Selfie | Cênicas


Narciso’s Selfie

agosto de 2016

Edição: 7


Sobre “Narcissus”, do grupo Toca de Teatro

 Piso as botas no pátio do Goethe-Institut, peço um quiche de alho-poró, escolho uma mesa, olho ao redor e me sinto bem cool. Sou o artista solitário. O crítico. Meu olhar é arguto e sagaz, vim de banho tomado, estou pronto para o trabalho.

Vou ao banheiro, e abrindo a porta encontro-me com um senhor que deve ter lá seus sessenta anos se olhando no espelho. Jogados de qualquer jeito na pia encontram-se uma sacolinha de papel da Óptica Opção e um jornal aberto num jogo de palavras cruzadas recém terminado. Nos encaramos de soslaio no espelho e estamos aqui para ver “Narcissus”, novo espetáculo do grupo Toca de Teatro. Decidimos finalmente: ele vai à latrina, e eu vou ao mictório.

Na bilheteria tinham me dado um programa de impressão e dobragem cuidadosas, o qual agora, voltando ao pátio, abro e começo a fruir como se fosse o prelúdio do que vem por aí, contrariando a opinião daquele professor universitário que insistia em nos convencer de que uma “verdadeira obra de arte” prescindia de programas e demais explicações.

Discordando mentalmente dele pela milésima vez em dez anos, desdobro o cartão e topo com o ator Danilo Cairo fotografado em várias posições dentro de um rio. Me incomoda bastante o shortinho cor-da-pele para esconder a nudez, e, já contrariando o pensamento anterior, faço votos de que isso não seja um prelúdio do que vem por aí.

Vou seguindo o rebanho de espectadores para dentro do teatro e Rui Manthur recebe cada um de nós com um sorriso no rosto, o que me acende muitas questões. Ao sentar na poltrona (sempre junto aos corredores, por questões práticas e supersticiosas) lembro que vivi situação similar em “Egotrip”, quando fomos recebidos com apertos de mão e abraços calorosos, estranhos e desconhecidos, distribuídos por uma equipe de atores ou comissários de bordo. Não sei se isso está virando um novo padrão nos teatros; só sei que me lembra os bonecões dos parques de diversão, ursos, periquitos e mickeys que nos dão aquele último estímulo de afeto antes que desistamos de entrar com nossos primos demoníacos no Túnel da Morte.

Pausa solene, porque gosto dessa parte: em qualquer peça feita num teatro, com suas luzes e terceiros sinais, há uma força incomensurável entre o momento da espera e o momento da peça começar. Há aquele instante de luz apagando, que, como sempre imagino, deve ser o equivalente do corpo e da consciência fazendo o mesmo processo dentro de nós. Sempre pensei que essa tensão era tão imensa que caberia a qualquer espetáculo apenas continuar ou contrariar esse sentimento de começo que só o apagar progressivo da luz de um teatro pode causar.

Lá no fundo vejo Danilo deitado de lado formando uma bela figura, algo como um Nijinsky em “L’après-midi d’un faune”, parado languidamente atrás de um voal. A luz macia, a música quase Debussy, o teatro do Goethe, a digestão do quiche, o ar-condicionado, tudo isso me faz pensar: como sou virtuoso, como somos naturalmente bons por estarmos aqui fruindo Arte, fruindo coisas Clássicas, fruindo coisas Belas. Tem muito tempo que não sou tomado por isso. No entanto.

O tempo vai passando e o corpo dançarino dá lugar a uma palavra recitativa que me arremessa das águas fundas do começo a mil léguas de distância do teatro. Súbito há uma quebra; do clássico se vai ao contemporâneo em apenas uma mudança de música. Danilo vai vestindo um colete de lantejoulas azuis e óculos roxos redondos, tudo isso pontuado por música eletrônica, fazendo gestos que me lembram a coreô típica de mágicos de araque.

Agora ele começa a falar diretamente conosco, olhando-nos no fundo dos olhos como Narciso devia ter olhado para seu reflexo na superfície do lago. Mas assim como no diálogo do Reflexo com Narciso, entre mim e ele, naquele momento de encontro visual, não há muita possibilidade de escuta. Sinto que ele está arremessado nas profundezas de sua representação, assim como eu, nas profundezas das minhas.

Ele sobe o corredor ao meu lado, e agora pressinto que vamos ter outro tipo de conexão. Ele já está com o pau-de-selfie apontado para nós e vem com um troféu Braskem na mão. Ele me pede que segure a estatueta e sentencia, tirando sarro: “É seu sonho né?”. Dou um sorriso encabulado e generoso de espectador cumprindo sua marca, ao que a platéia gosta e sorri a vontade. Fico meio abobalhado com aquele prêmio na mão e ele desce a escadinha de volta ao fundo do lago que se tornou o palco.

Voltamos a nos perder. Intelectualmente, percebo que testemunho uma representação das várias facetas do mito de Narciso, algo como uma mitologia comparada, que aliás, termina sempre juntando coisas que intimamente não gostariam de figurar no mesmo balaio, se tivessem escolha.

Danilo sai de cena e deixa Manthur fazendo e dizendo mais algumas coisas ali no palco, para logo depois retornar, agora com um vestido laranja translúcido, segurando uma caixa de papelão bastante trivial e entoando uma vozinha num registro que eu reconheço desde os tempos em que fez o Macunaíma de Hebe Alves. Soa uma musiquinha bem besta ao fundo, daquelas que se escuta em filmes pretensiosamente sentimentais, e ele fala pateticamente pra nós. Aqui alguma coisa me fisga pra fora do meu lago. Não sei o que é. Talvez seja a soma de todos esses elementos toscos na minha frente, a musiquinha, a caixinha a la Romero Britto, a voz forçada, o recurso do autobiográfico como dispositivo contemporâníssimo para fisgar os corações de espectadores sempre neuróticos demais. Mas não. Talvez sejam os olhos de Danilo mesmo, nos quais vejo um brilho estranho, de quem verdadeiramente acredita no teatro como forma de existir. Que doido isso. Que doido voltar a ver isso em alguém. Que doido entrever esse momento em meio a águas tão turvas. De repente aquela vozinha tosca me apreende e me arremessa às profundezas de minha própria existência. O tosco nos uniu. É como eu sempre digo: do tosco viemos, ao tosco voltaremos.

Esse momento dura pouco. Mais algumas palavras, movimentos dançados, críticas-diretas-à-sociedade-narcisista-contemporânea, e retorno sem querer meu olhar ao troféu Braskem, ao Michael Jackson de latão dourado deitado na cadeira vaga ao meu lado, que disputa espaço com a sacolinha de papel da Óptica Opção do senhor que encontrei no banheiro. Seus olhos parecem gostar muito do que veem. Passo o resto do espetáculo tentando decifrar aquela mirada, olhando pra lá e pra cá como quem vê uma partida de ping-pong entre o senhor e o espetáculo, tentando capturar o momento da ponte. Seu rosto revela uma alegriazinha não-específica, como quem diz: “Como sou virtuoso, como somos naturalmente bons por estarmos aqui fruindo Arte, fruindo coisas Clássicas, fruindo coisas Belas. Tem muito tempo que não sou tomado por isso.”

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