Crítica | Cênicas


Paulada da Selva

maio de 2016

Edição: 4


Sobre a performance Paulada Silva Selva,de Paula Carneiro

 O corpo não é um território neutro. Foram necessários séculos de cultura para que finalmente pudéssemos pensá-lo como suporte, quando na verdade é processo inacabado e tráfego incessante de informações. Forma mutante e indisciplinada, matéria revoltada; não baixa a crina, mesmo sob o peso milenar da chibata e da educação. Emprego, produtividade, lucro, pobreza; mil e uma maneiras de domá-lo, torná-lo vazio, gasto. Na arte a chance, sempre aberta, de reposicioná-lo no tempo da carne.

Por isso a performance é um ato ritual. Essas palavras, tão desgastadas pelo uso, no trabalho de Paula Carneiro retomam sua dignidade fundamental. Um corpo redimensionado, reapropriado em suas sombras, mortes, dores e mutações, só poderia aparecer aos outros como revelação. Portador de mensagens, mesmo que não facilmente decodificáveis. Num mundo de mortos, a aparição do vivo se confunde com o monstruoso.

Naquela noite Paula se transformou em Paulada Silva Selva. Por sinal, nada mais apropriado que o nome. A porrada vem da revelação do estranho-familiar que pode se tornar o corpo feminino quando visto desde sua luz própria. Freud gostava de se perguntar sob que máscara retornaria o recalcado, ao que Paulada poderia responder: a da boceta. É nas marcas dos corpos violentados que deciframos, em relevo, os mecanismos do poder. E se, diferentemente das potências singulares, todo poder representativo nasce morto, para manter sua sobrevida precisará reprimir forças transformadoras. Esse é o vampirismo essencial das governâncias. É por isso que cada corpo exposto é um portal em potencial. Revela em si os limites do poder estabelecido, nutre a chegada de coisas novas.

Paulada Silva Selva nos apareceu, naquele domingo, em meia-luz azulada, com metade do vestido suspenso, deixando expostas as pernas, a bunda e a boceta, em cima do salto alto. Em lugar do rosto vemos uma espessa máscara negra, feita dos próprios cabelos amarrados na frente. Um pedestal, um microfone, a música eletrônica de Suzy 4 Tons, o público disposto como testemunha e Heitor Dantas empunhando a guitarra.

Ora, o microfone é um phallus bastante conhecido. Usado em exposições, shows, palestras e discursos, amplifica a voz, transcende espacialidades e, principalmente, unilateraliza a relação entre quem fala e quem escuta. Quem tem o poder maneja o microfone, e vice-versa. Nele o foco se prende ao rosto falante, mas mais ainda ao verbo, à transcendência do sentido, às palavras, à institucionalidade ali materializada. Podemos até ler, como cama ou contraponto, as expressões da face ou o movimento das mãos; mas o resto do corpo, a bem dizer, o torso, as pernas, o ventre e a genitália, permanecem como suporte, assim como o tripé o é do microfone. Eis a imagem simples e analisável cotidianamente, prova da transcendência do verbo sobre a carne. Um corpo social dividido em zonas hierarquizadas, numa ordem ditada e protagonizada pelo pau, de forma que a boca, a cabeça e os olhos (respectivamente fala, entendimento e visão) incorporam o poder do pau do pai, ao passo que o resto é relegado à marginalidade, sendo o cu o indigente-mor.

Já ao corpo feminino será imposta a falta do falo, e se este é caracterizado pelo poder de penetração, delega-se à boceta o status de recipiente e propriedade universais. É assim que há um caráter de penetração no olhar: assédio potencial de toda expectação estética — a não ser que inteligentemente se inverta a situação.

Quando Paulada aparece ao microfone, embaralha tudo. Somos abduzidos não por um, mas por dois focos, conflitantes e expressivos, de forma que não sabemos como regular nossa visão espectadora: a boceta exposta, abaixo, e, acima, um rosto coberto. A fala surge por detrás de um emaranhado negro, informe, selvagem, enquanto a genitália, em crua exposição, põe em xeque a dinâmica habitual do olhar. Se a ausência do rosto nos arroja numa des-identificação incômoda, a fuga para baixo nos deixa cara a cara com uma carnalidade imediata, inquisitória. Não há fuga possível neste curto-circuito poético: se fujo pra baixo encaro a evidência da carne desalienada, se volto pra cima não encontro identidade à qual me aferrar, apenas a profusa selva de pelos. Nada nos resta senão escutar.

Mas o tempo da escuta é muito distinto do tempo da fala. A norma social está assentada sobre o tempo da fala, de modo que o próprio ato de escuta já pressupõe uma fala passiva, interiorizada. A isso costumamos chamar — nas artes, principalmente — de psicologismo. De forma que assumir um tempo de escuta significaria produzir outro tipo de fala, outro tipo de subjetividade e, é claro, outro tipo de arte. Essa escuta falada seria então uma fala ritual: audição articulada do inominável.

Paulada Silva Selva canta o inominável na dor, o inominável no parto. Sua fala-canto (já não se sabe quando começa um e termina outro) anuncia o óbvio: nascemos todos de uma boceta.E quanto peso há em reconhecer, por meio desta presença, a obviedade crua.

Naquela noite Paula se transformou em Paulada Silva Selva. Por sinal, nada mais apropriado que o nome. A porrada vem da revelação do estranho-familiar que pode se tornar o corpo feminino quando visto desde sua luz própria

Rebate à crítica “Paulada da selva” de Daniel Guerra

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