Crítica | Cênicas


Foto de Andrea Magnoni

Igbe Antônia

março de 2016

Edição: 1


Anti crítica

ANTI, pois me oponho a minha primeira visão, burguesa, da obra.

ANTI, pois sou eu inserido em Antônia.

ANTI, pois há em Antônia, sutilmente, uma alternativa.

ANTI, pois é o nome do novo álbum de Rihanna.

Dizer o quanto é necessário a concepção de obras cênicas que tenham como foco o protagonismo negro, não chega a ser uma novidade para a classe artística. Sobretudo, não chega a ser uma novidade para os próprios artistas pretos e aqueles que, uma vez sentindo na pele o flagelo provocado por ter esta cor, se atormentam com o chamado. O entendimento para uma politização e consciência do que é ser negro, vindo de bairros periféricos e que, ousadamente, adentram no espaço do fazer artístico que, em suma, é extremamente asséptico e ainda intolerante a uma ação de protesto poético, como os artistas do espetáculo Antônia classificam a sua empreitada.

Sinto em momentos, quando alguns artistas, principalmente brancos, falam de obras que possuem esta verve – geralmente obras feitas por pretos –, que há uma espécie de incredulidade da parte deles ao tentar compartilhar da experiência proposta, ou melhor, de uma notável negação aos fatos ali expostos. Esta reação, muitas vezes, é mascarada por uma crítica fundamentada no caráter formal do que é exposto enquanto obra artística, como se dissessem “poderia ser de outro jeito” ou “poderia ter menos textão”, ou ainda, e mais clássica, “poderia ser menos panfletário e menos gritado” – bem… de fato, é o que dá para pegar por alguns daqueles que enunciam tais pensamentos quanto a obras deste tipo, a boa e velha estrutura, que nada mais é do que um radier para o que verdadeiramente importa. Livrar-se deste pensamento é complicado, mas há sempre uma grilheta.  

Anedota 1: A incredulidade ou a negação, de pessoas fora da margem (incluindo artistas) do que açoita o povo negro, me faz lembrar da fala de Aimé Césaire (poeta surrealista francês e que difundiu o conceito de negritude) ao ativista cubano, e também negro, Carlos Moore, quando este relatou para Césaire sobre o racismo mantido pela governo de Fidel Castro, pós-revolução: “Eu não quero acreditar em tudo o que você me disse, não quero acreditar. Mas acredito”. Enquanto isso Jean-Paul Sartre acusava Moore de imperialista.

Contudo, parece que ainda não ficou claro que muitos de nós nasceram para trilhar uma espécie de Ọna Igbe (forma ou método do grito, urro ou lamento, ou, ainda, gritando) em arte. Para uma parte daqueles que viveram a margem, como nós pretos, e que adentram ao espaço elitista da arte, o recurso é usar deste privilégio a partir (e partir) d(as) cordas vocais – como artista negro, não sei se o grito fundamenta o meu fazer, mas sinto, por vezes, que este fenômeno me assola para uma espécie de nova construção ética. Hoje, pouco mais de uma semana que vi Antônia, lembro que, quando Fernanda Silva, que faz a Antônia, olhou para mim por alguns segundos, e falando algo que hoje não sei precisar – acho que ela cantava na verdade – senti uma espécie de incômodo. Somente hoje, escrevendo, pude entender o que aquele incômodo era em definitivo. Uma espécie de vibração, motor, que seja, que incitava em mim algum tipo de atuação. Aquilo era um Ọna Igbe.

É certo que aquele Igbe vibrou por pouquíssimo tempo em mim, e que não houve mais daquilo, pelo menos ao meu ver, durante toda a ação, e fiquei um tempo esperando que ele voltasse até desistir e acompanhar, no que me cabia, aos episódios – talvez o meu erro foi esperar. Mas, para mim, toda Antônia poderia ser “igbezada”.

Pois o que seria isso de Igbe? Nada que flerte com conceito, nada delimitador, nada de sintético, mas uma alternativa, uma possibilidade, ou melhor, uma indicação da experiência em arte neste caso que necessita por ser desbravada. O grito, de modo óbvio, não necessariamente está na voz, mas sim a partir (e partir) d(as) cordas vocais – voltando a repetir. Talvez seja isso, no fundo, minha verdadeira crítica a Antônia, e para tantas outras obras que fiz, vi e que estão por vir: ver Igbe como caminho. Não temer ao grito, pois gritar também se configura enquanto ética performativa e ancestral negra – não há espaço para cochichos “outbacksteakhouse”. Ọna Igbe é, portanto, um caminho estético para um “afrotranscendence” (referenciando aqui o evento ocorrido em São Paulo no último ano), possibilidade ética e conhecimento imanente. Isso é desbravar a mata trançada, o corpo.

