Ensaio | Audiovisual


O som ao redor
Kleber Mendonça Filho

Quem já presenciou o vai-e-vem glamuroso dos festivais ou já foi hipnotizado pela variedade de camisas estampadas com flores, geometrias graffiti e caveirinhas, não suspeita que aquelas pessoas estejam, na verdade, absortas na nobre tarefa delegada aos cineastas do segundo milênio: capturar o real.

Não o real monolítico da “verdade histórica” e suas restaurações ufanistas, que renderam tanto orgulho ao general Geisel. Nem o da miséria nordestina. Sequer o western for export do traficante favelado. Se quiséssemos acompanhar a história cinematográfica do real nos últimos dez anos, teríamos que apontar nossas lentes para a ascensão e queda da classe média, essa criatura tão odiada por Marilena Chaui quanto aguilhoada por Jair Bolsonaro.

Alguma coisa na nossa sensibilidade mudou. Talvez já não sejamos capazes de chorar com a morte da mãe veada de Bambi (1942), mas basta que a filha de Val resgate o conjuntinho de café no final de Que horas ela volta? (2015) para que nos debulhemos em torrentes de lágrimas.

No plano da forma, aí está o nosso típico gran finale. Desde Central do Brasil (1998) – seu ancestral titânico – o filme “de arte” nacional tem sido amparado por situações ostensivamente singelas, protagonizadas por personagens da classe média ou baixa e fotografadas com uma austeridade franciscana, que, no frigir dos ovos, é absolutamente bela.

Essa nova poética progressista-sentimental, que tomou o lugar do marxismo delirante do intelectual esquerdo-macho do século passado (relembremos a histeria de Glauber ou a cantilena retórica de Darcy), retoma o enquadramento sociológico do velho naturalismo ligando-o ao que de mais contemporâneo tem circulado em termos de produção de imagem. Para se ter uma amostra dessa genealogia improvisada, basta recorrer aos filmes premiados do cinema iraniano, tailandês e coreano, e compará-los aos filmes realizados recentemente no Brasil.

Descobre-se então que o cenário é sintomático. Numa entrevista de quatro anos atrás, Kleber Mendonça Filho identificou a produção de um filme com o ato de “levantar a mão para participar num debate”. Essa é a mesma tônica de uma entrevista com outro pernambucano, Marcelo Pedroso. O ex-jornalista passa boa parte do tempo justificando-se frente à militância por ter feito um filme em que frequenta a PM de Pernambuco. As perguntas do entrevistador, fazendo jus ao espírito do tempo, também não o deixam escapar.

Nos seus dois longas, Kleber só tira a câmera de sua fixidez para nos mostrar, em raros zoom-in’s e travelling’s, as contradições sociais que, distribuídas cuidadosamente na superfície dos quadros, aparecem incorporadas em objetos cotidianos e pequenas ações. A sua poética é a do dedo-que-aponta. No sentido gramático e investigativo, é indicial. Se a câmera abandona sua neutralidade dissimulada de cobra na moita, será sempre para nos revelar, sublinhar ou denunciar algo. Em Aquarius (2016), ele quer nos mostrar a mobília herdada da família burguesa, para a qual a câmera se volta constantemente como se insistisse num trauma. N’O som ao redor (2013), há o eterno retorno do beijo escondido dos estudantes atrás dos edifícios burgueses, há a favela vista de um plongée celestial, há o surpreendente close na orelha acupunturada de uma gorda neurótica.

Subsiste em tudo um voyeurismo passivo-agressivo, quizila de uma classe média esclarecida que só poderia se diferenciar do mal que ela mesma representa desviando-se pelo caminho da redenção moral. Em boa parte dos filmes pernambucanos da nova cepa isso se dá numa espécie de poética da delação. Nela, a cena do crime é projetada como natureza-morta: “Filhos negros de empregada sobre sofá branco em apartamento burguês”. Agora caberá ao espectador – já tornado uma espécie de detetive sociológico – decifrá-la.

