Selfie | Cênicas


Efeito Nanicolina

maio de 2016

Edição: 4


A Partir d’O Bobo, solo de Caio Rodrigo

Diego segue pensando qual é o seu lugarzinho na arte…

Toda vez que falo a palavra arte me vem um estranhamento, parece acontecer algum fenômeno em minha língua. Ela embola e por vezes sai um “ti” recifense ou aquele “R” sufocante no sotaque do interior paulista. Me lembro da vez que disse pela primeira vez – como se tivesse dando um tiro – que eu era artista, lá para as bandas de Alagados. O brother arregalou os olhos e até mesmo mudou o tom da conversa como se eu me demudasse num bacanérrimo.

Aliás, que lugar atraente esse de ser bacana. Na mesma da hora de minha metamorfose perante Mazinho (o velho bro das reinações na favela da maré), entendi de imediato a potência de ser bacanérrimo. O bacana magnetiza e sempre submeterá o pobre inseguro. Sendo ele um repetidor apto para ser um grande lecionista ou uma figura cheia de luzes, a inclinação para arrastar milhões de pessoas para segui-lo no facebook e twitter é tentadora; e uma vez que a cancela se abre, sendo você o brâmane de Voltaire ou bonzo de Yoshikawa, qualquer impropério será aceito como verdade.

Já há algum tempo, não consigo escrever e/ou falar usando ironias (elemento imprescindível para o bacana), dando aquele tom ácido e mordaz que todo mundo tá gostando de ver e ler (principalmente nas redes citadas). Aquele tom bacanérrimo de pós-estruturalista do fim dos tempos (os deleuzete pira!). Passei um bom tempo escrevendo somente para mim e para mais ninguém, depois abri um blog que ninguém lê, depois deixei ele lá e voltei a escrever intimamente, e quando senti que uma de minhas obras beirava a velha qualidade irônica, fiquei apavorado. Travado com a linguagem, decidi ficar longe de qualquer criação cênico-performativa (embora imerso em uma). Decidi encerrar com este fluxo não somente por ser uma qualidade distante de mim, mas por sentir a infertilidade sintática – a sensação de entrar numa nova onda e tal-e-coisa. Depois de dois textinhos tomei aversão, sem me lembrar e nem saber qual a causa precisa.

Na verdade, sempre sonhei em ser um bom Diógenes, mas também não sirvo para cínico, para um profanador de toda uma representatividade, seja ela simbólica ou não. Jogo com a “realidade” tentando entender as suas mirradas “regras”, tentando criar uma outra, talvez. Não há nada de câmbios nisso tudo, somente perdas. Não conseguir ser irônico e nem cínico me lança para o terreno do enfado. Fazer o quê? Condição terrível dos “marasmosos”. Perder passa então a ser um novo pensamento estético.

Pois que hoje me surge uma imagem que me faz lembrar o momento de epifania, acho que lá para os finais de 2012 ou começo de 2013. Tal como a madalena encharcada pelo chá, ambos proustianos, Caio Rodrigo e O Bobo trazem à tona a imagem um tanto quanto apocalíptica de Alagados – nada que lembre a francesa Illiers-Combray. Minha memória sempre foi falhada, cheia de apagamentos, de modo que nunca me lembraria de toda a minha vivência na ponte Ribeira-Alagados. Contudo, Caio me faz lembrar de toda uma tarde impetuosamente, a mesma em que eu me senti o bom bacana.

Eu tive uma crise de riso durante a apresentação da equipe a la Bruce Buffer feita por Caio, principalmente quando ele apresentou o cenógrafo “Rodrigo Frota, que faz 15 cenários por ano, mas o acabamento…” (mãozinhas irônicas no mais ou menos). Uma exposição da crítica que muitas vezes ouvi sobre Rodrigo, um dos grandes da cenografia baiana. Acontece que eu fui ficando menor a cada palavra proferida por Caio, não por ouvir “verdades”, os inúmeros tratados filosóficos e existenciais (já que tratados políticos/sociais em arte são tão execráveis vamos aos filosóficos, finos e metafóricos), muito menos essa coisa toda de teatro falar de teatro – aliás, não há nada mais burguês do que os “metas-artes” … felicito todos aqueles que possuem o ócio necessário para tratar da linguagem artística nela mesma – mas sim pelo pensamento que me consumia “não posso cair mais nisso”. Saí completamente da Boca do Inferno institucionalizada, acho que quando Caio estava no megafone, filosofando sobre uns “porquês” de quem sempre teve cadeira para sentar.

No decorrer de meu processo com as pílulas de nanicolina que Caio me dava, a Paróquia de Nossa Senhora dos Alagados ia se pintando em minha mente, a velha igrejinha do papa polonês, com a mangueira mais alta acima de sua arquitetura pós-moderna, onde se vê o último mangue soteropolitano, a Ilha do Rato.  Há três anos atrás as palafitas já eram raras, mas a terra batida de sempre estava lá, foveirando as pernas e irritando os olhos. Vendo Alagados agora, sinto que sua imagem,

a do cinema abandonado,

a do lixão,

das rixas de rua,

da criação conjunta das crianças,

a da competição da maior lombriga,

da caxumba,

do lodo da maré,

do golzinho arriscado no fim de linha,

dos riscos que vivi – hoje performados

por artistas da performance – a

das sempre secas amendoeiras,

da correria atrás de arraias,

do meu guarda-pó,

de meu pai parado

em frente a um monte de madeira pensando no que fazer,

daquela luz mercúrio na parede sem reboco,

da última bandeira branca do tempo que vi sumir,

a da ponta dos dedos calejados do aço do Tonante,

da palma da mão calejada pelo trinchão

… todas estas imagens sempre me pareceram compor um quadro do fim dos tempos. Por outro lado, sempre escondi minha bestificação diante da aversão de viver em Alagados –

síndrome de estendal no quintal de casa diante do mamoeiro.

Alagados me deu o assombro nunca mais experimentado.

Alagados é, pois, meu primeiro belo insuportável.

                      Eis minha mais antiga referência de ironia.

Naquela tarde me encontro com Mazinho. Conversamos durante horas e ao pronunciar a frase “eu sou artista”, vetores atravessam minha cabeça que se inunda de disparates. Eu, ora bacanérrimo, ora inquisidor da condição de bacana, ora “porra nenhuma, eu também posso ser bacana”. Isso se alongou durante um tempo, mas assumi a partir dali minha “bacanice” e conversava com o bro como Caio tentava conversar com aquela plateia de alunos “tão obedientes”. Mazinho, com um olhar de grande estranhamento, ao mesmo tempo que amuado, levanta um letreiro atrás de si com os dizeres “Diego, a ironia também é um privilégio burguês.”. Palavras que pareciam me alertar sobre esse meu lugarzinho na arte. Desde esse momento, passei a refletir sobre esse elemento bonito, maquiado, intelectual, levemente engraçado, descontraído e bem arte contemporânea para fazer críticas e ser aceito, que é a ironia…

Caio me lembrou que em algum momento deste período, quando preso a mais um texto sobre minha produção cheguei a conclusão de que a ironia é a melhor forma de falar “verdades” de maneira limpinha, e se ela busca por reproduzir trejeitos das camadas populares como o pagode, “Pablos” e afins, mais potente e acessível o é.

Se em algum dia eu for irônico, que eu seja alagado(s),

não em sua representação, mas em seu vaticínio.

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