Treta | Cênicas


T R E T A

abril de 2016

Edição: 2


Ah, o Nobel de literatura. As milhões de coroas suecas, os fãs brotando por segundo ao redor do mundo, a garantia de férias eternas. Anti-Sísifo. Esses louros, no entanto, não chegam a mudar a vida de ninguém, porque, amigo, para ser tido em alta conta pela academia nórdica já é preciso ter acumulado tanto prêmio, tanto contrato, tanta tonelada de página impressa nos países mais distantes, que a mais prestigiada premiação do mundo, ao fim e ao cabo, é só mais uma rajada crepuscular numa existência cercada de glórias. Muda mesmo é o modo como o ganhador vai ser lido.

Há esse conto longo de Gabriel García Marquez, A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada – uma peça de ficção minunciosamente lavrada em torno de um roteiro muito simples.

Avó cruel e neta resignada moram sozinhas em uma mansão cercada de deserto. A mansão pega fogo, avó culpa neta pela desgraça, e, a partir de então, prostitui impiedosamente a pobre Erêndira até que o prejuízo seja pago. Anos passados na forçada condição de puta, Erêndira consegue dar cabo da velha com a ajuda de Ulisses, um homem que conheceu na vida. Acabou. Mas claro, isso aí mas mãos de G.G.M vira uma ópera de Wagner.

Aqui em Salvador, o grupo sotero-conquistense Finos Trapos leu o conto e resolveu montar algo a partir dele. O produto final é O Vento da Cruviana (em cartaz até dia 30 de abril no Espaço Xisto Bahia), peça que traz já no título uma das marcas e apostas da trupe, o regionalismo.

Logo ao entrar na sala, sente-se o frio da cruviana. O ar-condicionado está ligado no talo e a sonoplastia evoca o som de fundo daquelas cenas de westerns onde há a bola de palha sendo soprada. Depois surge, via iluminação precisa e intermitente, avó sendo carregada por neta – serão só as duas do início ao fim. A esta altura inicial, é possível presenciar um dos recursos mais interessantes propostos pelo grupo: um carrinho de mão modificado sobre o qual o corpo pesadão e mórbido da avó jaz, objeto bem concebido nos limites dados. A poderosa voz de Thiago Carvalho, a avó, toma conta do ambiente em sua explosão de impropérios e ordens gratuitas. O tom é grandiloquente, profundo, cheio de dizeres envoltos naquela aura de sabedoria interiorana. Poliana Nunes, a neta, vai obedecendo: “Sim, avó”. Uma reconstrução linguística é operada, pois a dicção do texto base é transfigurada em expressões e dizeres do sertão, na língua desértica do povo nordestino. O grupo de fato realiza uma recriação formal em relação ao ponto de partida. Outro aspecto da releitura que fica claro é a mudança de foco, posto aqui na relação binária avó-neta. 

O Nobel pesa toneladas. É difícil livrar-se dele, inclusive como leitor. Autoridade & Reverência.

Embora mudem verbo e plástica, o prosseguimento da ação segue as linhas mestras do conto de Garcia Marquez, com poucas alterações na ordem dos acontecimentos. Está aí o engasgo. São dois atores em um cenário único e magro para dar conta de tudo. Erêndira, que já não é lá uma personagem expressiva, fica ainda mais fraca e capenga, pois interage somente com a avó, sem o mundo. E, sem o mundo, a complexidade não ganha vulto, a música original composta para o espetáculo fica apenas no patamar decorativo. O esforço é grande, o arranjo, vão.

Por que o que é que faz a incrível e triste história tão incrível? A riqueza objetal da narrativa, o espetáculo das cores, os motivos fantásticos sugeridos em surdina, as elipses malandras e a magia estridente em mil trombetas. Como, por exemplo, esquecer a rajada de sangue verde na matança da avó, esse maravilhoso recurso cênico encontrado por Gabo? Ou como se desfazer da candura absurda de Ulisses (personagem ausente na peça), sendo ela um contraste essencial para o funcionamento do conto? O convento, os caminhões? Na peça, a potência do texto desaparece.

Nada disso seria apontado como problema se tivessem de fato tido “o texto de Gabriel García Marquez apenas como ponto de partida e fonte de inspiração para criar uma dramaturgia e encenação completamente independente do original” (trecho retirado do site www.gruposfinostrapos.com.br). Mas se a intenção – ou a crença – era criar algo novo e independente centrado na relação avó-neta, por que servir de modo tão submisso ao enredo do conto? Por que esse apego ao literário? O teatro pode tanto, sugere tanto, instiga tanto para além da letra. Com ou sem palavras, com ou sem plot. Aquilo que mais atrapalhou o grupo foi ter seguido de cabeça baixa um enredo que não se sustenta sem a batuta e a orquestra do maestro García Marquez.

O Nobel pesa toneladas. É difícil livrar-se dele, inclusive como leitor. Autoridade & Reverência. Mais uma vez: por que parar neste único conto quando a ideia seria focar na relação avó sádica/ neta passiva, considerando a vasta literatura a ser desbravada – Clarice Lispector, Pedro Nava, Lya Luft, isso só no Brasil?

A chancela de um Nobel sempre soa bacana nos releases, porém.

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