Selfie | Cênicas


S E L F I E

março de 2016

Edição: 1


A escatologia jamais poderá deixar de se valer das prerrogativas do clichê. Eles nos são úteis há milênios. Fazendo bom uso de uma frase feita e de sentenças prontas podemos começar muito bem um discurso sem soarmos pretensiosos, assim distanciando-nos da iconoclastia, da 

originalidade. E o interessante é que podemos buscar raciocínios equivalentes em aspas que convocam à mesma mesa naturalistas marcianos e escritores sauditas de autoajuda.

“Quer pouco: terás tudo/ Quer nada: serás livre”. “Eu não quero promessas. Promessas criam expectativas e expectativas borram maquiagens e comprimem estômagos”. O primeiro é Fernando Pessoa, a segunda é Tati Bernardi. Por aí.

No nono dia deste mês marcial fui ao teatro Gamboa Nova ver o Pequeno manual dos amores em andamento sem saber nada sobre nada. A expectativa era a de quem constrói sua modesta quarta à noite alicerçada numa peça escolhida a esmo na agenda cultural.

 

Tinha uma noiva ébria fingindo beber da boca de uma garrafa fechada de Johnnie Walker. Tinha uma cantora de forró (amiga do diretor) que subiu ao palco com um sanfoneiro (amigo da cantora). Tinha encenação de improviso ao estilo Quinta Categoria (MTV) e Barbichas. Tinha reprodução ipsis litteris da piada de Gregório Duvivier sobre a pronuncia brasileira do nome Woody Allen. Tinha esquete histriônica sobre a viadagem enrustida na cultura do futebol. Tinha homenagem ao professor presente na plateia. Tinha até, acreditem, piada sobre Paulo Coelho. 

Tinha bastante coisa para entreter os conhecidos do grupo sobre o palco.

Nada disso me incomodou: reclamar de amigos se divertindo é meio estúpido. Resolvi não me achacar. Afinal, a amizade é das coisas que ainda valem a pena. Além disso, há o argumento pragmático. Eu, no caso, sou formado em Letras. O que se espera de um profissional da minha área? Trabalhe numa escola pública, finja que ensina e os alunos fingem que aprendem. Com sorte você sai vivo. O ser humano se forma em teatro, finge ser engraçado, a plateia no escuro finge se divertir. Justo. Daí poderíamos partir em direção a um forte etmoepistemológico bem pedante a respeito do conceito de fingimento na arte (fictione/fingere/mimese/até quando no início era o verbo). Há coisas mais, porém.

O problema naquela noite estava comigo. E com Candeias. 

No início do processo, o rapaz que se dizia diretor performava de maneira bufa coreografias do arrocha e interagia com o público dizendo como aquilo o emocionava. Silvano Sales e outros artistas embalavam a primeira fase da noite, que funcionava no sentido de trabalhar a empatia com os espectadores escondidos na penumbra. Para o bem ou para o mal, hoje não há como ignorar a lira de Pablo, todo mundo na Bahia – e quase no Brasil – tem um pé dentro ou fora do arrocha. A putaria da dança, a qualidade controversa dos arranjos (playback de teclado, saxofone), o coração rasgado, sofrido e ridículo a um só tempo. Voltando à intro, o tom utilizado pelo ator/diretor foi aquele já bastante conhecido pela classe média baiana: dizemos gostar de arrocha, mais pela esculhambação da coisa que pelo movimento, mas ao mesmo tempo cultivamos os mais tenebrosos preconceitos dentro de nós. Desses deliciosos paradoxos.

Adolescente, eu imitava Silvano Sales. Com o punho dobrado e as ancas em oito pulsante, eu forçava a garganta em trava entoando os: “Quando você me deixou/a minha vida desabou”, “A ferro e fogo não dá”. Meus amigos adoravam a atualização dos versos em meu talhe esguio e próximo; todo um outro do alien pobre de Silvano1. Era o folclore: a música que de fato emocionava a galera de Candeias sendo apropriada por mim em ridículo para entreter a classe média debutante. Até hoje quando eu tô bêbo eu faço isso.

À parte tais apropriações nitidamente subordinativas, a questão do humor permanece intrigante. Mês passado, Paulo da Costa e Silva publicou um texto no qual põe em perspectiva funk carioca e rap paulistano: em SP o rhythm and poetry segue sua trilha sonora sisuda rumo à articulação política, no Rio, os MC’s transformam o funk em gênero humorístico zoando tudo e todos em sua adesão sensualista ao presente. A verve da comédia cultivada nos seios de MC Carol e na pança de MC Bin Laden faz pensar no riso dirigido ao arrocha pelo pessoal no Pequeno manual dos amores em andamento, o riso que nós lançamos. 

O funk se zoa, o funk zoa todo mundo; há um projeto autoconsciente. O arrocha não se zoa nem zoa ninguém2, o arrochada é zoado; geralmente pela classe média. Dão risada da dança, da vestimenta e até da cara do pessoal; um riso de fora para dentro, numa relação meio sádica meio cínica, visto que no estágio contemporâneo Pablo e outros artistas fazem shows em lugares em que pobre não vai: Armazém de Villas do Atlântico, Barra Hall, etc.

Tudo isso pra dizer: na noite que fui ver a peça em questão, não ri nessa hora de zoeira com o arrocha. Talvez porque esteja ranzinzando mais com os outros que comigo mesmo no decorrer dos anos. Uma reflexão útil para se fazer nessa seção de autocrítica.

Por fim, digo que há esse clipe de Pablo: Casa Vazia. Vê lá no Youtube.

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1 Duvido que algum deles tenha mais dinheiro que SS hoje.

2 Considerar exceções. Vide música recente de Silvano Sales “ Eu levei foi gaia”

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