Mas infelizmente – e é isso que nos contam seus filmes – a classe só poderá superar as barreiras domésticas através de um brechtianismo à brasileira e uma auto-derrisão irônica; no fim das contas, um sadomasoquismo de bom coração.

É em meio a essa austeridade de franciscano progressista que surge o que chamo de “plano pernambucano” – o que não o impede de dar as caras em filmes mineiros, paulistas e brasilienses. Alguns cearenses também não escapam.

Não chega a ser uma regra, mas traz consigo a arbitrariedade de toda tendência. Nela vemos atuarem os paradigmas centrais do cinema brasileiro contemporâneo, sua etiqueta de qualidade, repetida à exaustão na maioria acachapante dos festivais: o diferenciar-se do objeto através de sua despotencialização (vide o tônus de barata dos atores/não-atores), o ressecamento radical da mise-en-scène, o enquadramento de aquário ou de jaula (de onde os personagens são observados sempre de um ponto de vista “neutro” e exterior), e um lirismo apenas suportado enquanto acidental (como em Boi Neon, 2015).

No fundo, e apesar das escassas palavras faladas, sentimos que esse cinema queira nos dizer qualquer coisa importante. Mas o curioso é a zona de sombras que deixa entrever. Mesmo sendo extremamente eloquente – e digo isso no sentido em que cada plano traz, nas suas entrelinhas, um texto a ser lido, um discurso a ser proferido, uma crítica colonial a ser decifrada – ele não recorrerá, sob nenhuma hipótese, ao grito, ao movimento excessivo ou à teatralidade. Parece que tenta se libertar de qualquer jeito dos excessos de uma cinematografia “tipicamente brasileira”, o que, aliás, é o seu grande fantasma. O seu som ao redor.

Atingir alguma dignidade diante dos padrões de qualidade internacionais não é fácil – tampouco natural. Ninguém começa uma carreira com um chip de padrões inserido; isso tem de ser arduamente aprendido. É uma luta difícil, a de não ser vira-latas. Os próprios curtas de Kléber, imediatamente anteriores a’O Som ao Redor, padecem do antigo mal dos trópicos.

No Brasil, desvencilhar-se da teatralidade – encarada há tempos no cinema europeu como parasitária –  foi a tônica desde os anos 80. Tomemos como exemplo a obra de Cacá Diegues. Se em Bye Bye Brasil (1979) já vemos um histrionismo tímido, adestrado mas ainda presente nas cores quentes da fotografia ou na dicção afetada dos atores, Xica da Silva (1976) sofrerá ainda de todas as chagas da rudimentaridade audiovisual: dublagem distante e fora de sync, mise-en-scène tosca, a montagem dura e aquela falta de continuidade de fazer yankee chorar (de rir). Apenas três cineastas conseguiram extrair a máxima potência desses problemas crônicos, porque emanciparam o naïf em direção a um delírio criador: Glauber Rocha, Rogério Sganzerla e Joaquim Pedro de Andrade. Neles tudo vibra e grita – como na vida.

A lição do ressecamento cinematográfico pode vir da pintura medieval: para imprimir um mundo de contrastes (bem/mal, mortal/deus, demônio/santo, homem/mulher, rico/pobre, senhor/escravo etc.) é necessário achatá-lo contra a parede e impor-lhe um fundo homogêneo, que favoreça o destaque das formas. Uma obra exemplar tirada da nossa própria época poderia ser a foto aérea da Avenida Paulista durante as manifestações de 2014: lá embaixo uma superfície totalmente cinza, com verdes e amarelos de um lado, e vermelhos e pretos do outro. No esquema do ressecamento neonaturalista, cada personagem deve transformar-se em alegoria social, mas é claro, sem perder de vista sua humanidade (essa humanidade, em cinema, significa a pasteurização da vida real – o que significa remendar as diferenças pelos pontos medianos ou mais baixos). Faz-se necessário, ainda, colocar-se em posição de observador. Acima de tudo, ter um ponto de vista. Lembrem-se: a consciência política, engajada, militante, deve estar muito bem encaixada no corpo, como uma câmera no tripé. O campo e o fora-de-campo devem integrar um conjunto perfeito; ter seus limites muito bem determinados (sem tremeliques, por favor), e coexistir numa relação dialética dura: o que está dentro do discurso versus o que está fora.

