Selfie | Cênicas


Lembro da primeira vez que vi Jhoilson de Oliveira. Escola de Teatro, talvez 2008; éramos colegas de turma. Àquele tempo, não saberia definir o sentimento que seu sorriso largo e, às vezes, debochado me trouxe de imediato, mas ao reexperimentá-lo no espetáculo assistido, tive que retornar à outra escola: a Picolino de Artes do Circo, na década de 90.

Turmas particulares e Projeto Axé: assim, recordo-me que, por um bom tempo, eram divididos os grupos no circo. Em algum momento, todos nos misturamos e lá estava eu diante do sentimento que Jhoilson, mais de 10 anos depois, me  faria reviver. O fato é que, a essa época, não estabeleci relação alguma com os alunos do Projeto Axé: sentia-me boba em relação a eles, sentia receio que falassem de mim, que rissem de minha timidez e, por isso, baixava a cabeça sempre que nos cruzávamos – em síntese, eu não era maloquêra. Alguns anos depois, um pouco mais madura, quando retornei ao circo, pude reencontrar as mesmas pessoas e falar sobre esse sentimento que me desconcertava o olhar. Alguém me disse “você era muito fechada naquela época”, ao passo que respondi, querendo me referir a tudo de insegurança que carregava comigo: “eu tinha medo de vocês”. Imediatamente, percebi que minha fala era extremamente violenta: olhos assustados, sorrisos estancados e uma certa decepção naquele início de amizade em construção. Não me expliquei e carrego comigo o constrangimento meu, mas, sobretudo, do outro, provocado por essa fala, há muitos anos, ao mesmo tempo que, em Maloquêro, descobri exatamente o que significava, para mim, o sorriso de Jhoilson: o sorriso do abismo que não consegui ultrapassar na década de 90 e que tampouco soube descrever alguns anos depois, em diálogo. Foi esse sorriso, já mais tarde, na Escola de Teatro, e tudo que ele significou sensivelmente e que eu nem sabia, que iniciou, em mim, soteropolitana, apaixonada pela cidade em que vive, o processo de entendimento de que, definitivamente, eu não sou neguinha.

Ser maloquêro, sabemos, tem a ver com rua, tem a ver com frio e também com fome, mas tem, principalmente, a ver com ser caricatura sem, na verdade, caricaturar. É ser aquilo que julgam caricatura e não representar em caricatura, como, a muitos, pode parecer. Jhoilson, em cena, ginga a nossa capoeira pra falar dos corres que um maloqueiro faz, usa todos os termos que a Soterópolis nos ensina diariamente e isto só pode parecer caricatural para quem não conhece Salvador. Não há nada mais soteropolitano, em Salvador, que sua própria caricatura. Isso é Salvador. Né, não? E Jhoilson, simplesmente, é aquilo que quer ser do início ao fim do espetáculo: Salvador. O maloqueiro está diante de nossos olhos, não apenas por ser Jhoilson um homem negro, de sorriso largo e debochado, como dito, e por ser negra a cor de nossa pobreza, de nossa maloquêragem, mas porque o maloqueiro soteropolitano é aquilo ali e não teria como ser de outro jeito. Nesse sentido, considero Chumbinho, único personagem do espetáculo, superior ao Bispo (interpretado por João Miguel em espetáculo de mesmo nome, que assisti na semana anterior). O Bispo demorou, ao menos, 30 minutos, para ser, em cena, o Bispo; antes desse tempo, parecia-me alguém, num cenário bonito, falando, contando, narrando… sobre o que seria ser o Bispo. Jhoilson começa e termina maloquêro, sem explicar nada para tanto.

Somado a isso, posso dizer que Maloquêro é uma peça educativa. Frases simples, como “Drogas são tudo aquilo que bate onda: café, dorflex, seu remédio pra dormir, açúcar”, mostram a capacidade deste monólogo de transitar em direção oposta à do discurso padrão de uma sociedade injusta (que criminaliza a pobreza e elege traficantes e usuários pela cor de sua pele, pelo lugar onde moram) e hipócrita,  que se droga para acordar e para dormir, para sentir fome e para saciá-la, mas não se considera drogada, já que a maioria de suas drogas são lícitas e, por falta de interesse em entender sobre o assunto, baseiam seus argumentos na lei, aquela mesma que costumam infringir quando lhes interessa – como quando escolhem beber e dirigir, por exemplo, mas, podendo pagar dois mil reais em multa, podem também não se considerar criminosos ETC.

Vários aspectos, que seguem a mesma lógica educativa, descrita no parágrafo anterior, chamaram minha atenção em Maloquêro. Em todos os momentos, fui remetida a meus privilégios. A peça prossegue bem humorada, sem deixar a nós, plateia, nos esquecermos diante do que estávamos: ao final das contas, da loucura que é imposta àqueles que, fora de qualquer situação de privilégio, são impelidos a viver, como se isto, viver, fosse a tal dádiva, irrecusável. Pensar assim, em dádiva, só pode ser um privilégio – parece-me, à medida que a peça segue. Maloquêro é um espetáculo monólogo porque monologam os maloqueiros, os loucos; uma peça sobre incomunicabilidade, sobre abismos, sobre impossibilidades.

“Olhava para os seus companheiros de trabalhos forçados e ficava apreensivo: como todos eles amavam a vida, como tinham apreço por ela! Ele mesmo teve a impressão de que na prisão ainda a amavam e apreciavam mais, e a tinham em maior apreço do que em liberdade. Que terríveis tormentos e torturas não teriam experimentado alguns deles, principalmente os vagabundos! Será possível que possa valer tanto para eles um raio qualquer de sol, um matagal, uma nascente fria em confins ignorados, marcada há coisa de três anos e que o vagabundo sonha encontrar como sonha com uma amante, vê a nascente em sonho, a grama verde ao redor, um passarinho cantando num arbusto? Escrutando com o olhar ainda mais longe, ele percebia exemplos ainda mais inexplicáveis.” * Fiódor Dostoiévski em “Crime e Castigo”.

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