Ensaio | Cênicas


Foto de Mariana David

Anotações sobre uma poética da dissolução

Sinto uma opressão no peito: algo em mim parece estar sendo comprimido, suprimido, sufocado. Compreendo, depois de muita angústia, que isso tudo pode não ser nada: um nada que precisa de espaço; um nada que preciso ser. Nada, nada, nada, repito, e me remeto ao ato contínuo: permaneço em movimento nas águas de um rio. Estou sempre afogada e, no entanto, tempos descontínuos coabitam em mim: não paro de cantar, ainda louca e acordada, deslizando pela flor da superfície.

A emergência do que me afeta, o que clama por existir, é estético e violento, evoca um tempo em que o próprio tempo se reinventa, onde histórias são redimensionadas, paisagens são reconstituídas, um tempo em que corpos eclodem e não apaziguam. Alastram-se centelhas furiosas por dimensões múltiplas, asseverando o ato lancinante de expressão. Esse é, muitas vezes, um tempo que explode, cujo silêncio trinca os vidros: é um tempo em que o teatro insurge em mim.

Imagino criar como quem medita à beira de um riacho. Criar e desentulhar o corpo, o pensamento, a rotina, a memória, o desejo. Criar e devolver o corpo ao nada, desestressar-me do hábito de cumprir demandas, resolver as coisas; despreencher. E abrir um buraco no concreto armado exige um trabalho de grande dedicação, ânimo e vigília.

Vou sendo conduzida à vertigem da criação e vislumbro um transbordamento de sensações em formas estéticas, a diluição de hierarquias e normas hegemônicas, a irrupção de uma expressão que excede a linguagem habitualmente empregada. Essa visagem mobiliza-me em cada tecido do corpo, anima um sem-fim de devires.

Passo, então, a trabalhar possibilidades de criação em deriva, pesquisar os descaminhos. Burlo o bom juízo que pede que eu seja produtiva, respondendo que, sim, produzo: restos, intervalos, pequenas mortes. Onde sinto a exigência de uma postura  prática, pratico o sonho sobre um chão de madeira ou num terreiro, ou pelas calçadas; reúno, como se fossem conchas, dúvidas, sonhos, intuições, angústias. É assim também que escrevo este ensaio, na linha tênue entre ordenação e delírio.

Entoo uma oração às águas: que elas restituam às relações comuns sua porção mágica. Pesco palavras, sons e movimentos no vão do pensamento. Respiro, sempre e de novo, deito, ou sento, ou deixo-me estar como estiver. Solto-me na imensidão do agora-em-mim, sou cada peixe que morde meu anzol.

Nesse teatro que vai sendo operado, o que se percute é o caos em que mergulho e onde nos encontramos. Um teatro que se compõe na experiência renovada do desconhecido, na relação contextual com diversos sujeitos e ambientes, e na ativação do delírio, do sonho e da visagem. É um teatro que trabalha a ritualidade, sem se conformar em ser um “teatro ritual”, que se arvora a dialogar com o invisível. Nas lacunas que a cena (quantos abismos essa palavra é capaz de suportar?) cria ou revela, há uma voz que diz que é possível parar um pouco, subir num salgueiro, cair num rio, deixar-se afundar cantando, celebrando a morte cotidiana. Desejo encharcar os vestidos de quem me cerca, convidar à submersão. Tudo (não) faz sentido, esteja aqui comigo.

E estar aqui é suportar o vórtice dos aparecimentos e ritualizar a presença, num deixar-se conduzir pelo magnetismo de cada corpo que está ou esteve, e cuja vibração permanece. É afirmar ao máximo nossa capacidade de afetar-nos pelo que compõe nosso ser aqui[1], nesse tempo/espaço em que podemos existir.

A cena foge ao longo da imprecisão de suas marcas, da incerteza sobre seu início e fim. Mesmo acontecendo num espaço definido, num espaço marcado e divulgado enquanto lugar de apresentação de um trabalho artístico, ela perde-se por entre ruídos, marcas nas paredes, variações de temperatura. Ela transcorre num espaço intersubjetivo, num fluxo que se compõe pelas trocas sutis entre os agentes envolvidos. Esses agentes são tanto os artistas que desenvolvem a obra quanto o público que a compõe a cada dia. Não há um material preparado de modo fechado que o público assiste e, a partir daí, pode ou não fruir a depender de sua afinidade e repertório. O que há é um arranjo de chaves através das quais artistas e público podem ir – ou não – se engajando, numa performance de aproximação e numa reformulação do tempo.