A câmera fixa no cinema contemporâneo é o correlato da consciência pós-moderna obcecada por sua própria higienização moral. Quando Gabriel Mascaro distribui câmeras aos filhos da classe média em Doméstica (2012), dá as cartas de um jogo instigante, mas perverso. Há aí um sadismo (muito similar ao dos próprios câmeras-mirim do filme) que antecipa o que virá da própria classe. Se, na história da arte, ao pobre foi reservado o papel do engraçado, e ao rico, o do desprezível ou divino, o que se poderia esperar da classe-média, senão o ridículo? O mesmo ocorre em Pacific (2009), de Pedroso.

Mas basta que desçamos ou subamos radicalmente na escala social para que o mundo filmado comece a entrar em colapso, levando junto, num vórtice, toda a complexa aparelhagem cinematográfica. Descobrimos, então, que algo como um real cotidiano estável (o apartamento, a família, a empregada, o rebelde, o burguês, o chefe, o peão etc.) só pode ser erigido com base nas vivências da classe média. Pois então. Qual seria o real de Estamira (2006), a habitante do lixo? Como a câmera deveria se portar frente a uma personagem que convoca tempestades na realidade? Posta em meio a um ritual marginal onde trabalhadores africanos comem cachorros ou tocam fogo em si mesmos, como a câmera de Jean Rouch poderia se comportar, em Os Mestres Loucos (1955), senão saindo de sua placidez etnográfica rumo a um olho ativo que, indo de um lado para o outro em velozes panorâmicas, seleciona o que o desejo quer realmente encontrar?

De toda maneira, o plano fixo contemporâneo – enquanto encarnação de uma consciência estético-política bastante específica dos nossos tempos – guarda algumas boas possibilidades. Dentro dele o tempo pode fazer sua casa; e a morada do tempo é a duração – uma duração palpável, física, tangível. Uma das melhores descobertas do cinema recente (em parte devidas ao cinema oriental) é a utilização da monotonia do quadro como armadilha para capturar fantasmas, acontecimentos e acasos.

No recente longa mineiro A Vizinhança do Tigre (2014), fica claro o recorte de mundo escolhido: estamos na periferia de uma pequena cidade do Brasil. Há as paredes rebocadas, os tijolos quebrados, o mato escapulindo pelas frestas, as ruas barrentas, as casas estreitas e coladas umas nas outras. Mas os personagens aparecem difusos como fantasmas. Entram e saem incessantemente dos limites do quadro, deixando-o por vezes aparentemente vazio. Os silêncios parecem medidos o suficiente para que não assustem o trabalho do tempo. Há muita coisa sutil agindo no filme, apenas para trazer à tona um real insuspeitado, que, irrompendo, violenta todos os vícios de um olhar sociológico e político-social ao qual, ao longo desses dez anos, fomos nos acostumando sem perceber.

Emergência parecida vibra na obra do tailandês Apichatpong Weerasethakul. Aqui a persistência dos quadros fixos e extensos transforma a tela num portal de contato entre mundos. Uma cena já clássica é a aparição da criatura da floresta em Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives (2010). Numa noite quente e cheia de insetos, a família se reúne em volta de uma mesa na varanda de uma casa humilde, cravada no coração da mata. Apenas um foco de luz incide sobre o quadro. Nosso olho vai se acostumando com aquilo, até cansar. A conversa é trivial. Súbito, o tio olha para o fora-de-campo como se olhasse para o espectador. A família o acompanha. Ele chama o nome de alguém. Silêncio e grilos. Corte. Intuímos, na escuridão, uma escada que levaria ao andar de baixo. Temos que ajustar o foco do olhar mais uma vez. Sons de passos. No meio da imagem, dois pontos vermelhos sobem lentamente. O monstro pára no meio da escada. Um diálogo entre os dois planos fixos continuará, até que Boonsong, o primo transformado em monstro peludo, venha juntar-se à mesa com os outros. Assistimos durante dois minutos e meio ao encontro de duas dimensões. A fala do tio e do monstro são direcionadas para o extra-campo; para a nossa dimensão. Nós somos o portal. O real permanecerá, do começo ao fim, em aberto.