Ọna Igbe Ara = Desbravar a mata trançada no corpo

Ọna Igbe = Entender a mata trançada

Além deste protagonismo preto, Antônia aborda algo mais: o genocídio de jovens negros em bairros periféricos de Salvador. Tema pouco aventado em arte, embora com iniciativas notórias nas artes cênicas, como: Bogum – Oroboro de Diego Alcantara em 2013 do Teatro Base (e que se prepara para um retorno) e mais recentemente Erê (2015) do Bando de Teatro Olodum (que eu não vi). Contudo, o tema é amplamente discutido em outras camadas midiáticas (redes sociais e mídia de guerrilha), sendo bandeira do célebre movimento Reaja ou Será Morta! Reaja ou Será Morto. Debater este tema em outras mídias, principalmente na arte, se faz urgente e Antônia entende isso quando se arrisca na concepção deste espetáculo sem dinheiro algum. Acima de tudo, a obra tem como personagem central uma mulher negra (Fernanda Silva, a Antônia) e dirigida por outra mulher negra, Sanara Rocha.Antônia circulou por mais ou menos nove bairros de Salvador, entre eles Cabula, Canabrava, Alagados e Massaranduba, traçando um itinerário para falar para os nossos, como eles dizem, da melhor forma Alarinjo (Hubert Ogunde). Colocando o genocídio da juventude negra em foco e exaltando a força de uma mulher negra de periferia, Antônia não foge do debate sobre um estado em total militarização e que, com severos golpes, mata jovens de bairros periféricos, ressaltando, inclusive, a impunidade referente a chacina do Cabula, onde morreram 13 jovens negros. Isso é entender a mata trançada, e entender afastando o negro do folclore e dos assaltos culturais – mas isso é outro texto.

Mas onde entra Antígona nisso tudo?

Antígona não entra em nada, e é aí onde mora o problema da releitura ou adaptação.

Antônia se aproxima bem mais de Zeferina, líder do Quilombo do Urubu no começo do século XIX aqui em Salvador – hoje Subúrbio Ferroviário –, do que de Antígona – é necessário que as artistas que criaram essa obra urgente tenham extrema consciência disso. Ainda é mais próxima de Assata Shakur, ex-integrante dos Panteras Negras e perseguida como terrorista até hoje pela FBI. O ato de uma irmã ou mãe lutar por encontrar o corpo de uma filha (o), ou irmã (o), não é exclusivo a personagem de Sófocles. É algo que abate muitas irmãs, mães, e outros familiares, de muitas localidades carentes de Salvador. Para uma obra que lida com uma espécie de indício de experiência, o único excesso é a própria ideia de releitura ou adaptação de Antígona, posto que os pequenos excessos calham desta ideia.

Anedota 2: Falando de Zeferina e militarização, a polícia militar da Bahia foi criada em 1825 justamente para matar negros, naquele época, os insurgentes quilombolas. Zeferina estava entre estes insurgentes. É um negócio bem sucedido até hoje.    

O Excesso-Antígona quase me fez adentrar numa análise espumosa de Antônia – espumosa, pois burguesa. Análise fincada em ditames estruturais, que não são desimportantes, mas limitadores. É mais do que urgente enxergarmos a estrutura enquanto trampolim para algo maior, e este algo vai além do ensimesmamento artístico. Seria, no caso, uma análise de forças que se integram, veículos que percorrem estradas tortuosas – caminhos que só passam a ser quando compostos por pegadas. Estética totalmente íntima a aquele que lhe deu matéria – entender o radier como elemento, ingrediente, da total estética e não como “estética” e, depois, “discurso”, ou “ética” e depois “discurso”. Foi-me necessário enxergar Antônia através deste excesso, e como já relatado, foi justamente no momento-Igbe. Sem este momento eu poderia estar aqui a pensar ou inventar, ou conjecturar justificativas e possíveis metáforas das escolhas “técnicas” propostas para a concepção de Antônia, e, há muito, entendo concepção enquanto entendimento de uma zona, de uma mata, e não como um arsenal, catálogo de ferramentas artísticas – ferramentas estas que são assaltadas a todo momento e não transformadas; algo nas cristaleiras de arte. É por isso que Antônia deve correr de Antígona. Desbravar Igbe no corpo e entender Igbe no campo. Talvez isso ajude a não recorrermos a esta forma infértil de análise.

Anedota 3: Não digo que fugir deste tipo de excesso é coisa fácil, até porque as referências que chegam a nós, artistas negros, em sua maioria são brancas – não é diferente comigo –, mas é a partir disso que temos um inegável privilégio, o de adotar como motor nossa própria imanência – processo difícil este – possibilitando o aparecimento de um veículo transformado. Porém, há de se ter extrema vigilância; estarmos atentos a nossa imanência não significa, pois, estarmos exilados, ou até autoexilados, em nossas próprias raízes. Entender a imanência do corpo preto é um movimento de expansão, antena para o mundo.

 Logo, se Antônia assume, por completo, esta estética do grito – este ilá “afrotranscendence” – foge de estar a sombra da heroína clássica grega e aumenta o impacto de estar mais por Antônia e menos por Antígona. Ou seja, mais igbe e menos tragosoiodé.

O Excesso-Antígona quase me fez adentrar numa análise espumosa de Antônia – espumosa, pois burguesa.

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