É preciso desativar em toda parte os efeitos de cálculo econômico, nem que seja para saber claramente onde somos afetados pelo outro, isto é, pelo imprevisível, pelo acontecimento que, ele sim, é incalculável: o outro corresponde sempre, por definição, ao nome e à figura do incalculável. Nenhum cérebro, nenhuma análise neurológica supostamente exaustiva é capaz de proporcionar o encontro com o outro. O advento do outro, a chegança daquele que chega, é (este) que chega enquanto evento imprevisível.[2]

 Na espera por esse outro desconhecido, que é o público, articulamos uma série de autorizações, nos dispondo a sucessivas aberturas: permitimo-nos silenciar, escutar, esvaziar, mover, olhar, descansar, estar, escapar, retornar. Nessa ética de criação, arte e vida se confundem, de modo que a responsabilidade de estar em cena ou em processo de criação é a responsabilidade de presentificar-se na própria vida, animando suas possibilidades. Atuar passa a ser interatuar, ou seja, estar em interação com o ambiente, ampliando os canais desta interação para ativar a escuta-presença dos sujeitos que ali se agregam.

Ao longo do processo criativo, a dramaturga é feita num conjunto de ações que servem como disparadoras de situações, a partir das quais a cena se desenrola de modo randômico, junto aos elementos não antecipáveis que rebentam em cada momento. Trata-se de uma composição porosa, uma cena-não-cena radicalmente disponível à interação com o contexto em que se insere, “uma prática ‘acutilante’ e humorada que chacoalha a separação entre arte e não-arte. Que lança o corpo do artista na urgência do mundo e a urgência do mundo no regime de atenção artístico”.[3]

Não há um estado ideal para viver esse processo criativo, mas a preparação para essa vivência é uma espécie de luta contra o assoreamento do fluxo do tempo, uma ampliação da vazão dos leitos, um desentupimento de canos, uma sucessão de aberturas de vias pelas quais a vida se materializa. Não são os repertórios de movimentos, de gestos, de entonações, de expressões, de técnicas dos performers que vão fazer a diferença neste processo. O repertório que importa aqui é o dos contatos vertiginosos com a inquietude, das batalhas travadas na carne, em cada músculo, da precipitação em cada sensação percorrendo cada poro, dos tantos confrontamentos com a própria máscara, com a própria história, com o próprio ímpeto. Esse repertório é constituído numa trajetória intensiva de experimentação artística, a partir de um treinamento dedicado e, muitas vezes, estafante, de abertura ao imponderável e de maquinação de modos pelos quais transfigurá-lo, transmiti-lo ou traduzi-lo em arte.

E, mormente,

remar contra a maré numa canoa furada

Somente

para martelar um padrão estóico-tresloucado

De desaceitar o naufrágio.

Criar é se desacostumar do fado fixo

E ser arbitrário.[4]

Quanto mais erramos, quanto mais enormemente quisemos e fracassamos e ainda assim quisemos mais e mais e entregamos nosso corpo em sacrifício – não um sacrifício de expiação, mas de transfiguração –, refazendo novos atos criativos, mais cada um de nós, artistas, estaremos abertos a aceitar o vazio, a ceder à catástrofe maravilhosa da vida que se desabotoa e a criar, loucos, à beira do riacho. É na permissividade a nossas marcas mais intensas, nas rachaduras que as compõem, que a loucura vai abrir um veio por onde escoar-se longe das patologias e nos impulsionar a nadar e nadar pelo mistério da criação.

Um elogio à determinação do agente e à indeterminação da vida. Uma prática que exige tônus e flexibilidade, planejamento e abertura, disciplina e presença de espírito. Mas então, como preparar-se para performar? Ouso uma resposta: vivendo a vida.[5]


[1] Ecos da leitura de trechos da tese da atriz e dançarina Alda Maria Abreu. A tese ainda está em processo de escrita, consequentemente ainda não disponível para consulta pública.

[2] Trecho de Derrida, citado em artigo “O corpo e suas heranças: uma leitura de “o africano”, de Cássia Lopes.

[3] Trecho de “Programa performativo: o corpo-em-experiência”, de Eleonora Fabião.

[4] Trecho do poema “Sargaços”, de Waly Salomão.

[5] Trecho de “Programa performativo: o corpo-em-experiência”, de Eleonora Fabião.


Raiça Bomfim é atriz, escritora e produtora

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