Agora voltemos à classe média, e a tomemos em sua melhor forma: já liberta dos imperativos do plano contemporâneo, indicial, sociológico e sádico. Vamos supor que, por meio de um processo similar ao das “alminhas” que João Ubaldo Ribeiro invocou em Viva o Povo Brasileiro, um cineasta russo do início do século XX tenha resolvido encarnar no corpo de um representante do brasileiro contemporâneo médio. Ronaldo Dziga de Almeida Vertove acabou de comprar uma câmera digital e levou sua mãe evangélica, sua namorada, seu irmão menor e seu primo alcoólatra para um piquenique à beira do rio. Enquanto vai pegar mais uma long neck no porta-malas do carro, escuta um barulho estranho vindo de longe, acompanhado de ventos fortes. Sua mãe já está na margem do rio juntando as mãos em fervorosa prece. Mal tem tempo de abrir a garrafa. Acionando a câmera sem saber direito para onde apontá-la, Dziga de Almeida filma galhos de árvore e pedaços de chão, que giram em velozes espirais. Finalmente consegue enquadrar. Sobre o que se passa ainda um pouco ao longe, narra o que não podemos ver: “Um redimunho, um tornadinho!”. Abandona o plano fixo e, aproximando-se à beira do rio, encara a verdade. Um arco-íris se forma em meio à água levantada pelo redemoinho. “Mamãe, é Deus, mamãe!”, grita Dziga, enquadrando sua mãe, que, às lágrimas, dispara palavras tiradas do evangelho. Sim, todos pactuam a evidência do milagre. Mas enquanto a mãe pragueja em primeiro plano, a câmera-olho de Dziga busca o misterioso cavalo branco ao fundo, recortando-o dificilmente entre os irrequietos braços maternos. Prontamente o cavalo branco se transforma em unicórnio, e, coexistindo com o arco-íris, o vento e a pregação da mamãe, versa sobre um Deus infinitamente poderoso, que envia incessantemente, a cada era, novos Signos da Aliança.

Ao final da comoção, Dziga precisa de um tempo para respirar. Junta-se à namorada numa rede multicor posta entre duas árvores, deixando a câmera repousar no tripé. Temos então um auto-retrato, uma selfie, um tempo em suspensão, onde encontramos Dziga, de lupa espelhada e sunguinha floral, suspirando fundo e prazerosamente ao lado de sua parceira Vanessa, que, depois de alguns necessários segundos de silêncio, sentencia: “Todo mundo é bonito, só que tem uma beleza diferente.”

O primo alcoólatra passa com uma garrafa de Skol, quebrando a harmonia do quadro. Desanuviado de sua paz momentânea, Dziga retoma a câmera com tripé e tudo, e, fazendo um travelling mais ou menos bêbado até o carro, focaliza sua mãe novamente, que, atrás do automóvel, bota uma música evangélica no talo. No banco do motorista, com a porta aberta, senta-se em lótus o irmão gordinho de Dziga. Com apenas uma sunguinha preta emoldurando sua pança, ele aparece, aos olhos de Dziga, como um pequeno Buda. Depois de algum tempo encarando a câmera, o pequeno Buda faz muxoxo, com suas mil máscaras douradas. Aqui é onde tudo acabaria. Mas antes do corte final, o Buda nos presenteia, na sua extrema sabedoria, com um fechar de olhos em estilo zen: “Tudo é falso… tudo é tão real…”.


Daniel Guerra é editor da Barril, crítico de arte e diretor de teatro

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