Ensaio | Cênicas


Quando morei no Campo Grande escrevi uma peça que, até hoje, só uma pessoa chegou a conferir. Não tenho os critérios para saber se ela funcionaria ou não nos palcos, e confesso que nunca me esforcei muito para vê-la encenada, mas me diverti bastante escrevendo. O Campo Grande é meu lugar favorito em Salvador. É o olho do furacão, o centro gravitacional da cultura baiana, o lugar para onde tudo converge, o centro de um círculo onde estão os melhores museus, salas de concerto, espaços de exposições, cinemas, teatros. É em suas ruas onde, para o bem e para o mal, as notícias acontecem. Tenho para mim que uma conversa sem compromisso se desenrola com mais fluidez se na Praça do Campo Grande. E mesmo com tudo isso, o que mais frequentei lá foi exatamente a silenciosa biblioteca da Escola de Teatro.

Ironicamente, ali encontrei o romance Teatro, de Bernardo Carvalho, enquanto a peça Os Físicos, de Dürrenmatt, ficava no Instituto de Física. Também foi lá onde peguei quase todos os volumes da coleção Teatro Vivo, aquela dos charmosos livrinhos vermelho-sangue (dela só não li Rostand, Brecht, Weiss, Strindberg, Camus, e Oswald). A vantagem de seguir uma coleção é que você acaba descobrindo muita coisa que provavelmente não conheceria de outra forma. O único critério que usei para ter lido dramaturgos como Genet, Wilder e Pinter, de quem pouco sabia, foi por estarem lá. Ainda mantenho a intenção de ler a coleção inteira.

Além das edições em si, também gosto muito daquelas maravilhosas introduções, abarrotadas com fotos de montagens de cada peça. Careço da imaginação visual dessa gente do teatro. Não deixo de me impressionar toda vez que vou a uma peça, mesmo que o texto seja uma porcaria. Oscar Wilde, que bem poderia estar na coleção, escreveu um ensaio só sobre as vestes em Shakespeare, você pode imaginar? Entendi pouca coisa, claro; sou péssimo com nomes de roupas. Mas o que quero salientar é que sempre acho tudo muito bonito, mesmo com pouco conhecimento técnico – aquele deslumbramento pueril do ignorante.

Ainda assim, comparando as produções atuais com aquelas das fotos, creio que anda faltando algo nas recentes encenações de peças clássicas. Todo mundo sabe o que é clássico, mas tem uma galera que insiste em querer uma conceituação para tudo, então vá lá, consideremos aqui a definição mais divertida, de Mark Twain: clássico é uma obra que ninguém quer ler, mas todos querem já ter lido. Sinto falta de produções de clássicos que nos apresentem o trabalho de um dramaturgo, e não uma visão personalíssima de um diretor. Nos educamos na literatura, no cinema, na música, com as obras tais como nos foram apresentadas por seus criadores. Aí alguém vem me falar de Pierre Menard e não sei o que, mas sabe que o Guerra e Paz é mesmo aquilo, apesar de ser uma tradução; que malgrado a experiência ser outra, o Ladrões de Bicicleta do DVD é o mesmo do cinema; que Beethoven em MP3 continua sendo Beethoven. Já o texto de uma peça de teatro, ainda que passível à leitura – também à tradução, à filmagem e à gravação em áudio –, depende dessa visão particular de uma equipe.

Nunca tive a chance de ver nos palcos os meus clássicos favoritos – Longa Jornada Noite Adentro, Um Inimigo do Povo, Esperando Godot eNoite de Reis. São peças apenas lidas; infelizmente, não são exceção. Entretanto, já vi um incompreensível Shakespeare com soul ao vivo, um Tchekhov em cadeiras de escritório, um colorido Nelson com furadeiras simbolizando um estupro coletivo e um Miller Dogma 95, apresentaçõesque me atraíram principalmente por causa dos dramaturgos. Note que elas fazem total sentido se você conhece o enredo, se já leu, se já viu no cinema – e muitas vezes são ótimas! –; mas pouco servem como apresentação da obra. Em minha parca experiência como frequentador de teatros, as únicas exceções foram um Molière (essa, tão fiel – sem aspas ou conceitos agora – que foi em francês) e um Beckett, cuja mera escolha indica uma visão personalíssima – uma pena que não foi o Godot.

E, sim, sei que as turmas de estudantes e profissionais do teatro devem estar enfastiados de tanto estudar, ensinar, encenar os mesmos clássicos por gerações, e querem dar seu toque, talvez escrever suas próprias obras; mas existe algo de errado em querer ver, sei lá, Édipo como rei de Tebas, em vez de um chefe do tráfico de heroína, Otelo como o violento mouro de Veneza, no lugar de um adolescente americano? Tampouco discordo de Barthes, que afirmou naquele famoso ensainho de Mitologias que o cabelo de cada Cleópatra vai seguir a moda da época em que ela for representada, e por fiel que tente ser, jamais será a Cleópatra histórica, ela que não pudemos conhecer por fotografias. Entretanto, sempre sabemos que se trata de Cleópatra quando a vimos, mesmo aquela cássia eller do seriado Roma.

O mesmo não é necessariamente válido para as novas encenações de peças antigas. Imagino que houve uma época em que elas eram muito parecidas e repetitivas, até que alguém resolveu adaptar o texto ao um contexto contemporâneo – porque todo mundo já sabia do que se tratava. Nada mais natural. Qualquer dono de restaurante a quilo sabe que ninguém quer almoçar o mesmo arroz com bife todos os dias.

A questão é que, hoje em dia, nem todo mundo que vai ao teatro ver um clássico conhece a peça, nem deveria precisar. A transgressão se transformou em norma. Ninguém encena mais os clássicos como clássicos. Não de maneira consistente, não com frequência. Cadê a trupe, o grupo, o diretor especializado em mostrar as peças de maneira convencional? Onde está nosso Laurence Olivier, nosso Zeffirelli? Se há, sinceramente desconheço. Macbeth com LSD pode ser muito massa, mas também quero um Macbeth com coroa dourada na cabeça; A Mandrágora com trajes bufões, A Casa de Bonecas numa mansão antiga, A Importância de ser Ernesto com sanduiches de pepino de verdade. As produções personalíssimas são interessantes e estranhas – mas precisamos também sentir aquele interesse e estranhamento do primeiro contato com o tradicional.

Os atores estão enfastiados, mas as gerações se amontoam e o mundo é inédito para muita gente – há um público de teatro que nunca viu uma produção que não tentasse ser inovadora. Não defendo que sejam abolidas, mas que coexistam com produções mais usuais, antiquadas mesmo, até como meio de formação de um espectador mais eclético e cosmopolita, que seja capaz de contrastar o antigo com o novo, de entendê-los melhor. Uma produção tradicional de um clássico, dadas as condições, seria um ato revolucionário. Creio existir espaço para ambas. Já faz algum tempo que saí do Campo Grande, que saí de Salvador. Entretanto, pelo que leio nos textos desta mesma revista, pelo que converso com frequentadores de teatro, esta lacuna continua. Se produzissem Longa Jornada Noite Adentro eu seria capaz de percorrer os 450 quilômetros que me separam da capital só para vê-la. Enfim, que este texto seja lido não como um apelo, mas como uma sugestão.

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