.

O aquecimento do ar e sua subsequente expansão, se atravessados por uma descarga elétrica, gera um som chamado “trovão”. Alguns seres também são chamados assim quando atuam como catalizadores e podem utilizar todo potencial de energia que têm ao alcance para concretizar a tarefa pretendida. A energia é toda deles. Os seres-trovão devem selecionar a parte dessa energia que lhes serve e invocá-la, para então gritar seus planos e realizá-los.

I – O Aquecimento

Em diferentes momentos e situações, Ser-Trovão, aqui personagem, havia escutado/lido sobre os muitos caminhos para se conquistar um corpo mais dilatado, mais presente, mais disponível para a cena: seja pelo esgotamento físico, seja pelo trabalho com objeto e imagens, seja pela mímese corpórea, pela dança pessoal… O que Ser-Trovão ainda não sonhava era ver ativado esse processo a partir de um olhar já conhecido. Aliás, ter nesse olhar uma espécie de recondução ao desejo que lhe motivava funcionou como confirmação de que as experiências sempre nos relocarão e nos tornarão outros.

O olhar de Felícia, em cena, por mais de uma vez, levou Ser-Trovão à inquietação da criança que indaga: “como se faz isso?”. Quando Ser-Trovão o reencontrou  fora dos palcos, mas ainda em situação de afetação, sentiu-se convocado à condição da disponibilidade e inteireza, fato que o encorajou a saborear, pela respiração, pelo suor, as próprias emoções ressignificadas em energia que ia transpondo seu corpo.

Esse traspassamento se cumpriu a partir de diferentes motores: a dança, a brincadeira, o jogo, o silêncio, o ritual, mas sobretudo devido àquela presença derramada por um olhar que entusiasmava e aquecia – o olhar de Felícia a acenar: “Palhaças, bem vindas sois vós!”

II – A Expansão

Com o espírito abrasado, Ser-Trovão seguiu rumo à Terra Lume, tendo como farol a palavra cnica que, associada aos vocábulos treinamento e ator, a povoou de muitas expectativas.

Jesser, de sorriso circense, confundiu nossa personagem quando propôs um processo muito mais revolucionário do que ela podia imaginar. Se muitos dos mestres mais conhecidos se tornam famosos pela severidade, rigidez e gritos exaltados, o mentor já mencionado escolheu exercitar a precisão, a prontidão, o rigor e outros elementos caros ao corpo cênico trilhando a generosidade e a percepção do que se fazia imprescindível a cada momento e àquele grupo.

Ser-Trovão precisou de um tempo para se deixar contagiar pela atmosfera que se instalava e, quando se deu conta, já estava experimentando tudo que havia almejado quando decidiu seguir à Terra Lume. A expansão então se deu no momento em que Ser-Trovão recebeu do céu – apesar de chuvoso, bastante quente – o seguinte recado: quem cria as expectativas é quem deve superá-las, para assim superar-se.

III – A Descarga Elétrica

Estando na Terra Lume, Ser-Trovão decidiu assistir, pela segunda vez, o espetáculo da atriz Ana Cristina Colla, SerEstando Mulheres.

As impressões e sensações da primeira ocasião, em abril de 2017, foram revividas nesse reencontro de janeiro de 2018. No entanto, a experiência se tornou ainda mais acentuada por estar Ser-Trovão agora aquecido e em estado de expansão. A nossa personagem já conhecia a precisão e o desembaraço dos quais se valia Ana Cristina para transitar entre mulheres, universos e intensidades muitas vezes opostos; contudo a atenção de Ser-Trovão se voltou para outros aspectos daquele acontecimento: o modo como a atriz pisava, rolava, saltava, expandia ou contraía a própria energia.

Ana Cristina Colla materializou, aos olhos de Ser-Trovão, todos os princípios do corpo em cena que vinham sendo explorados pela nossa personagem naquele mês. A atriz era o tal olhar, a tal raiz, a tal presença, a cada respiração, em cada detalhe. A radiância daquela figura veio em forma de luz, episódio que no universo de Ser-Trovão costuma se chamar relâmpago.

Todos esses lugares por onde Ser-Trovão pôde transitar carregavam consigo o acolhimento como preceito. É de conhecimento geral que o trovão, quando se cumpre, assusta a muitos, seja pelo estrondo, seja pela imprevisibilidade.

A nossa personagem, ainda em processo de tornar-se, teve seu gênio acalentado e, a cada passo dado, experimentou repetidas vezes deixar a energia circular, permitir-se  afetar. Caso Ser-Trovão venha um dia a realizar sua natureza, aprendeu que o seu som, assim como a palavra, deve chegar na condição de celebração de aquecimentos, expansões e descargas elétricas constantemente integrados.


Bárbara Pessoa é dramaturga e arte educadora

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